Últimas histórias

  • PEDAÇO DE MAU CAMINHO

    Por Marcos Ferreira

    Escritor

    — Aqui está bom — disse o garçom Raimundo.

    Quase cheia, a Kombi da Boate Planeta parou na esquina do ferro-velho. Madrugada de sexta-feira, mais de três horas. Geralmente ele é o último a ser deixado em casa. Dessa vez, porém, os colegas votaram por desviar da rota habitual e deixá-lo primeiro. “Queremos saber onde você se esconde, Raimundo”, dissera Augusto, o barman. Então, por gentileza e alguma curiosidade, o jovem garçom chegaria menos tarde.

    Chovera. O lugar estava desértico, alagadiço.

    — Tem certeza, Raimundo? — indagou o motorista Fernando, que se encontrava em sua primeira semana de trabalho, de maneira que ainda não estava muito familiarizado com a rota e os endereços de todos os empregados.

    — Sim. Minha casa fica bem ali.

    — Até amanhã, Raimundo!

    — Até. Obrigado a todos vocês!

    Abriu a porta corrediça, desceu com o paletó em cima do ombro. Só então se recordou do volume. Alguém avisou que o celular dele ficara sobre o banco. Deu meia-volta. A senhora Conceição, a boquirrota cozinheira, que estava na parte da frente, pareceu ter notado alguma coisa de suspeito. Pôs o olhar diretamente na linha de cintura do rapaz. Encabulado, Raimundo cuidou logo de cobrir a saliência com o paletó.

    — Vivo esquecendo esse telefone…

    O veículo foi-se embora com os demais colegas da boate. Entre estes estava Gabriela, operadora de caixa, vinte e poucos anos, responsável por aquele incidente erétil. Raimundo seguiu pela rua sem pavimento. Sua casa estava a uns duzentos metros. O músculo repetia espasmos. Naquela ocasião caía apenas umas gotículas de chuva. O inverno trouxe otimismos. Açudes encheram; a vegetação e a esperança dos agricultores reverdeceram; matou-se a fome e a sede dos bichos; salvaram-se superstições.

    “Será que a fofoqueira da Conceição percebeu alguma coisa? Se sim, deve estar falando sobre isso no caminho. Não duvido nada”, pensou.

    Um raio fotografou telhados, alumiou quintais. Veio a trovoada. Cães no entorno se puseram a latir, grilos emudeceram nos esconderijos. O vento agredia as árvores e os fios do posteamento, produzindo um assobio intermitente. Raimundo recordou-se da lástima em que se encontra o telhado de sua casa, a esposa a condenar-lhe a falta de ação. Desceu pela rua enlameada. Driblava poças d’água, o paletó dobrado debaixo do braço, as mangas da camisa acima dos cotovelos, a mochila pendurada ao ombro.

    Naquele instante lhe sobreveio uma sensação de perigo. Virou a cabeça, olhou o caminho às suas costas, os olhos vermelhos de sono piscando por trás das lentes de grau. Encontrava-se ali um homem desarmado, desprotegido, vulnerável; a mochila podia atrair meliantes. A criminalidade neste município prossegue aterrorizando o povo, enchendo os bolsos de proprietários de casas funerárias e centros de velórios.

    Na semana passada, durante um assalto a uma panificadora do bairro, o dono reagiu e foi morto pelo assaltante com dois tiros. O Jarbas leiteiro ficou sem a motocicleta e a carteira com todos os documentos no dia de Nossa Senhora Aparecida. Até o momento, pelo que se sabe, nem a moto nem os documentos apareceram.

    Não está fácil para ninguém. Um sargento da Polícia Militar teve a sua jovem e bonita esposa levada por um estranho. A digníssima foi embora com o desconhecido por vontade própria. Mas não tratemos aqui sobre senhoras que se extraviaram sob o nariz dos maridos. A negligência dos homens para com as mulheres é um caso antigo. Muitos se dão conta disso só depois de abandonados. O garçom corre esse risco.

    Raimundo começou a se sentir à vontade. A lembrança de Gabriela voltou a mexer com ele. A sensação de perigo se afogou nas poças d’água, as passadas caíram de ritmo. Já não tinha pressa de chegar quanto no instante em que descera da Kombi. Teve a impressão de que o vulto de Gabriela se apresentara diante dele, dissipando-se rapidamente. Buscou retê-la na memória. Recordou-lhe a covinha na ponta do queixo, os olhos verdes e os cabelos negros, a pele morena ainda exalando um perfume amadeirado, além da blusa a exibir um pouco das alças do sutiã. Não é de agora que essa moça o atrai.

    Meteu a mão no bolso esquerdo a fim de melhor acomodar o volume. Aí se apercebeu da umidade viscosa que ultrapassara o tecido do forro. Sungou os testículos, passou a mochila de um ombro para o outro. Durante o trajeto, que durou pouco mais de vinte minutos, supôs que a colega lhe pressionava uma das coxas. Isto o atiçou. Aproveitou os solavancos e o balanço do carro para retribuir o hipotético estímulo.

    Mas não passou disso. Manteve-se discreto, seguiu a prudência; nenhum gesto ousado. Ateve-se ao plano das hipóteses, ao vaivém das conjecturas. Imaginou-lhe a maciez da pele, o frescor dos lábios, a firmeza das coxas, seios, nádegas.

    — Meu Deus! Que pedaço de mau caminho!

    Aproximava-se das três e quarenta quando enfim Raimundo pisou a soleira de casa. Coçou a cabeça e olhou o céu. Deu algumas pancadinhas na porta e esperou. Algum tempo depois pôde ouvir o arrastar das sandálias vindo em sua direção. Por hábito, a mulher perguntou quem era. Ele respondeu. Francisca abriu a porta. Bêbada de sono, sem olhar no rosto do marido, deu-lhe as costas e retornou na penumbra.

    Raimundo entrou calado. Pôs o paletó e a mochila sobre o sofá. Encaminhou-se para a cozinha, abriu a geladeira e destacou algumas uvas do cacho que restara em uma bandeja de isopor. A chuva recomeçou com raios e trovões. De novo a lembrança de Gabriela invadiu a sua cabeça. Ele foi ao quarto, despiu-se, pegou uma toalha e rumou para o banheiro, a força do vício solitário a lhe inflamar os pensamentos.  

  • CIDADE MARAVILHOSA

    Por Marcos Ferreira

    escritormarcosferreira@gmail.com

    Hoje quero falar com você. Não por necessidade, mas apenas a fim de lhe provocar de algum modo. Ou de me sentir menos solitário neste velho quebra-cabeça que é a escrita. Então resolvi lhe escrever esta cartinha sem revelar o destinatário. Sei, evidentemente, que essa coisa de redigir cartas saiu mais de moda do que honestidade de políticos. Há exceções, fiemos que sim, contudo a política é o coletivo de gatunos e mentirosos. Isso ocorre tanto na direita quanto na esquerda.

    Apesar dos pesares, torno a dizer, existem os bons políticos. E esses, naturalmente, estão fora de moda. Neste pacato município, como num conto fantástico, só há políticos bonzinhos, honestos, homens e mulheres comprometidos com a coletividade. Não podemos reclamar de nada dos nossos trabalhadores engravatados. Não! De forma alguma! Aqui não tem obra superfaturada ou rachadinhas.

    Precisa ver as nossas ruas e avenidas. São um tapete. Nenhum buraco, nenhuma cratera. Tudo nos trinques, tratado de forma responsável. Talvez eu escreva lhe contando essas coisas somente para lhe fazer inveja. Sei que aí, na sua Pasárgada, a situação está na mais completa normalidade. Ou seja, igual à bandalheira do resto do País. Aqui, não! O povo vive em estado de graça, feliz com os seus representantes. E a cultura?! Ah, meu amigo! A cultura é tratada a pão de ló. Até os escritores, excluído e menosprezados Brasil afora, têm absoluta atenção dos nossos gestores.

    Não há, repito, o que maldizer. A saúde pública está esbanjando saúde. O funcionalismo municipal anda com um sorriso de orelha a orelha. A segurança está sempre atenta, no entanto a criminalidade é praticamente zero. Nem sei lhe dizer quanto tempo faz que não registramos um furto ou homicídio.

    Representamos um modelo de civilidade. Nosso solo não sabe o que é sangue. O desemprego foi erradicado. Daí que não existem assaltos à mão armada. Muito menos pessoas nos semáforos com cartazes suplicando por comida. Não tem sem-teto, mendigos nem superpopulação de cães e gatos sem a assistência de um castramóvel. Somos um povo cordial, hospitaleiro, de uma pacatez bovina.

    Nosso padrão de sociedade é primeiro-mundista. A expectativa de vida nesta província é proverbial, de provocar ciúmes num Matusalém. Venha passar uma temporada em nossa urbe. Você vai se encantar e comprovar como a nossa administração e o nosso povo vivem em perfeita harmonia. É ver para crer.

  • MODESTA FORTUNA

    Por Marcos Ferreira

    Escritor

    Quando amanheceu nas lonjuras daquele lugarejo, ponto limítrofe entre a zona urbana e a rural, onde os raios da manhã surgiam mais cedo que na selva de pedra, a jovem senhora Ruth, de quarenta e um anos, dispunha apenas de uma soma hoje equivalente a trinta reais para adquirir o alimento para os filhos — dois meninos miúdos e três meninas maiores que os irmãos, todos com idades entre dez e quatro anos. Esta, portanto, a prole do carroceiro Pedro e da lavadeira Ruth.

    Era meados de 1980. A carestia campeava e impunha privações e infringia constrangimentos às famílias mais pobres daquela localidade de Barreiro Seco. Com as sombras a ocuparem a maior parte da precária residência, edificação composta de madeira e barro, a mulher desarmou a rede dela e a do marido, que já havia saído para o Centro, especificamente o entorno do Mercado Central, em busca de pequenos fretes. Algo incerto e minguado naqueles tempos de escassez. Não raro o senhor Pedro Soares, já pegando cinquenta anos, regressava de mãos abanando. Tirava o chapéu, pendurava-o numa ponta de ripa da parede, e meneava a cabeça negativamente perante Ruth. Com esse simples gesto ele não carecia de falar mais nada.

    Cedinho, então, as crianças começaram a acordar. Todas analfabetas, a exemplo dos pais. Àquela altura Ruth se antecipara e dera um pulo até a única panificadora nas imediações e adquirira boa quantidade de pães da véspera, que afinal de contas pensava-se tão nutritivos quanto os assados minutos antes e custavam a metade do preço. Daí a pouco o leiteiro gritou lá fora. Nesse dia, no entanto, os Soares tomariam apenas o café preto, cujo pó fora reaproveitado da tarde passada.

    A senhora Ruth desenrolou a esteira de palha sobre o chão batido da cozinha. Essas peças artesanais eram uma opção bastante utilizada pela gente pobre, quase sem mobília. Um tanto bamba, a única mesa de que dispunham não comportava todos. Na cozinha dos Soares, além de um fogão a lenha, cuja tisna enegrecia as paredes e as picumãs que rendilhavam o teto, contava-se com dois potes de barro para água de beber e cozinhar. Existia, ainda, um paneleiro de metal enferrujado. Não tinham luz elétrica. Lamparinas de querosene ardiam até certo horário da noite. Dentro em breve o carroceiro as apagava e todos se aquietavam nas suas redes.

    Ruth apresentava nos olhos castanhos um brilho de regozijo. Possuía experiência em não ter o que oferecer às suas crias em diversas manhãs e noites. Naquele instante, entretanto, a situação os favorecia. Oposto de outras vezes, quando as refeições se resumiam a farinha misturada com açúcar ou café aguado.

    Nos últimos meses, quem sabe por causa da inflação nas alturas, ela estava sem conseguir dinheiro regularmente. Sobretudo porque a sua principal cliente, casada com um médico da Marinha, fora embora com o marido para Alagoas, onde ofereceram ao homem vantagem econômica e progressão na carreira. Os demais serviços que Ruth adquiria não passavam de rendimentos pinga-pinga. Pedro sustentava a barra mais pesada, embora o seu lucro também fosse imprevisível.

    Os meninos se mostravam felizes. A mãe dispôs a garrafa do café, os pães dormidos, meia lata de margarina e umas batatas-doces que guardara da noite anterior. Viviam um momento de modesta fortuna. Os rebentos comiam gulosamente. Copiando a genitora, um deles colocou uma colherinha de margarina no café, conferindo a este um sabor especial. Era mais um dia sem o pesadelo da fome.  

  • TABACO

    O médico explicou a situação pormenorizadamente, os dedos e mãos peludos cruzados sobre o birô. Por sua vez, estarrecido, Alcides ouviu tudo cabisbaixo, consentindo com a cabeça, de quando em vez, o linguajar cientificista do doutor. “Puta que pariu! Estou fodido!”, pensou o enfermo num impulso de revolta. Sessenta e dois anos. Agora tomava aquele baque. Deixara o cigarro havia cerca de duas décadas.

    O oncologista continuou com as explicações, apontando os caminhos e os procedimentos a serem adotados dali por diante. Alcides moveu a cabeça de novo, agora de forma desalentada. A voz do outro lhe parecia longe, sumida.

    — Sabe, doutor… Isso só pode ser um castigo — lamentou-se. — Pois larguei aquele maldito há vinte e dois anos, para lhe ser exato.

    — Casos desse tipo não são raros, senhor Alcides — argumentou o experiente médico reposicionando os óculos sobre o nariz agudo. — Pessoas que abandonaram o tabaco antes que o senhor são surpreendidas desse modo. Há quem fume a vida inteira e morre devido a enfermidades que não têm nada a ver com fumo.

    — É um castigo, doutor. Decerto mereço.

    — Em outras palavras, trata-se mais de causa e efeito. Isso, contudo, não é regra. Existem na literatura médica diversos registros de indivíduos que nunca fumaram e adquirem câncer de pulmão. Acho isso uma ironia perversa.  

    Ele se lembrou dos negócios, da próspera empresa de laticínios, rentável, esbanjando saúde financeira. Pensou ainda em Ramona, esposa do segundo casamento, morena e bonita, trinta anos mais jovem, com a qual não tivera filhos.

    Já trêmulo, olhos marejados, perguntou:

    — Quanto tempo me resta? Pode ser franco.

    — Com o tratamento, pouco mais de um ano.

    O empresário deixou a clínica aniquilado. Lançou no canteiro o jato de vômito. Um sujeito saiu para fumar e ele pediu-lhe um cigarro.

    Morreu após dez meses. O vício entre os dedos.

  • VERSO E REVERSO

    Durante a madrugada, como ocorrera outras vezes ultimamente, Vanessa Feitosa acordou aos gritos, suada e com os olhos arregalados. O pequeno ventilador estava parado. Faltara energia. O recorte de luz entrando pela janela, oriundo da claridade da lua cheia, era a única fonte de iluminação naquele momento de angústia.

    Tateou sobre o criado-mudo e deu com o isqueiro e o maço de cigarros amarrotados. Acendeu um dos últimos que restara. Ficou sentada na cama por certo tempo, pensativa. Logo após deixou o colchão e se postou junto à janela, o corpo meio de banda, o ombro esquerdo apoiado na esquadria. Expulsou a fumaça, respirou o oxigênio puro da noite e limpou as lágrimas com as costas das mãos. Contava quase trinta anos. Olhou a rua, que se achava deserta. À exceção de um gato preto que, malemolente, seguia pelas calçadas irregulares sem dar a mínima para o latido distante de alguns cães da vizinhança.

    A morte dos pais, levados pela pandemia, era recente. Súbito, então, viu-se sozinha no mundo, pois sempre fora uma pessoa antissocial, sem vínculo sequer com nenhum familiar, namorado ou amigos. Embora bonita, estava sem namorado havia dois anos. Seu relacionamento com o mecânico durou menos de um ano. Vestindo camisola branca, loira e de olhos esverdeados, voltou ao criado-mudo e pegou o celular: uma hora e treze minutos. Terça-feira abafada, calorenta. Quem sabe tais condições fossem prenúncio de uma chuvinha. Gostava de chuva. Mas não choveu. Por volta das três e meia, ela ainda acordada, circulou uma cruviana. Em meio à solidão, refletiu sobre o pesadelo recorrente: os pais morrendo num pronto-socorro do Bom Jardim, em Vila Negra, sem poder respirar.

    Quando o dia amanhecesse, pela primeira vez desde o sepultamento dos genitores, disse consigo mesma que iria levar umas flores para as covas dos pais, enterrados lado a lado. No dia seguinte, conforme planejara, passou em uma floricultura perto do Cemitério São Sebastião e comprou duas pequenas coroas de rosas vermelhas. Aquela seria a única oportunidade em que deitava flores sobre a sepultura do casal, que faleceu com uma mínima diferença de cinco dias um do outro. Chamavam-se Evaristo e Laura Feitosa.

    Ao transpor os umbrais do São Sebastião, pouco depois das oito, Vanessa começou a se abater. Seu coração disparou. Era algo que junca experimentara, nem durante o momento do enterro. Contudo atribuiu o desconforto ao fato de que a emoção de visitar os sepulcros de seus entes queridos a fez sentir uma ânsia de choro represada, provavelmente necessária de ser dividida com outras pessoas. O único a quem ela expôs de certa maneira a sua dor, seu sofrimento, foi ao antigo namorado, o mecânico de nome Leonardo Mendes. Apesar do mal-estar, Vanessa prosseguiu pelo caminho principal do campo-santo.

    Com passos lentos, enfim chegou ao ponto desejado. A questão, todavia, é que nesse local não estavam as covas do senhor Evaristo e da senhora Laura. Aí lhe sobreveio o grande impacto. Na lápide tumular, para seu choque e incredulidade, constava o seguinte: “Aqui descansa Vanessa Feitosa de Medeiros, * 1993 + 2021”.

    Atordoada, trêmula, em meio a um murmúrio sufocado, largou as rosas no chão e questionou consigo própria: “Como pode, meu Deus?! Isso é impossível!”. Em pranto, rumou para casa correndo, visto que a sua residência ficava perto do São Sebastião, no bairro Doze Anos. Então deparou-se com os pais à mesa da cozinha, ambos com aspecto tristonho. Reparou ainda que os dois vestiam luto. Com muita dificuldade, quase sem voz, tentou lhes dizer qualquer coisa, porém não acusaram sua imaterial presença.

  • SONHOS E PESADELOS

    Várias são as vezes em que me deito com os olhos pesados, piongos de sono devido a remédios. Eles não tardam a me jogar num tatame de sonhos confusos e, não raro, reincidentes. Imagino, por exemplo, que sou alguém de relevo nesta sociedade fria e insensível quanto uma laje tumular. Nos meus sonhos, entre outros perigos psicológicos, existe um leão bestial, terrificante, que me persegue de modo implacável entre as sendas do meu pensamento. Em certas ocasiões tenho receio dessa fera até mesmo quando estou acordado, escrevendo uma crônica onírica feito esta.

    Há outros momentos mais insólitos, até bizarros, quando adquiro o poder de voar, no entanto nunca esses voos possuem coordenação nem obedecem à minha vontade. São decolagens fora de meu controle. Noutras oportunidades, diferentemente de minha força desordenada de voar, me vejo despencando de grandes alturas, caindo por um longo tempo numa espécie de abismo ou poço sem fundo.

    Mas nem todos os meus sonhos são repletos de turbulências e animais ferozes, como aquele mencionado há pouco. Não. Há horas em que adormeço e me vejo entre amigos, trocando ideias animadas sobre autores e obras os mais diversos. De repente, então, alguém do grupo toma a palavra e diz olhando para mim e para os demais integrantes do círculo literário: “Você precisa acreditar mais no seu próprio talento, meu amigo. Não se contente com a mera condição de escrevinhador deste fim de mundo. Pois este país precisa conhecer você e sua escrita”. Aí suspiro cheio de orgulho e vaidade. Imaginem só uma coisa dessas, um borra-tintas do meu naipe.

    No dia seguinte, ao despertar, alguns devaneios ainda seguem mexendo com meu ego. Tomo um banho rápido, preparo o velho moca de todas as manhãs e me coloco diante deste computador já caduco e começo a registrar, transformar em literatura (quiçá de má qualidade) algo de que o leitor menos exigente talvez se agrade. Assim, bebericando a rubiácea de quando em vez, recordo aquele elogio da noite passada e ora lhes exponho meus pensamentos, minha concepção de arte literária.

    Não descambemos, todavia, para a velha receita de falar sobre o ofício literário, sobre as venturas e desventuras de nossa própria relação com as letras. Aqui, por meio de um monólogo sonolento, arrastado, pretendo relatar coisas que frequentemente me acontecem quando estou dormindo. É sobre meus sonhos tresloucados que almejo palestrar. São ocorrências que têm mil e uma naturezas. Algumas vezes me encontro de espírito leve, em condições amenas como se estivesse dirigindo um carro bonito na orla marítima (muito embora eu não saiba dirigir). Desvarios dessa ordem me sucedem aqui e acolá. Pois nem só de pesadelos são minhas madrugadas.

    Em meio a essa miríade de ocorrências soníferas, eis que novamente me sinto na iminência de adquirir projeção nacional com estas minhas páginas suaves em certas ocasiões e sangrentas vez por outra. Tais oscilações se encontram, na maior parte dos casos, em gêneros distintos, a exemplo de crônicas, poemas, contos e até romances. São modalidades em que me exercito neste município tão obscuro quanto eu. Dormindo, no entanto, consigo me livrar da indiferença e do anonimato.

    Nesta ocasião, como percebem, decidi expor (publicar) parte de minhas ocorrências noturnas, variações que geralmente costumamos denominar de sonhos ou pesadelos. No meu caso, não sei se devido aos psicotrópicos, me ocorrem mais pesadelos do que sonhos. Sobretudo quando certo leão entra em cena.

  • CONSCIÊNCIA PESADA

    Por Marcos Ferreira

    Foi uma única cutilada seguida de um movimento vertical. Não bastou enfiar a lâmina no estômago do homem até o cabo. Não. Ele queria mais sofrimento, crueldade. Então, sem contrair um músculo do rosto, subiu a faca do pé da barriga até próximo do esterno, de maneira que as vísceras da vítima caíram aos seus pés. O sujeito tombou de olhos arregalados, apertando inutilmente os intestinos com as duas mãos.

    Aquele era o segundo jardineiro que Elviro Martins atraíra para trabalhar em seu vasto pomar e assassinara friamente. O indivíduo anterior teve a cabeça decepada com um golpe de machado enquanto se encontrava de costas, acocorado, escavando a terra para plantar umas mudas de begônia. Os cadáveres foram enterrados nos fundos da propriedade acompanhados das armas dos crimes. A terra era úmida e fofa, e sobre esta ele espalhava no dia seguinte sementes de amendoeira. Em ambos os homicídios os empregados foram abatidos próximo ao final da tarde, cerca de meia hora antes de irem embora. De início, para escapar de qualquer surpresa à luz do dia, ocultava os corpos debaixo da folhagem e esperava a noite avançar para abrir as covas, algo entre as dez e onze da noite.

    Junto com os jardineiros, o homicida também enterrava a roupa que estivesse trajando, geralmente uma bermuda e uma camiseta surradas. Nu por completo, antes tomava um banho rápido na área de lazer da residência, onde havia uma ducha. Ali, calçando sandálias de borracha, o assassino pegava uma toalha que previamente deixava à sua espera e entrava em casa para enfim usar o chuveiro da suíte. Nos dois ensejos, como uma espécie de tara mórbida, utilizou-se da espuma do sabonete e se masturbou.

    No silêncio daquela propriedade, já de roupas limpas e casuais, postava-se num recanto da ampla sala, pegava o seu antigo rosário (presente da falecida senhora Anastácia, avó materna) e se punha a rezar diante do oratório. Ficava longos minutos entregue a orações em honra de Nossa Senhora, proferindo ave-marias e padre-nossos.

    — Perdoe-me, Senhor! Pois eu caí em tentação.

    Com quarenta e quatro anos de idade, medindo cerca de um metro e setenta, pele e olhos claros e pesando menos de oitenta quilos, o religioso sanguinário costumava ter longos pesadelos com as pessoas que extinguia. Despertava suado a horas mortas, chorando convulsivamente e fazendo o cruz-credo. Entre lágrimas, trêmulo, rezava de modo honesto e contrito, pedindo ao Altíssimo que aliviasse aquele seu padecimento.

    No domingo seguinte, porém, vestia-se a caráter e ia celebrar a missa das seis horas. Durante a pregação, por via de regra, criticava a falta de amor ao próximo e qualquer tipo de violência, em particular a doméstica. Ao fim arrematava:

    — Vão todos em paz, meus queridos irmãos!

    Após um ano suicidou-se por enforcamento.

    A polícia passou a investigar o caso, varreram a propriedade do sacerdote, e cães farejadores encontraram as ossadas de mais três pessoas. Ao todo, portanto, padre Elviro Martins dera cabo de cinco trabalhadores. O peso em sua consciência, contudo, impediu que ele fizesse outras vítimas. Que Deus o condene ou absolva.

  • CIDADÃO DE BEM

    Carlos Mendonça, arquiteto com abastada e numerosa clientela, conhecia Olívia Xavier desde o tempo em que ela trabalhara de garçonete no Café Sarajevo. Com cerca de vinte e cinco anos de idade, a moça fora admitida num escritório de advocacia e, sem pestanejar, deixou o Sarajevo, onde servira à mesa durante uns dois anos. Na época Olívia era estudante do curso de Direito da Faculdade Estadual de Vila Negra.

    Uma tarde, então, quando passava com sua luxuosa picape pelo Centro, Mendonça avistou Olívia na parada de ônibus na lateral do rio. Imediatamente ele baixou o vidro, encostou o veículo rente à calçada e ofereceu carona à ex-garçonete. Por se tratar de alguém conhecido entre os frequentadores do Café Sarajevo, Olívia aceitou a carona sem o menor receio. Carlos Mendonça subiu o vidro da picape e saiu lentamente. Daí a pouco ele indagou onde Olívia morava. Ela respondeu que no final do Conjunto São Pedro. Essa informação foi animadora para Mendonça, pois o endereço de Olívia ficava um tanto próximo da propriedade rural dele. Antes, porém, alegou que necessitava passar rapidamente em casa para buscar o aparelho celular, objeto este que ele de fato havia esquecido.

    Era cedo quando Olívia aceitou a carona: cerca de dezesseis horas. O sol já atingia parte dos bancos de alvenaria, de maneira que Olívia, quase sozinha no ponto de ônibus, precisou recuar um pouco. Não se incomodou com o fato de o senhor Mendonça, como ela o chamava, passar em casa antes de levá-la à sua residência:

    — Vamos, Olívia, desça um instante para você conhecer minha casa — disse ele. Nesse instante, embora preferisse esperar no carro, ela não quis demonstrar seu desconforto e caiu na lábia do arquiteto. Ele pegou o aparelho que deixara sobre uma estante e começou a mostrar a casa a Olívia de modo simpático, exibindo um leve sorriso no rosto. Por último a convidou a subir a escada e conferir o piso superior, onde se encontravam o quarto dele e outros dois cômodos para hóspedes. Olívia entrou no quarto ainda se sentindo desconfortável por estar nos aposentos íntimo daquele indivíduo com o qual ela não a menor intimidade, exceto conhecê-lo informalmente quando ela trabalhara no Sarajevo.

    Ao caminhar naquele quarto para olhar o exterior da residência pela janela, eis que Olívia recebeu um golpe na cabeça. Ela desmaiou e, antes que desabasse no carpete, ele a segurou. Batera nela com o próprio punho, um forte soco desferido contra a nuca de Olívia. Minutos depois, expressando no rosto a dor que sentia no pescoço, entreabriu os olhos e se deu conta de que estava amarada e amordaçada em uma cama.

    Avistou Carlos Mendonça diante dela trajando apenas cueca. Ela também não tardou a se dar conta de que se encontrava completamente nua. Usando uma tesoura, ele havia cortado as roupas da moça logo que a amarrara à cama. Olívia esboçou uma reação, buscando se desvencilhar das amarras, todavia aquele esforço era inútil. Sobre a estreita cama com rodinhas, Olívia recebeu uma injeção no braço esquerdo. A tal cama era estreita e com rodinhas, Em menos de dez minutos e ela apagou, desta vez em sono profundo. A cama e o piso estavam forrados com plásticos transparente. Mendonça pegou uma maleta marrom em um armário e dela foi retirando algumas ferramentas cirúrgicas.

    A injeção que ele aplicara em Olívia era letal. Com pouco concluiu que ela morrera. Afastou as pernas da vítima e a penetrou com sofreguidão. Os objetos ficaram por um tempo sobre uma banqueta. Sim, fez sexo com o cadáver, moça bonita a quem ele secretamente sempre desejara. Após o orgasmo, o arquiteto juntou as pernas da estudante de Direito e lançou mão dos equipamentos médicos que deixara sobre a banqueta metálica. Daí a pouco começou a deslizar o bisturi entre os seios. Continha o excesso de sangue com ataduras. Em seguida pegou uma espécie de fórceps e escancarou o peito dela.

    Carlos Mendonça segurou entre as mãos o coração de Olívia e começou a comê-lo insanamente, como saciasse uma fome ancestral. Não comeu o órgão por completo. Talvez pouco menos da metade. Quando a noite caiu ele já havia limpado toda a cena do crime. O corpo de Olívia estava totalmente embalado em camadas de sacos plásticos e, a olho nu, não era possível encontrar nenhum vestígio daquele ato selvagem.

    Depois da meia-noite, sem vizinhos próximos, o cidadão de bem Carlos Mendonça colocou o corpo na carroceria da picape, pegou a BR-304 e o desovou às margens do rio. Voltou para casa e dormiu sem a menor culpa ou remorso.

  • BREGA: SER OU NÃO SER. EIS A QUESTÃO

    Em seu artigo, O ébrio louco e a música brega, para a edição de março desta Papangu, o confrade Damião Nobre questiona: “Mas, afinal, o que é música brega?”. A partir de matéria que produzi para o Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo da UFRN (A música brega como identidade musical do RN, que contou inclusive, com a gentil colaboração do próprio Damião), resolvi fazer um recorte visando aprofundar um pouco mais essa questão.

    Mas afinal, o que é “brega”?

    O Grande Dicionário Houaiss traz essa significação para “brega”: que ou quem não tem finura de maneiras; cafona, de mau gosto, sem refinamento, segundo o ponto de vista de quem julga; de qualidade reles, inferior; zona de meretrício; música de apelo popular, cujo público originalmente foram as classes economicamente menos favorecidas e que frequentemente apela para clichês, falando de trivialidades de cunho sentimental, entre outros temas. Definições nada agradáveis e suficientes para manter qualquer pessoa, artista ou não, longe do risco de ser considerada “brega”.

    Não é o caso do compositor, cantor, apresentador e produtor musical Fernando Luiz, que se orgulha de ser “brega” e tem um ponto de vista muito interessante em relação a esses conceitos negativos: “Se você vai no dicionário, brega é só sinônimo de coisa ruim. É fora de moda, cafona, pejorativo, sem qualidade. É terrível a definição. Eu acho que em termos de música, deveria ser criado um verbete para definir que a música brega é uma música simples, sem pretensões. Nunca afirmar que tudo que é brega não presta”.

    Um estilo

    A ideia do “brega” relacionado a um estilo é recorrente em nossa sociedade. O estilo “brega” está presente no modo como a pessoa se veste ou age, no modo de falar, de caminhar, no gosto musical (independente se é fã do “brega” ou não), nos lugares que frequenta e outras situações cotidianas. No final das contas, a pessoa pode ser “brega” no estilo e não ser “brega” no gosto musical.

    A origem

    Quanto à origem da palavra “brega”, encontramos, na literatura sobre o assunto, algumas definições, que no entanto, carecem de comprovação oficial.

    No seu livro “Verdade Tropical”, Caetano Veloso (1997), traz uma versão que, se não possui caráter oficial, não deixa de ser interessante para reflexão: “Nos anos 50 os brasileiros tinham como música comercial, sobretudo aquele tipo de canção sentimental barata que, depois de anos de bossa nova, rock americano, neo rock ‘n’ roll inglês, tropicalismo e rock brasileiro (BRock), voltou a dominar o mercado no final dos anos 80 e início dos 90, qualificada como ‘brega’ (palavra da gíria baiana, hoje usada como adjetivo, mas na origem um substantivo chulo que significava ‘puteiro’ dizem que, a partir do nome Padre Manuel da Nóbrega de uma rua de zona de prostituição em Salvador ou Cachoeira, sobre cuja placa quebrada restavam apenas as duas últimas sílabas do nome do sacerdote)”.

    Altair J. Aranha (2002) em seu “Dicionário Brasileiro de Insultos”, também reproduz essa versão não oficial: “Brega: de mau gosto, de baixo nível. Consta que a palavra teve origem em Salvador, mais propriamente numa área urbana de baixo meretrício onde uma placa indicando a rua Padre Manuel da Nóbrega teve gasto o letreiro, sobrando apenas as duas últimas sílabas. Aplica-se a pessoas que se mostram sem elegância, que exibem mau gosto”.

    Dentro desse contexto altamente negativo e pré-estabelecido em relação ao “brega”, muitos artistas não se sentiam à vontade em fazer parte desse universo musical, embora entre os maiores vendedores de discos do Brasil no início dos anos 1970, estivesse um representante do gênero: Evaldo Braga.

    Em “O homem da feiticeira: a história de Carlos Alexandre”, o jornalista Rafael Duarte destaca a ascensão do cantor de Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro: “O disco levou Evaldo ao topo em 1971, especialmente junto a uma faixa da população que se identificou com músicas que dispensavam metáforas e falavam abertamente de desilusões amorosas, traições e outros temas ligados ao relacionamento humano. ‘A cruz que carrego’ foi uma das músicas mais tocadas do LP. O rápido sucesso não deixou alternativa à gravadora senão lançar em seguida ‘O ídolo negro – Volume 2’. Se a estreia já tinha sido promissora, em 1972 Evaldo Braga confirmou as expectativas. A canção ‘Sorria, Sorria’ virou um clássico do gênero e sacramentou a condição do cantor como ídolo na periferia brasileira”.

    Ainda de acordo com Rafael Duarte, “o gênero romântico já vinha recebendo críticas da elite. Setores da classe média tacharam de brega e cafona a música abraçada e difundida pela periferia que, além de Evaldo Braga, descobriu Márcio Greyck, Fernando Mendes, Marcelo Reis, Carlos André, Bartô Galeno, Wando, Amado Batista, Sidney Magal e já tinha como referência cantores populares há um certo tempo na estrada a exemplo de Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Vicente Celestino, Nelson Gonçalves, Carlos Alberto, Lindomar Castilho e Waldick Soriano”.

    Sobre artistas que nunca aceitaram o rótulo de “brega” o jornalista cita em seu livro, Agnaldo Timóteo: “Agnaldo Timóteo nunca aceitou o rótulo de brega. O cantor romântico põe na conta do preconceito a divisão imposta pela elite na MPB”. E cita depoimento do ídolo no documentário “Vou rifar meu coração” de Ana Rieper (2011): “A mim não chamam nunca de brega. Porque quando eu pego o microfone eu viro um monstro. Quando Nelson Gonçalves gravou ‘Negue’ era cafona. A Maria Bethânia gravou virou luxo. É o preconceito que é inserido, divulgado, programado e multiplicado contra nós, cantores românticos de origem modesta”.

    Em 01/11/1998 em entrevista ao jornal Notícias Populares, Reginaldo Rossi respondeu a uma pergunta sobre como se definia musicalmente e se ser chamado de “brega” o incomodava: “Sou um cantor. Não incomoda o brega, eu progredi. Na época eu vinha de uma escola de engenharia e cantava iê-iê-iê com cuidado. Voltei para Recife porque tinha uma coisa de o cara cantar ou só no AM ou só no FM. O cantor era de classe A ou brega. Como eu cantava tudo fiquei sem saber o que fazer. Se falarem que é brega, quero que falem que sou brega ao quadrado. Assim vendo mais”.

    Desde maio de 2017, a música “brega” está incluída como uma das expressões artísticas genuinamente pernambucanas. A “lei do brega” começou a tramitar em 14 de fevereiro, data escolhida por ser o dia do nascimento dele, Reginaldo Rossi, um dos grandes expoentes da música “brega”, nascido e consagrado em Recife, falecido em 20 de dezembro de 2013.

    Em entrevista ao programa #Provoca da TV Cultura, em 11/05/2021 o cantor e compositor Odair José, revelou ao entrevistador Marcelo Tás que não gosta de ser chamado de “brega”: “Sobre o negócio do ‘brega’, eu não gosto. Eu sei que no Brasil existe uma cultura de achar que isso já é um estilo. Tudo bem, eu não me importo, quem quer chamar, chama. Mas o negócio do ‘brega’, eu acho que é diminuir a coisa. Pode inventar várias definições, mas a definição que eu conheço de ‘brega’ é ‘coisa de mau gosto’. Eu acho meio desagradável chegar para o cara e dizer: ‘O seu trabalho é brega, você está brega’. Eu, pessoalmente, não gosto”.

    É essa conotação negativa, que sempre relaciona o “brega” a mau gosto, baixo nível, algo deselegante e sem refinamento, que acaba por vezes fazendo com que o artista, ainda que inconscientemente, tente se desligar desse rótulo. O que não deixa de ser uma grande contradição. Se o cantor ou compositor consolidou a sua carreira a partir da produção de um tipo de música para o consumo do povão, sem grandes refinamentos estéticos, porque ele mesmo alimentar esse tipo de preconceito em relação ao “brega”?

    Portanto, chega de preconceito e vamos ser feliz no “BREGA”.

  • POETICIDADE

    Por Marcos Ferreira

    Busco nas cerdas invisíveis do vento uma suave escova que deslize sobre meus cabelos despenteados. Hoje estou carente desses afagos imateriais. Quero o beijo da aragem. Deixo-me estar à janela de minha alma, com vista para a rua de pedras e areia trazida pelas chuvas. Há estrelas cintilando no céu, grilos e sapos executam suas típicas sinfonias nos escaninhos da noite. Alguns audazes morcegos, como pequenos aviões de caça furtivos, cortam os ares arrojadamente.

    O rock metálico do trânsito indica que as pessoas têm pressa de viver. Sim, a vida pulsa sobre o paralelepípedo e nos corações, apesar desse desgoverno nefasto que atua em desfavor dos pobres, da maldade de sua política contra a mesa e o prato dos brasileiros. Meu povo, neste Brasil e cidade, come lagartos, carcaças, cartilagens, e cerca caminhões de lixo à procura de comida.

    Estou sempre sujeito (quem não está?) às influências do meio. Ou, para ser mais preciso, às influências do inteiro, do completo, do geral. Da vida, do mundo, enfim. Exatamente. Sou, como todos somos, influenciável. Embora algumas vezes eu também exerça alguma influência sobre terceiros. Basta uma lua obesa no céu, como aquela que ora contemplo, para a minha alma de poeta suburbano pensar num verso estratosférico, numa estrofe e rimas de brilho emprestado.

    A vegetação nos campos, como em toda parte, após muito tempo trajando o grave cinza da estiagem, cobriu-se de verde. O útero do solo voltou a ser fecundado e a procriar com o milagre da água que o céu tem vertido sobre nós. Que importa que os enxames de muriçocas estejam de volta com redobrado apetite por sangue? Isso, diante do benefício do inverno, é café pequeno.

    Entretanto, por característica desta região semiárida, o astro-rei continua dando as cartas. Predomina na maior parte do tempo. Em Mossoró ninguém morre de hipotermia. Não há qualquer dificuldade, por exemplo, para secagem de roupas expostas nos varais. Desde os tecidos mais leves aos mais pesados, tudo fica sequinho em minutos. Mofo?! Nada de mofo! A umidade relativa do ar está quase ao nível dos nossos pés. Aqui se frita, como se diz, ovo no asfalto.

    A máquina fotográfica de um relâmpago iluminou momentaneamente o quintal. Esperei por um trovão, mas ele não veio. Talvez tenha preferido não interromper a cantoria dos sapos e grilos. Sem pudor, um gato e uma gata se amam em algum terreno ou telhado próximo. Discrição nunca foi o ponto forte desses adoráveis seres de patinhas acolchoadas. Circula um vento úmido.

    Apesar das chuvas, ainda não há fartura. Nem sei se haverá. Não para as pessoas humildes. Muitas continuam nos semáforos exibindo cartazes pungentes, pedidos de socorro. São indivíduos que não têm o que comer. Outros não têm o que vestir nem onde morar. Fala-se muito na fartura dos grandes empresários agrícolas, porém essa riqueza toda é somente para eles próprios. Vai tudo para os bolsos deles, cuja maioria parece incapaz de oferecer um pão a um doido.

    Bom, hoje não quero me alongar. Vim apenas dizer, entre outras coisas, que uma orquestra de sapos e grilos cantadores, além de uma constelação intermitente de vaga-lumes, trouxe um pouco mais de poesia para estas minhas horas de ócio criativo. Deixo à margem, em prol do lirismo, a horrenda metáfora da fome representada por tanta gente podre de rica, mas miserável de espírito.

    Nós até resistimos, damos voltas no corpo, suportamos uma vida sem pão, sem teto e sem outras dignidades que nos negam e furtam, entretanto creio que a gota d’água de nossa existência será o dia em que nos faltar poesia. Porque poesia é a chama, é a força que nos faz resistir e lutar por dias melhores, é o nosso talento e pendor para a superação, mesmo perseguidos por inúmeras adversidades e privações. Poesia é a nossa coragem para sorrir na cara da tristeza.

    Portanto, que nunca nos falte poesia. Coisa esta que não representa meramente uma composição em versos, mas a graça, o encantamento que estar vivo deve significar. Daí advém a poesia escrita, que é o retrato literal da humanidade e do mundo. Se esses sapos e grilos cantantes, além dos morcegos nos seus voos acrobáticos, se tudo isso não for poesia, então não sei o que é poesia.