Últimas histórias

  • Dos amigos, bons amigos e dos muito bons amigos

    Quando criança, tinha muita vontade de sentir, reciprocamente, que eu era a melhor amiga da minha prima Isis Gabriela, porque, na geografia dos meus afetos, ela ocupava esse posto. Entretanto, Isis tinha outras melhores amigas, inclusive uma que figurava no primeiro lugar da lista, que não era eu. Tal constatação me deixava abalada, talvez pelo temperamento canceriano, marcado por apego extremo, melancolia e pitadas de drama, como diria o amigo e astrólogo particular, Sérgio Chaves. Ver-me em segundo lugar – ou seria terceiro? – era como uma facada no coração.

    Lembro como me sentia triste quando a ouvia dizer, com orgulho, que Mirna era sua melhor amiga. Mirna, a propósito, era uma menina super cool, filha de cearenses que, não sei porque cargas d’água, foram morar em Assú, interior do Rio Grande do Norte. A família já despertava interesse só por ser da metrópole, Fortaleza, e, para complementar meu drama, a menina era culta, moderna, antenada com o estilo dos anos 2000.

    Além de ser de fora, como costumamos falar por estas bandas, Mirna fazia natação, balé, aula de dança… Enfim, Mirna era muito legal. Por isso, eu sofria tanto por não ser a melhor amiga de Isis quanto por não ser amiga de Mirna.

    Sentia-me como Eduardo quando conheceu Mônica. Ela fazia medicina, falava alemão, gostava de Bandeira, Bauhaus, Van Gogh, Mutantes, Caetano e Rimbaud; enquanto ele fazia aulinhas de inglês, gostava de novela e jogava futebol de botão com o avô.

    Eu tinha mais ou menos 10 anos de idade, não estudava inglês, não sabia jogar futebol de mesa. No máximo, assistia Malhação, novela das 17h30, na Globo, febre entre os adolescentes da época. Mirna tinha um fichário da revista Capricho, um walkman e uma mochila, coisas que só não a tornavam a criança mais famosa da escola porque ela não era falante nem comunicativa e estava sempre reservada ao mundo de amigos íntimos, incluindo minha prima.

    Naquele tempo, eu iniciava uma nova fase da minha vida, mudando para Assú, minha casa a partir de então. Passei minha primeira infância em Mossoró, por causa do trabalho de meu pai na antiga Etfrn, hoje IFRN, e, somente por volta de 2001, voltamos à Terra dos Poetas.

    Pois bem. Como Mirna era muito legal e interessante, mas introvertida, ao contrário de mim, acabei levando certa vantagem. Em pouco tempo de escola, eu já liderava a maior parte dos grupos de amigos que integrava e entendia que ter um melhor amigo é bom, mas ter vários bons amigos é melhor ainda.

    Muitos anos depois, adulta, conheci Caby da Costa Lima, um dos melhores seres humanos com quem já cruzei nesta vida. Para mim, ele tinha um caráter meio paterno ou até mesmo de padrinho, considerando as tantas camadas que representa até hoje, a ponto de ter me deixado como presente ser meio madrasta, meio irmã da filha, Alice Marina, a quem chamamos de Alicinha, desde sempre, por influência dele.

    Caby costumava dizer que, na vida, existem amigos, bons amigos e muito bons amigos. Graças a Deus, mesmo com o pouco tempo em que convivemos, ele me disse que eu estava entre esse seleto grupo dos muito bons amigos.

    Sempre me pego pensando sobre essa coisa de ter amigos, do quanto isso já me pareceu doloroso, por não ser considerada por algumas pessoas da forma como eu esperava, mas também o quanto me foi libertador.

    Hoje, sei exatamente quem são meus amigos, meus bons amigos e meus muito bons amigos. No grupo dos muito bons amigos há uma lista restrita e íntima, guardada bem aqui dentro. Não compartilho os nomes, mas afirmo, com segurança, que posso contar com tais pessoas em qualquer situação.

    Dos bons e dos que considero apenas amigos, há também figuras importantes e queridas cujos nomes igualmente preservo para não incorrer no risco da omissão.

    De minha parte, posso dizer apenas, mas com certeza e convicção, que sou muito boa amiga dos amigos, dos bons amigos e dos muito bons amigos, sem distinção.

  • Na terra que deu a primeira eleitora ao Brasil

    Em 2018, eu cursava Direito na Universidade Potiguar (UnP) e, logicamente, não tinha direito a voto nas eleições da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Naquele ano, Bárbara Paloma venceu a disputa e se tornou a primeira mulher a presidir a subseccional de Mossoró.

    Como não podia votar, assisti respeitosamente Cid Augusto, que já era advogado, declarar apoio à chapa adversária, que tinha um homem na liderança. Era a opinião dele para a ocasião. Mesmo querendo muito contribuir de alguma forma para aquele momento histórico, ainda não era a minha vez de estar ativamente no caminho da luta por mais mulheres em espaços de poder na instituição.

    Lembro muito bem que, durante a campanha, encontrei por acaso com Paloma e Glauber, que eram os candidatos, no escritório de doutora Liana, bem em frente ao nosso, na Travessa O Mossoroense, 42. Tinha ido entregar documentos de uma diligência.

    Bárbara estava de barriga já crescida, a espera de Bianca. Mesmo sem me conhecer – e sabendo que eu não tinha condições de lhe oferecer qualquer voto, pois Glauber, seu vice-presidente, havia sido meu professor e avisara da minha condição de estudante –, ela me tratou com carinho, respeito. E eu fiz o que podia, desejando, do fundo do meu coração, uma boa sorte.

    Segui meio inconformada por não votar nela, não minto. Queria ter podido fazer valer a luta daquela mulher, que, para completar, aguardava mais um filho. Bárbara, contudo, enfrentou toda uma campanha eleitoral, que, mesmo não sendo partidária, é tão difícil quanto, e isso carregando um bebê na barriga, um escritório, a maternidade, o casamento. E saiu vitoriosa.

    A eleição seguinte realizou-se em 2021, e aí eu já advogava e exercia plenamente meus direitos de eleitora.

    Num domingo à tarde, recebemos a inesperada ligação de Vânia Furtado, minha amiga querida, para me comunicar que estaria colocando seu nome à disposição para a disputa do comando da OAB de Mossoró e que convidaria Cid Augusto para integrar a chapa como postulante a um dos assentos no conselheiro subseccional.

    Mesmo com a sua conhecida aversão a disputas políticas, mas em nome do nosso carinho por ela, Cid concordou, e isso fez com que eu caísse de cabeça naquela que seria minha primeira campanha de classe.

    Engajei-me, pedi voto, briguei, protestei pelos ataques e principalmente pela violência política de gênero sofrida por Vânia. O resultado, entretanto, não foi como esperávamos.

    Eram três chapas na disputa. Venceu a que trazia Hermeson Pinheiro e Diana Paula na cabeça. Em segundo lugar ficou o grupo de Luiz Carlos e Helena Belmont e, em terceiro, o segmento representado por Vânia Furtado e Victor Lobato.

    Luiz Carlos e Helena Belmont eram apoiados por Bárbara Paloma, que demonstrou não só os bons resultados de sua gestão, mesmo afetada pela pandemia, como também se consolidou enquanto liderança. A diferença do primeiro para o segundo colocado, vale dizer, foi menor que 10 votos.

    Seguimos com o respeito à escolha da maioria.

    A gestão que venceu as eleições de 2021 segregou a OAB de Mossoró.

    Atividades institucionais e boa recepção, só para aliados.

    O palanque nunca foi desfeito.

    Como os integrantes dos dois grupos de oposição passaram a ser rechaçados após o final da campanha, acabaram se unindo.

    Inúmeras vezes, presenciei a única mulher até então eleita presidente daquela subsecção ser silenciada, ser esquecida, ser apagada, durante eventos institucionais.

    Situações assim eu presenciei e também vivi, a ponto de me sentir mal de frequentar o ambiente que devia ser a cada da advocacia, independentemente das escolhas eleitorais de cada profissional.  As atitudes com outras mulheres, entretanto, acabavam me trazendo mais revolta do que as que faziam a mim mesma.

    Naturalmente, e eu nem sei dizer a partir de qual momento, eu e Paloma fomos conversando, trocando figurinhas do dia-a-dia, da maternidade, da profissão, do casamento, construindo aquilo que eu verdadeiramente conceituo como sororidade. E assim chegamos a 2024, diante de mais uma eleição institucional. 

    Logo no início do ano, encontrei-me com o amigo Américo Bento, que me deu a excelente notícia do diálogo entre os grupos vencidos na eleição passada, e que possivelmente surgiria a chapa Lorena e Américo.

    Para minha alegria, mais uma mulher entregando seu nome à disputa, e, como um bálsamo para os meus ouvidos, ao ouvir a notícia de Américo, Cid Augusto, que estava ao meu lado, anunciou de pronto: “Se a chapa for essa, terá o meu voto. Estaremos com vocês”.

    Meses depois, o atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Norte, Aldo Medeiros, que foi meu candidato em 2021, anunciou a formação da chapa que teria seu apoio, Carlos Kelsen e Bárbara Paloma.

    Com todo respeito a Carlos Kelsen, a quem tive a oportunidade de conhecer apenas durante a campanha, e, não obstante as boas impressões que me causou, apostei na chapa porque conheço Bárbara Paloma. Por ela, anunciei imediatamente que estaríamos juntas. Lembro quando a encontrei a primeira vez após o anúncio da candidatura e logo abri o sorriso para anunciar de peito aberto: “Bárbara, minha amiga, tenho orgulho de lhe dizer isto: meu voto é seu!”.

    E assim trilhamos um caminho, que eu sei bem o quanto é difícil, tanto para Lorena, que foi atacada, agredida, duvidada, diminuída, inclusive por outras mulheres; quanto para Paloma, que teve que se desdobrar em mil para estar em vários lugares, dar contas das tarefas de mãe, esposa, profissional e candidata.

    Houve mentiras, tentativas de silenciamento e um caminho árduo, é verdade. Mas, desta vez, eu estava lá, com elas, oferecendo o meu apoio, o meu afeto, as minhas posições e principalmente a minha coragem para lutar.

    Mesmo que essa vitória não tivesse acontecido nas urnas, já tinha acontecido para mim.

    Eu estava fazendo parte do lado que eu acredito ser o melhor, das pessoas que eu confio que farão o melhor, das mulheres que eu sei que unirão forças em prol de outras mulheres.

    Algumas situações nos dão o triunfo também por justiça.

    E assim, no final da tarde de 25 de novembro de 2024, na avenida Rio Branco, ao som de muitos gritos, choros, risos e nervosos, eu segurei as mãos de Bárbara Paloma e de Lorena Gualberto para declará-las vitoriosas na caminhada e nas urnas.

    A partir de janeiro de 2025, na terra que fez de Celina Guimarães Viana a primeira eleitora deste País, teremos empossada a segunda mulher democraticamente eleita para presidir a subseccional da Ordem dos Advogados do Brasil de Mossoró. E também teremos, na vice-presidência da Seccional da OAB, no Estado do Rio Grande do Norte, a primeira mossoroense a estar ali.

    Sigam seus caminhos, minhas amigas. Desta história, eu me orgulho de fazer parte.

  • O que eu vi e vivi em “EssePê”

    O avião pousou, chegou conosco uma garoa, para dar as boas-vindas e fazer jus à fama que deram àquela terra. Frio no final da tarde. A fome associada à indicação do motorista que nos levou do aeroporto até o endereço que nos abrigou por alguns dias, fez com que conhecêssemos a pizza da Casa Aurora. Deliciosa, por sinal, mas o mais gostoso era o lugar, uma tradicional cantina paulistana, com direito a comida boa e sotaques de todos os lugares ao pé do balcão.

    Caminhamos alguns metros para conhecer o Bar Brahma, o mais movimentado com o qual havíamos nos deparado até então. Na minha inocência, pensava que o que chamava a atenção do público era o ambiente, o samba ouvido de longe, mas ao acharmos a entrada descobri a verdade: toda a procura tinha a ver com a localização, pois o bar – bem frequentado – fica no cruzamento das avenidas Ipiranga e São João, onde as pessoas queriam tirar fotos com a placa que fica na calçada.

    Entre os seguranças e as pessoas que se enfileiravam para entrar no boteco, até eu parei para fazer minha foto, enquanto aguardava os convidados de Fátima serem recepcionados e chegasse a nossa vez de descobrir o que de bom tinha na parte de dentro. E tinha muito samba. Tanto que me fez comprar, de imediato, dois ingressos para voltarmos ao lugar, dois dias depois, para vermos o show do Demônios da Garoa.

    No outro dia pela manhã, mesmo espremidos entre o trabalho online e a situação que originalmente nos levou a “Essepê”, o congresso de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) daquela capital, conseguimos desbravar uma parte da cidade.

    Começamos pelo Mercado Central, que é bonito, sem dúvida, mas confesso que não vi muita graça. Seguimos para a famosa 25 de Março e descobri que lá não tem tudo como eu achava que tinha, principalmente uma coisa valiosa que eu precisava muito, um transformador de voltagem elétrica para que eu pudesse lavar meu cabelo e usar meu secador. Essa necessidade nos fez perder horas procurando e só conseguir resolver, de verdade, quando encontrei, em um shopping na Avenida Paulista, um secador com dupla voltagem, que servisse tanto para lá quanto para cá.

    Desse primeiro capítulo, o momento mais especial foi assistir Cid debruçado sob os livros, velhos e novos, raros e comuns, em cada sebo que entrava. Parecia que ele estava no parque de diversões.

    Segundo dia, de congresso e passeio, saímos para o bairro da Liberdade, onde o comércio me chamou atenção pela variedade, inclusive maior e melhor do que a da 25 de Março. O lugar também tinha um jeito de casa, mais acolhedor, aconchegante. Apesar de pouca demora, gostei e voltarei com mais calma.

    Na corrida contra o tempo, partimos para a Estação da Luz, um lugar lindo, cheio de história e que nos leva também ao Museu da Língua Portuguesa, o lugar mais legal que visitei na Terra da Garoa.

    O museu é cheio de experiências incríveis para quem visita. Eu, por exemplo, viajei na memória quando ouvi a voz da Emília explicando ao Visconde de Sabugosa como as palavras se formavam. Chorei e tudo. De emoção e de sofrimento quando tive que abrir os olhos diante do Sol depois de passar uns 30 minutos numa sala escura, vivenciando uma das atrações. Sofrimento de que tem sensibilidade visual.

    À tarde, voltamos para ao trabalho. Saímos do congresso à noite e resolvemos voltar para o apartamento caminhando, pois aquela altura o meu senso geográfico já havia me deixado completamente situada. O resultado foi que, mesmo com o GPS, nos perdemos e uma caminhada que deveria durar oito minutos durou uma hora e meia, até que, finalmente, conseguimos chegar e nos preparar para o show cujos ingressos foram adquiridos ainda na primeira noite.

    Demônios da Garoa. Show impecável, músicos incríveis, mas o cansaço nos puxou pelo braço, logo após o fim da atração principal. Segundo Cid, a idade tem pesado, não há mais em nós o pique de antes para noites inteiras de boemia.

    Terceiro dia. Partimos para a obrigação, logo cedo, assistimos palestras, cumprimos o networking diário e, só então, seguimos para o turismo.

    Com primeira parada na Catedral da Sé, bela, imponente e gótica. Senti-me naquelas séries de época da NetFlix.

    Pegamos o metrô na praça bem em frente ao Tribunal de Justiça, cujo prédio tem a mesma estrutura gótica da Catedral.

    Fomos à Paulista tentar visitar a Livraria Cultura, que, para nossa tristeza, deixou de funcionar, e nos deparamos com um protesto enorme contra a violência manicomial.

    Com todo aquele furdunço não nos restou outra alternativa, a não ser almoçar no Mc Donalds, mas a sobremesa foi uma visita ao Masp.

    Teve Michelângelo, teve Tarsila e teve também fotografia do moinho de Macau, que estava lá no meio da exposição sobre Osvald de Andrade.

    Na volta ao apartamento, devido ao caos instalado na avenida por causa do protesto, que até então crescia, só tínhamos como voltar de metrô, e foi aí que eu realmente me senti numa das maiores cidades do mundo.

    Eu me deparei com a maior quantidade de pessoas que eu já vi em um mesmo lugar. Fiquei assustada, confesso, porque parei para perceber como de repente tudo pode se transformar num grande caos, bastando que apenas uma pessoa saísse do fluxo.

    Graças a Deus, a única coisa fora do fluxo que nos aconteceu foi não acertar qual a estação mais próxima do nosso aparamento e aumentar um pouco a caminhada, já que tivemos que atravessar a praça da bandeira para chegar do outro lado da rua e só então vermos a venda de Ben-Hur, que ficava bem na esquina da hospedagem. Dessa vez, a caminhada durou 15 minutos apenas.

    Na última noite, fomos jantar com a advocacia eleitoral paulista, que se despedia do congresso no Spaggethi Notte. Mesmo de longe, vi o parque do Ibirapuera onde pretendia fazer caminhadas, corridas e exercícios físicos. Não deu, fica para a próxima.

    São Paulo, você não é incrível como o Rio, mas é de fato uma cidade que não dorme.

  • VIDA LONGA AO SÍTIO CASA FORTE

    O Sítio Casa Forte é a residência de meu tio Arimatéia há muitos anos. Nem sei dizer quantos, mas lembro bem como aquele lugar começou a ser o refúgio dele.

    Do ponto de vista estrutural, reconheço, a propriedade está muito diferente da que eu guardo na memória. Agora, visivelmente melhor e mais confortável, possui outros cômodos, mais espaço, uma piscina grande de alvenaria. Confesso, entretanto, que o ambiente antigo me provoca certa nostalgia. Tem calor, tem gente e tem até cheiro intactos na memória.

    Quando fecho os olhos, vejo o pequeno espaço coberto, ensaiando uma casa, com aquele alpendre singelo, sem dizer dos pés de manga que serviam de abrigo para a cantoria. Ouço a voz de Silvana cantando Antônio Marcos, embora não enxergue quem toca o violão. Antônio Marcos era o cantor preferido de tia Conceição. Ela sempre fumava, daí o cheiro de cigarro atravessar a lembrança.

    As crianças – eu entre elas – geralmente brincavam na cascata feita de um cano azul longo, todo furado, e, na base, a estrutura redonda de cimento retendo a água que caía. Uma piscina, em nosso imaginário.

    A churrasqueira a todo vapor. O gosto da linguiça assada na brasa e da farofa, que, no auge da minha seletividade alimentar, além do leite com Nescau na mamadeira, era a única coisa que eu comia.

    À tarde havia desfile de moda. A produtora, minha prima Aryane, organizava a música a ser reproduzida no toca-fitas vermelho que parecia de brinquedo e, se não me falha a memória, pertencia a outra prima, essa a minha irmã de alma e coração, Isis Gabriela.

    Eu e Bebela, como a chamávamos carinhosamente, erámos as mais novas. Então, sempre tínhamos os direitos reprimidos em relação às mais velhas, com argumento de que erámos menores. Sei que essa regra é comum até hoje em ambientes com crianças de idades variadas, e não adiantava revolta, porque eram as diretrizes da organizadora do evento e tínhamos de seguir.

    Sempre havia muitas meninas, mas Aryane capitaneava a equipe, considerando ser a única com prerrogativa de pegar as toalhas de mesa da mãe dela para que nós usássemos como vestido, a fim de que o evento de moda fluísse na mais perfeita ordem e padrão do Sítio Casa Forte.

    Geralmente no meio do desfile surgia a voz de Ana Maria, mãe de Aryane, esposa do meu tio e dona das toalhas, que soltava logo a indagação:

    – Quem é que está chafurdando com as minhas toalhas?

    Nessa hora, todo mundo corria para um lado diferente, com medo da fúria de Ana Maria.

    As mesas das quais ela tanto queria preservar as tolhas eram de ferro, pintadas de azul, com propaganda de cerveja no tampo, a exemplo das costas das cadeiras, que, se não for traição de minha memória, era a logomarca da Antártica, com dois pinguins, cerveja mais famosa do Brasil naquele período.

    Na hora que se iniciava o tumulto, enquanto as meninas corriam com medo da briga que se anunciava e do possível castigo, Aryane recorria à última instância e suplicava o socorro do pai, que sempre salvava a parada e liberava, a contragosto da esposa, a continuação do Casa Forte Fashion Week.

    Pipoca, sempre à tarde. Era o lanche. Depois, a gente voltava à piscina imaginária, onde ninguém percebia o anoitecer.

    Hoje vou poucas vezes por lá, em geral para buscar meu filho, Guilherme, que igualmente a mim, na infância, ama estar ali, aproveitando a companhia do primo Júlio, filho de Ary e sobrinho da nossa eterna produtora de moda.

    Fico feliz quando Guilherme está por lá, desejando que ele também construa memórias e possa sentir, sempre quando voltar, que ali é um lugar especial.

    Vida longa ao Sítio Casa Forte.

  • “Mea Culpa”

    Há quase oito anos, por empréstimo tomado da biblioteca de Cid Augusto, li o livro “Mea Culpa”, de Doca Street, assassino de Ângela Diniz, que conta a própria história de vida, incluindo o trágico momento do crime ocorrido aos 30 de dezembro de 1976. Trágico para Ângela, que perdeu a vida aos 32 anos, com um tiro na nuca e três no rosto, porque Doca morreu de causas naturais em 2020, aos 86.

    O caso gerou reviravoltas no movimento feminista no Brasil, que, nos anos 1970, estava engatinhando por aqui. De lá até hoje, houve avanços significativos no que diz respeito aos direitos das mulheres, à ocupação de espaços de poder, mas ainda há muito a se expandir e a se conseguir para que alcancemos a paridade, para que quebremos os elos do machismo arraigado estruturalmente na sociedade.

    Por isso, abraço a causa e faço dela uma bandeira em todos os meios a que pertenço, e, no profissional, não poderia ser diferente. Tenho insistido, por exemplo, para que mais advogadas trabalhem na advocacia eleitoral, meu grande nicho de atuação, considerando que, no Rio Grande do Norte, as mulheres geralmente não atuam nesse ramo.

    E isso não é coincidência ou falta de vontade delas, é machismo mesmo. O ambiente da advocacia, que já é hostil para nós, acentua-se nesse ramo, porque os homens, para agravar a situação, circundam os grupos políticos como forma de impor suas contratações, sem desconhecer que eles, por outro lado, também são hegemônicos na direção dos partidos.

    Em março de 2023, a Folha de S.Paulo divulgou matéria mostrando que, dos 53 partidos políticos registrados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), apenas cinco são dirigidos por mulheres. Com essa tendência, a supremacia masculina na atuação jurídica dos partidos políticos é só mais um motivo para que nesse ambiente o machismo reverbere, refletindo na advocacia eleitoralista.

    Para comprovar essa afirmativa, há alguns dias critiquei, nas redes sociais, um evento em que os seis advogados palestrantes eram homens, mesmo existindo muitas de nós, mulheres advogadas, em atuação constante, firme e de muito profissionalismo.

    Exposta a crítica, observando a irrefutável exclusão feminina do evento, fui imediatamente repreendida por um colega, que, além de não ter lugar de fala nem conhecimento sobre as nossas lutas cotidianas em um País misógino, afirmou que eu precisava pedir desculpas por haver sido injusta no comentário.

    Segundo ele, que, a propósito, estava entre os palestrantes, não havia profissionais femininas ali porque não existe nenhuma mulher com atuação relevante no direito eleitoral norte-rio-grandense. E acrescentou: os homens convidados a participar do evento tinham conseguido espaços por seus méritos, coisa que eu deveria me esforçar para conseguir.

    Na hora da troca de mensagens, encontrava-me de saída para uma festa, sem tempo, disposição ou vontade para discutir com alguém que não sabia o que estava dizendo e que, para completar, não conhecia o mínimo de mim para supor, na crítica impessoal, a pretensão de ser convidada para um evento no qual as mulheres eram tidas como irrelevantes.

    Fui à festa, curti, aproveitei. Vê-se, entretanto, até pelo teor do texto, que o incômodo permanece. Não por eu dar importância ao que pensam desta advogada que trabalha de sol a sol para conquistar e ampliar espaços profissionais, com perseverança, dignidade e respeito ao outro; mas sim pelo que representa a constatação errônea do colega sobre as eleitoralistas potiguares, no contexto da luta por igualdade de gênero na política.

    O episódio, em compensação, serve-me de estímulo na busca por mecanismos capazes de lançar luzes sobre a advocacia eleitoral feminina do Rio Grande do Norte, que existe, sim! É atuante, sim! E tem muita relevância, tanto na capital quanto no interior.

    Voltando ao assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, anoto que a história desse feminicídio ocorrido há 47 anos veio parar na crônica de hoje apenas como exemplo de que a força de mulheres unidas, em torno de um propósito, pode causar impactos inimagináveis na sociedade.

    Do mesmo modo que a pressão das feministas dos anos 1970 modificou o resultado de um julgamento com forte conotação sexista; da maneira que as deputadas do chamado “Lobby do Batom” implementaram direitos na Constituição de 1988; e por tantas outras vezes nas quais, unidas, vencemos lutas e conquistamos espaços, tenho plena certeza de que, muito em breve, a presença da mulher na advocacia eleitoral será respeitada.

    Até lá, quem quiser que faça o seu mea-culpa.

  • Hoje vi uma face de Deus

    Depois de muitos afazeres da manhã, resolvi parar para tomar café em um restaurante, porque já estava muito atrasada e ainda tinha muitos problemas para dar conta. Cheguei apressada, fiz meu prato e, quando sentei para comer, apareceu-me uma moça, bem jovem e grávida, olhando-me e pedindo dinheiro. Eu não tinha dinheiro, mas ofereci comida – o pessoal do restaurante também já estava providenciando – e resolvi conversar com ela.

    – Oi, como é seu nome?
    – Maria.
    – Quantos ano você tem, Maria?
    – 18.
    Ela me respondia sempre objetiva e rapidamente, sem me observar muito. Acho que estava com medo, mas prosseguiu no diálogo.
    – E tem outros filhos? Ou este é o primeiro?
    – Tenho mais dois.
    – E moram com você?
    – Não. Um mora com a minha mãe e o outro com a outra avó, mas esta vai ficar comigo. Eu sempre quis ter uma menina.
    – Ah, sim. Você está esperando uma menina. Que bom!

    Foi quando avisaram que a comida estava pronta e ela se apressou para sair.
    Nesse meio tempo, uma outra mulher, que também tomava café, veio ao seu encontro e lhe entregou uma quantia em dinheiro.
    Ela se despediu de mim já com outro aspecto, diferente do que percebi em seu rosto quando a cumprimentei. E saiu sorrindo.

    Embora sentisse uma certa alegria por perceber que a moça saiu dali melhor do que ao chegar, também fiquei triste, angustiada, o que me gerou ainda mais pressa para ir embora.
    Entrei no carro desesperada e desabei no choro.
    Senti culpa, senti vergonha, senti que fiz pouco.
    Tive vergonha porque, mesmo de maneira involuntária, sou privilegiada diante dela.
    Senti culpa por não ter feito algo a mais por aquela menina assustada.
    Senti pena. Senti dó. Como pode uma menina tão jovem já ter enfrentado três gestações?
    Pergunto-me até agora o quanto não deve sofrer, o quanto as pessoas, principalmente as mulheres, não a julgam dizendo coisas do tipo: “A culpa é dela!”, “Podia ter se prevenido!”, “Só arruma bucho hoje em dia quem quer!”.

    Contudo, trata-se apenas de uma menina que fez sexo ainda menina. Sim! Pelo que me contou, sim, mas que não deixou de ser apenas uma menina, que já foi ou pode até ainda ser inocente a ponto de engravidar três vezes.

    Eu só pensava que no lugar dela podia ser eu, com fome, com medo e principalmente sem saber como reagir. Foi quando me lembrei que antes de descer do carro e sentar naquela mesa eu rezava e pedia pra ver a face de Deus.

    Ela apareceu. E por um momento, eu nem havia me dado conta.

  • O dia em que eu conheci Maria Luiza

    Semana passada, por questões de trabalho, estive na Escola Municipal Hermenegildo Bezerra de Oliveira, na comunidade de Palheiros, zona rural de Assú/RN. Naquele dia, saí de casa apressada e, por essa razão, levei dentro de minha bolsa uma tangerina para fazer um lanche, porque sabia que essa visita, provavelmente, demoraria bastante.

    Como esperado, enfrentamos uma manhã de muito trabalho. Em determinado momento, contudo, as reuniões não exigiam mais a minha presença, motivo pelo qual resolvi sentar no pátio da escola para comer a dita tangerina.

    Provavelmente já havia se encerrado o intervalo e apenas uma turma brincava no pátio da Escola. Sentei numa mesa daquelas típicas de refeitório, que tem um banco largo e comprido atrelado a ela. Coloquei a tangerina sobre a mesa e comecei a observar o ambiente, mas sem ainda sentir necessidade de começar a comer.

    Foi quando, ofegante, apareceu uma menina serelepe, e começou a conversar:

    – Oi, como é seu nome?
    – Oi, meu nome é Clarisse. E o seu?
    – Maria Luiza.
    – Você tá fazendo o que aqui?
    – Vim com uma equipe de trabalho resolver umas coisas.
    – Ah, sim! E você faz o que?
    – Eu sou advogada.

    A partir daí, confesso que o diálogo começou a me ser surpreendente, porque jamais imaginei que Maria Luiza fosse tão astuta:

    – E é? E você já resolveu quantos casos?
    – Vixe! Nem sei, mulher. Já foram tantos que não dá pra contar. Mas são muitos.
    – Sim… tá certo. E você é advogada de quê?
    – Tenho duas áreas de atuação, criminal e eleitoral.
    – E você tem sua própria empresa de advogados ou trabalha pra uma empresa?
    – Eu faço as duas coisas. Tenho meu próprio escritório, mas também sou contratada pela prefeitura de Assú. Aliás, é por isso que estou aqui.
    – E você conhece Lula?

    Refleti um pouco sobre a resposta para saber sobre quem ela realmente estava falando e continuei.

    – Lula? Que Lula?
    – O presidente, ora! Responde ela em tom de espanto por não crer que eu não sabia quem era Lula.

    – Pessoalmente, não. Só pela televisão mesmo. Mas você sabia que em Assú também tem um Lula?
    -E é? Mas ele é presidente?
    – Não. Ele é dentista.
    – Então, não quero conhecer ele não. Mas e o outro Lula, hein? O presidente. Ele não mora aqui no Brasil não, né? Por isso que você não conhece ele.
    – Não, mulher, ele mora aqui no Brasil, sim. Mora em Brasília, que é a capital do Brasil.
    – E é? Sabia não.
    – Pois é.

    Depois, ficamos em silêncio, até que a tangerina, ainda intacta, foi trazida ao cento da conversa pela pequena interlocutora.

     – Mulher, você sabia que tangerina é minha fruta preferida?
    – Sabia não, mas, já que você disse, vamos comer essa aqui juntas.

    E comecei a descascar a fruta para dividir com ela. Depois que lhe entreguei a metade, Maria Luiza saiu em busca de seus amigos, sem nem se despedir, mas feliz da vida com sua fruta preferida.

    Sem intenção e sem saber, Maria Luiza me ensinou muito naquele dia.

    Me ensinou sobre partilha, sobre inocência, sobre inteligência e principalmente sobre como podemos ser felizes com pequenos gestos e coisas.

    Maria Luiza, que você cresça e nunca perca sua essência de ir em busca do que quer. Espero lhe encontrar no futuro e que eu ainda consiga enxergar em você o mesmo brilho no olhar daquela menina curiosa e inteligente, como a da última sexta-feira.

  • Rivalidade

    Em pleno mês de conscientização e combate a violência doméstica, o conhecido Agosto Lilás, eu comecei a ouvir o meu mais novo xodó entre as plataformas de áudio digital, o podcast Collor vs Collor, produzido pela Rádio Novelo e apresentado pela jornalista Évellin Argenta, que narra a história da briga familiar que derrubou o governo do primeiro presidente eleito democraticamente pelo povo brasileiro, após a derrubada do Regime Militar. E agora, você que está lendo essa introdução deve estar se perguntando o que uma coisa tem a ver com a outra? Mas calma, que você já vai entender.

    A trama narrada no podcast conta como fonte principal das informações as fitas k7 gravadas, pela jornalista Dora Kramer, durante o processo de escrita do livro que ela ajudou Pedro Collor a escrever em 1993.

    Toda essa introdução, a mistura com o mês de agosto e a temática da violência contra mulher, nada mais é do que a minha perspectiva sobre todas as versões que cada uma das pessoas ouvidas na produção dão sobre Tereza e Rosane Collor. Tidas por todos como rivais, por supostamente amarem Fernando, que é bom lembrar era esposo de Rosane e cunhado de Tereza.

    O que me chama atenção durante toda narrativa é essa rivalidade que todas as pessoas descrevem entre as duas, mesmo não existindo nada que comprove que houve realmente um romance entre os cunhados, e principalmente o ar de sedução, beleza, charme e elegância que dão a Tereza e ao mesmo tempo a mediocridade, falta de carisma, deselegância que dão a Rosane.

    Parece que as duas mulheres ali envolvidas, era apenas um símbolo de beleza e carisma, ou o oposto disso, um jogo com requisitos, o que uma tem a outra não tem. E é como se para todo mundo que dá seu depoimento, lá nos anos 90, essas fossem as únicas coisas relevantes que podia ser dito sobre elas.

    O que explica de onde vem essa nossa cultura de rivalidade entre mulheres e a predominância do homem como sendo a figura que detém as capacidades técnicas e intelectuais. As mulheres sempre caberão apenas as tarefas de distribuição de beleza e administração dos sentimentos e simpatias.

    É claro que depois desses 30 anos tivemos muitas evoluções, que essa coisa de reduzir a mulher, principalmente quando ela é parceira de um homem que detém bastante poder, ou visibilidade, a apenas uma figura de trófeu, mudou muito, as mulheres ganharam mais autonomia, buscaram evoluir, se emancipar, mas a verdade é que no imaginário popular ainda há muita gente que alimenta essa cultura.

    Se você digitar no google os nomes de Tereza e Rosane vai encontrar diversas matérias, atuais inclusive, que ainda as trazem como uma espécie de rivais e que também descreve a viúva de Pedro Collor como a musa do impeachment. Ou seja, avançamos sim, lutamos por mais equidade, garantias, espaço? Com certeza, mas ainda predomina para muitos que nós mulheres, estamos aqui nesse mundo, apenas para sermos coadjuvantes.

    Eu busco por meio do exercício da advocacia reduzir esses discursos, ampliar nossos espaços, mas também entendo que o caminho será longo, contudo, plenamente alcançável.

  • ESCOLA

    Às vezes me pego pensando como seria a minha vida se não tivesse tomado algumas decisões. Como seria se tivesse agido de outra forma diante de determinados problemas. Essas reflexões geralmente acontecem perto de datas comemorativas.

    Venho refletindo sobre essas coisas porque há pouco mais de 20 dias fiz trinta e um anos e já se aproxima o décimo primeiro aniversário de Guilherme, meu filho, que provavelmente será único.

    O que teria acontecido se os caminhos e oportunidades que me apareceram não tivessem me trazido até aqui?

    Poderia não ter casado duas vezes, poderia não ter sido mãe, poderia ter me formado mais cedo, poderia ter viajado o mundo inteiro, poderia não nunca ter saído de onde estou.

    Muita coisa poderia ter acontecido de uma maneira diferente. Entretanto, sem as experiências que vivi, alegres ou triste, fortes ou fracas, boas ou ruins, eu não seria quem sou.

    Olhando para o passado, percebo que o caminho que percorri pode não ter sido o mais fácil, mas, com certeza, foi o que formou a minha personalidade, o meu caráter, o meu jeito de ver a vida e as pessoas, e que também influencia na minha reação diante de cada obstáculo.

    Em determinadas ocasiões, sinto-me forte, resistente; em outras, penso que sou um balão cheio de ar prestes a encontrar uma agulha bem-afiada.

    Em certos momentos, os problemas encontraram em mim uma rocha; em outros, estava eu vestida de balão quando a agulha esbarrou na pele.

    Não tenho como prever o futuro. Do passado, contudo, tento trazer ensinamentos valiosos para o que ainda virá, para tentar não errar naquilo que eu sei que já não posso, para não me punir pelo que passou. O passado me ensinou muito, principalmente com os erros.

  • Pão doce de afeto

    Dizem que, ao longo da vida, construímos memórias falsas a partir de histórias que nos contam sobre algo que vivemos. Há, portanto, coisas que realmente lembramos e outras que, de tanto ouvirmos, reproduzimos.

    Embora muitas vezes meus pais me falem sobre isso, tenho certeza de que é uma lembrança real, não só por conseguir fechar os olhos e lembrar a situação, mas também pelo que ela me faz sentir.

    Quando nasci, meus pais moravam em uma casa no Dom Elizeu, Em Assú/RN, e a rua era super movimentada, cheia de vizinhos, de crianças, pessoas com quem convivo até hoje e que deixaram marcas felizes em minha vida. Mas a lembrança mais terna que tenho daquela rua é a do meu Vovô do Pão.

    Vovô do Pão era um senhor que vendia pães em uma bicicleta e, todos os dias, no fim da tarde, estava na rua em que eu morava. Quando me avistava de longe, já abria o sorriso.

    E que sorriso!

    Escrevo e vejo nitidamente aquele sorriso na minha frente. Lembro a forma como parava a bicicleta e se virava sem descer da sela, para tirar o meu pão doce do cesto. Depois, abaixava-se com o rosto em minha direção para ganhar um beijo, que ele retribuía com outro beijo em minha cabeça, ou na minha mão, ao me entregar o prêmio, um pão doce que brilhava de açúcar e também de afeto. 

    Cresci, construí outras memórias afetivas, mas essa me marca profundamente.

    Quando como pão doce, sinto o adoçar na boca e no coração, porque aquele pão, todos os dias, não era só um pão, era a demonstração de amor puro e de afeto gratuito de alguém no mundo por mim. Alguém que não precisava, mas que me demonstrava uma fraternidade que até hoje me fortalece.

    Eu não sei o nome do meu Vovô do Pão, embora tenha encontrado com ele várias outras vezes depois de adulta. Também não sei dizer se ele continua vivo, porque já não o vejo há bastante tempo. Onde quer que ele esteja, entretanto, nunca vou me esquecer da marca de amor que ele deixou em mim.

    Torço para que todo mundo possa um dia encontrar um Vovô do Pão, não para ganhar um pão doce e encher a barriga no lanche da tarde. Mas para que possa sentir o que é receber gratuitamente o afeto e a cordialidade sincera de alguém.

    Vovô do Pão, muito obrigada.