Últimas histórias

  • Do corpo ao coração

    No trajeto que eu fazia entre minha casa, numa cidade do interior de Sergipe, até um povoado onde habitava boa parte da velha guarda de minha família, adorava observar o branco do gado na relva verdinha das fazendas por onde o ônibus da Bomfim me conduzia. Aquele contraste me seduzia e me elevava a uma sensação de prazer e liberdade imensuráveis. Havia uma delícia naquele vento a embolar meus fios naturalmente loiros e a embaçar meus óculos “fundo de garrafa”. Como era bom dormir e acordar sonhando; como era gostoso saborear a vida sem a preocupação típica de um adulto; como era empolgante correr rua abaixo e acima atrás de uma bola ao lado dos garotos (sim: as brincadeiras masculinas eram sempre as mais interessantes, considerando o fato de que minhas vizinhas odiavam suar depois do banho das 18h), e, claro, sem que minha mãe nunca soubesse dessas minhas aventuras noturnas, que só eram possíveis quando a sacro santa alma materna estava de plantão.

    Eu me deliciava cortando o vento ao andar de bicicleta com minha irmã na garupa numa tarde de domingo; ou mesmo quando colocava a cabeça numa fresta da janela de um carro em movimento e fechava os olhos pra senti-lo passar por mim. O vento e seus mistérios… Era uma sensação infinitamente prazerosa de plenitude e liberdade. Liberdade essa que tem se tornado cada vez mais transparente, quase invisível. No entanto, posso senti-la quando entro na tela de um filme petrificante; quando ouço uma música sedutora ou simplesmente me deixo levar pelo apelos de um corpo borbulhante de movimento… Eu danço! E “danço para não dançar”… Sigo rigorosamente esse conselho que Rita Lee me apontou em uma de suas canções.

    E entre movimentos e sensações, o tempo segue seu curso incansavelmente. Ele que nos empurra para a vida, pode nos dar a chance para refletirmos sobre o queremos ou não. Pois bem, depois de tantos caminhos seguidos e consequências adquiridas, hoje é véspera do aniversário de 12 anos de meu filho mais velho. Ser mãe! Eis uma decisão que muda visões, conceitos e atitudes da maioria das mulheres. Aprisionou-me num corpo de seios latejantes, cheirando a leite coalhado; dominou minhas vontades (todas elas naquele momento), mas, ao mesmo tempo me jogou num coração infinito de possibilidades, de descobertas e de doçuras. Ser mãe também pode ser infinitamente engrandecedor. Entre a liberdade de poder gerar e, ao mesmo tempo, aprisionar-se a essa decisão, surgem tantas reflexões e inúmeras decisões que o tempo se esvai no seu tic tac inesgotável e, quando nos damos conta, quanta coisa aconteceu!

    Hoje às portas dos 40, sinto-me bem comigo e com os meus. Sinto-me feliz por ter me permitido experimentar momentos e pessoas que me ajudaram e me ajudam a ser o que sou e a ter o que tenho: família e amigos!!! E por eles sou grata.

    Flor Antero – professora

  • O mar, a casa e o poeta

    “Ontem de manhã quando acordei/Olhei a vida e me espantei/Eu tenho mais de 20 anos…”. Às vésperas de completar 40 anos, essa música não me sai da cabeça, assim como mil e tantos pensamentos que chegam e saem numa profusão incansável de imagens, palavras e sensações (como diria meu suspeitíssimo-amado-amante marido). Como se não bastassem meus atormentados devaneios, recebi o convite do ilustre boêmio e amigo, Túlio Ratto, para fazer parte das linhas desta revista que conheci ainda impressa e agora se faz digital para acompanhar os novos tempos da virtualidade. A partir daí, as divagações, em meio às atividades cotidianas, voltavam-se para o que poderia servir de inspiração para o insigne convite: maternidade, casamento, atualidades sociais ou políticas, relações diárias. Assunto não faltava em minha doce e suave mente fértil (para usar de eufemismos).

    Pois bem, há alguns dias, sabendo de uma viagem a negócios à velha, musical, colorida e percussiva Bahia de São Salvador, o já citado suspeitíssimo-amado-amante marido, chamou-nos para acompanhá-lo em suas empreitadas de negócios (para ele somente, porque pra mim e para as crianças seriam alguns dias embaixo do sol cintilante e a brisa refrescante da Praia de Itapoã.

    Ah, Itapoã…! Personagem que rima nos versos de Vinícius de Moraes! Onde este fez morada ao lado de sua amada Gessy Gesse. É um encanto este lugar!!! Mais ainda quando tivemos a oportunidade de nos hospedar no hotel ao lado da casa do poetinha, onde podemos conhecer o lado baiano de ser e sentir de um dos maiores artistas brasileiros.

    Vinicius sempre foi uma figura curiosa, instigante e sedutora não só com as palavras, mas também pelo modo como conseguia trazer para si pessoas das mais diferentes esferas sociais e idades. No entanto, em algumas situações, preferia o silêncio do lar e o som das ondas do mar que desabrochava permanentemente em frente à sua casa. Em outros momentos, corria dos olhares curiosos dos fãs e se escondia em um porão onde havia uma janelinha que dava em frente ao portão de entrada e de onde se via quem estava à espreita. Esse era o Vina… eternizou-se em páginas, lembranças e notas musicais… Dele nos resta sua obra e inspiração de uma vida intensa vivida em plenitude.

    Em entrevista à Zuenir Ventura para a revista Veja, na década de 1980, Drummond, amigo e igualmente poeta, compartilhava uma admiração (recíproca, diga-se de passagem) pelo poeta-diplomata:

    “…invejo o conceito que o Vinicius teve de vida , de independência de espírito, de falta de compromissos com as convenções sociais…fazia o que queria e sempre com aquela doçura, com aquela capacidade de encantar que fazia com que as donas de casa mais severas o adorassem “.

    Vinicius veio à Bahia e a degustou nos anos 70, época em que o mundo vivia uma efervescência cultural, transcorridos processos de ruptura, de quebras de paradigmas e enfrentamento às repressões. Ele, como um transgressor nato, fazia jus ao tempo que lhe foi entregue; ele como artífice da palavra, deixou-nos um eterno legado. Todos deveriam conhecer a sua essência poética.

    Ao “branco mais preto do Brasil”, saravá!!!!!