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A TERCEIRA VIA

— Você vai ficar aí, parada, enquanto… essa mulher invade…

— Mas, Domênica, nem temos certeza se é verdade o que está escrito nesse bilhete anônimo! — argumentou Gervásia.

Domênica segurava o papel com as mãos trêmulas, o ciúme embaçava-lhe a razão, além de cerrar os dentes, dificultando-lhe a clareza da voz.

— Não sei. Mas por que Ferreirinha su…miu? Ele não apa…receu mais… nem aqui, nem lá… em ca…sa — expôs Domênica, num assomo de fúria e gagueira.

Gervásia foi à cozinha, voltando de lá com um copo de água com açúcar.

— Tome isso, Domênica. Precisamos manter a calma, amiga…

Gervásia estacou, após fazer uso daquele vocativo: “amiga”. Toda Licânia sabia que elas disputavam o coração do Ferreira das Mercês. Levando até a pequena cidade, sempre amante dos jogos de azar, a lançar suas apostas sobre quem ficaria, em definitivo, com o Ferreirinha.

Após alguns minutos, Domênica recompôs-se; e, depois de reler o bilhete mais uma vez, disparou:

— Quem escreveu isso, Gervásia, sabe o que diz. Veja, escute-me, se ficarmos paradas, conheço bem como aquele homem é crédulo, teremos ele como uma presa fácil de uma… “terceira via”.

— Terceira via?

— Sim, aprendi essa expressão num discurso que ouvi nas últimas eleições. Uma disputa forte entre duas candidaturas acaba por viabilizar uma terceira… e não podemos permitir que isso aconteça conosco. Entende?

Gervásia passou suas mãos nervosas no rosto, esforçando-se para não entrar em pane. Recebeu o escrito das mãos de Domênica Melgaço e correu a vista pelas frases ali datilografadas: “Enquanto duas damas lutam entre si para a posse do Ferreira, ele se entrega aos mistérios de uma cartomante. Confira no seguinte endereço…”. Não pôde mais continuar a leitura, os olhos embaçaram-se, invadidos por um choro incomum.

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Na manhã seguinte, muito cedo, alguém bateu à porta da cartomante.

— Quem é?

— Uma… cli…ente.

— Um minuto, por favor.

Meia hora depois, outro chamado.

— Quem bate?

— Uma cliente.

— Um instante, por favor.

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— Mas, seu delegado, eu não saí de casa! Pergunte à dona Gervásia! — respondeu Domênica, ao ser inquirida sobre onde se encontrava no início da manhã.

O delegado de Licânia estava perante um caso de agressão física, a cartomante Marlúcia de Oxum fora encontrada na sua residência, pelo Ferreirinha das Mercês, desacordada e com vários sinais de espancamento. Como única prova, um pequeno bilhete, amassado e jogado perto da vítima.

O delegado, ao tomar em seguida o depoimento de Gervásia, estranhou a resposta:

— Mas, seu delegado, eu não saí de casa! Pergunte à dona Domênica!

Ele retornou, então, ao Hospital Dr. José Arcanjo Neto, e perguntou ao médico de plantão se já poderia ouvir o relato da paciente que dera entrada no meio da manhã, com hematomas generalizados, conhecida como Marlúcia de Oxum.

O médico de pronto lhe respondeu:

— Essa paciente, mal terminei os curativos, assinou um termo de responsabilidade e deixou o hospital.

— Mas… Só ou acompanhada?

— Sinceramente, delegado, não sei lhe dizer. O que me causou estranheza é que a coitada não parava de falar que não tinha nada a ver com uma tal de “terceira via”.

O relógio da Matriz de Sant’Anna badalou o meio-dia; neste exato momento o delegado, tido por todos como um homem agnóstico, fez o nome do pai. “Enquanto duas damas lutam entre si para a posse do Ferreira, ele se entrega aos mistérios de uma cartomante…”, conjecturou, entrando na viatura policial e tomando rumo não conhecido.

*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.

clauderarcanjo@gmail.com

Escrito por Clauder Arcanjo

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Em Cartaz: Infectados