Sobre

MOCINHOS E BANDIDOS

Está na moda, ao menos em relação a alguns indivíduos, posar para fotinhas imitando com a mão e os dedos a silhueta de um revólver ou pistola. Essa marmota teve origem na proposta armamentista do governo federal de transferir para a população a responsabilidade e as consequências de sua própria defesa. Considero isso, respeitando os motivos daquelas autoproclamadas “pessoas de bem”, algo preocupante. A ideia de cada brasileiro possuir arma em casa ou andar por aí com um pau de fogo na cintura me transmite menos segurança do que temor.

Porque eu, que jamais peguei em armas, exceto a da palavra, sinto um nervoso medonho ao avistar alguém portando coisa desse tipo. Até diante da polícia, sobretudo a militar, eu sinto receio. Nunca se sabe, com respeito aos bons e valiosos policiais, qual é o uniforme que oculta um bandido fardado.

É triste, mas essa é uma guerra que nunca terá fim. Em alguns casos, a polícia executa bandidos (ao menos aqueles sem gravata) sumariamente. Isso, convenhamos, não é nenhuma novidade. Por sua vez, sem excluir policiais honrados de policiais bandidos, surgem criminosos implacáveis e arrebatam a vida de homens corretos, de bons filhos, bons maridos e bons pais de família.

Assusta-me, portanto, a falta de empatia das pessoas, de compaixão, de respeito, amor. Por que tanta desumanidade? Que o gesto de tratarmos bem uns aos outros aconteça independente da religião, da conta-corrente, do poder aquisitivo, cor da pele e opção sexual. É tão bom e tão justo vivermos e deixarmos viver! Por que, afinal de contas, atacar? Por que destratar? Por que agredir, verbal ou fisicamente, quando podemos ser gentis e amorosos, solidários e amigáveis?

Criatura estranha, complexa e imprevisível é o ser humano. Por vezes tão desumano. O que há na mente e coração do bicho-homem que torna tão frágil e tênue a linha entre a bondade, crueldade, amor e ódio?

Vejam a que ponto chegamos. Há indivíduos por aí, alguns à frente de programas televisivos, envergando um terno caro, cuspindo discursos de ódio e comemorando “cancelamentos” de CPFs. Ou seja, festejando a morte de um semelhante enquanto fazem aquele sinalzinho repulsivo do revólver ou da pistola com a mão e dedos. Quem assim age não é menos bandido que o outro.

Existem os extremos de ambas as partes. Há elementos fora da lei que, às vezes, são muito mais fraternos e generosos do que certos bandidos do colarinho branco, pessoas que possuem enorme dificuldade de estender a mão aos necessitados, exceto se for para bater foto ou fazer vídeo e postar nas redes sociais. Acredito, apesar de tudo, que os verdadeiramente bons são maioria sobre os demagogos e hipócritas. Assim como não concordo que bandido bom é bandido morto.

Já experimentei os dois lados da moeda. Certa noite, quando eu me encontrava em casa de uma antiga namorada, ainda à época do namoro de cadeiras na calçada, eis que fui surpreendido por uma dupla armada e encapuzada. O mais alto, sem me apontar o revólver, exibindo no antebraço direito a tatuagem de um Cristo crucificado, anunciou o assalto. Aquela voz grave me era familiar.

Sem truculência, o segundo assaltante recolheu meus pertences: um relógio barato, carteira com documentos e pouco mais de cem reais. Fui à delegacia, fiz o boletim de ocorrência, contudo omiti o detalhe da tatuagem. Dias depois um dos assaltantes, o da tatuagem, procurou-me para devolver a carteira e os documentos. Era Rogério, ex-policial militar, já expulso da corporação, que enveredara pelo caminho das drogas e do crime, mas que se ufanava de nunca ter puxado o gatilho contra ninguém. Tipo grandalhão, simpático e benquisto pelos vizinhos.

— Toma a tua carteira — disse-me no portão da minha casa. — Vim lhe trazer. Fiquei sabendo do que houve. Só não posso dizer quem é nem devolver a grana. Mas não se preocupe. Daqui por diante ninguém mais vai mexer com você. Eu falei pros caras que você é meu chapa. Fique sossegado.

Eu fiz de conta que acreditei no relato:

— Valeu, Rogério. Agradeço demais.

Outra noite, há mais de trinta anos, eu e outro colega de escola, ao voltarmos a pé do Abolição IV para o Santa Delmira, fomos abordados por um sargento da polícia militar, morador daquele conjunto habitacional. Visivelmente embriagado, embora de serviço, o sargento Taumaturgo (vamos chamá-lo assim) mandou-nos parar quando íamos passando defronte da delegacia do bairro.

— De onde vocês vêm? — perguntou ele.

— Da escola — respondeu o meu amigo.

— A essa hora?! Já é mais de meia-noite.

— É que demoramos conversando com um colega nosso, em frente à casa dele, ali pertinho da quadra de esporte — argumentei.

— Me mostrem os documentos de vocês.

Estávamos sem documento naquela noite.

— Infelizmente, eu terei que prendê-los.

Meu colega de sala de aula se desesperou:

— Pelo amor de Deus! Não fizemos nada.

— Eu é que não sei. Os dois estão presos!

Jefferson Batista, meu amigo, que hoje em dia é advogado criminalista, caiu no choro. Eu consegui segurar o meu. Nesse momento, contudo, para a nossa felicidade, aproxima-se o cabo Azevedo e intervém a nosso favor:

— Pode deixar. Eu conheço esses rapazes.

— Da próxima vez, mocinhos, saiam de casa com os seus documentos. Não está escrito na testa das pessoas quem é marginal ou gente de bem — asseverou o sargento Taumaturgo com a voz pastosa devido ao álcool.

— Sim, senhor! — falamos a uma só voz.

Recordo essas histórias com um bocado de acertos e outro de erros. Passados tantos anos, claro, eu não poderia reproduzir agora aqueles eventos ipsis verbis. Saibam que o exercício de exumar lembranças sempre me foi ingrato e malsucedido. Considere-se ainda que a minha memória, como falei ou escrevi em outras oportunidades, tem a resistência de um Sonrisal num copo d’água.

Não estou aqui pagando de santo nem de moralista. Também carrego os meus erros, minhas vergonhas, possuo meus pecados e falhas. Algumas de minhas faltas são bastante condenáveis perante a ordem moral que pregamos. Mas não se anime o prezado leitor nem a distinta leitora achando que lhes narrarei qualquer dessas memórias pouco exemplares. O que busco dizer aqui é que nem todo mundo é totalmente mau ou totalmente bom. Às vezes, por força das circunstâncias ou tibieza de personalidade, as pessoas tropeçam, caem nas esparrelas da vida.

Carecemos menos de polícia que de autopoliciamento. Sim, precisamos de autocrítica, de tolerância. O Diabo, segundo dizem, inventou o pecado, é o criador e garoto-propaganda da ruindade. Deus, por sua vez, segundo as Escrituras, inventou a babel, que significa esse mundo todo de vozes, idiomas.

A continuarmos dessa forma, irmão matando irmão (o que ocorre desde Caim e Abel), aferrados à política do olho por olho, feito dizia Gandhi, o mundo acabará cego. Precisamos, já cantava Renato Russo, amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Só não entende e não vê isso quem não quer.

Escrito por Marcos Ferreira

Comentários

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  1. Lindo, muito grande para minha possibilidade crítica, assim sendo, diria uma coisa, no Brasil em que 1% da população se apropria de 50% do que se produz, Não existe homem de bem que concorde e acredite na sociedade excludente que vivemos. Arte e cultura, então é luxo, sem ela produzimos apenas canalha de família quase boa. Parabéns, ótimo texto.

  2. Bom dia, Marcos!

    Excelente crônica!
    Embora, em alguns momentos a palavra fira mais do que o chumbo…
    Uma arma, é sempre uma arma, não importa em que mãos esteja… Sinto pavor!

    Abraços

  3. Querido Marcos,
    A nossa arma deve ser, tão somente, a palavra e o amor!
    A palavra é tão poderosa que, em alguns momentos, ela pode se transformar em uma arma… De persuasão, de ódio, de amor!
    Que possamos usá-la para disseminar o amor!
    Carecemos de mais amor e imploramos! menos armas!
    Belíssima e realista crônica!
    Grande abraço!

  4. Querido Marcos,
    A nossa arma deve ser, tão somente, a palavra e o amor!
    A palavra é tão poderosa que, em alguns momentos, ela pode se transformar em uma arma… De persuasão, de ódio, de amor!
    Que possamos usá-la para disseminar o amor!
    Carecemos de mais amor e imploramos menos armas!
    Belíssima e realista crônica!
    Grande abraço!

  5. Querido Marcos
    Essa sua crônica reflete como te vejo. Um ser humano incrível! Sensível e de grandes valores morais. Concordo quando você cita que não somos totalmente bons ou totalmente maus. Mas gosto muito de saber como você é bom!

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