Durante a madrugada, como ocorrera outras vezes ultimamente, Vanessa Feitosa acordou aos gritos, suada e com os olhos arregalados. O pequeno ventilador estava parado. Faltara energia. O recorte de luz entrando pela janela, oriundo da claridade da lua cheia, era a única fonte de iluminação naquele momento de angústia.
Tateou sobre o criado-mudo e deu com o isqueiro e o maço de cigarros amarrotados. Acendeu um dos últimos que restara. Ficou sentada na cama por certo tempo, pensativa. Logo após deixou o colchão e se postou junto à janela, o corpo meio de banda, o ombro esquerdo apoiado na esquadria. Expulsou a fumaça, respirou o oxigênio puro da noite e limpou as lágrimas com as costas das mãos. Contava quase trinta anos. Olhou a rua, que se achava deserta. À exceção de um gato preto que, malemolente, seguia pelas calçadas irregulares sem dar a mínima para o latido distante de alguns cães da vizinhança.
A morte dos pais, levados pela pandemia, era recente. Súbito, então, viu-se sozinha no mundo, pois sempre fora uma pessoa antissocial, sem vínculo sequer com nenhum familiar, namorado ou amigos. Embora bonita, estava sem namorado havia dois anos. Seu relacionamento com o mecânico durou menos de um ano. Vestindo camisola branca, loira e de olhos esverdeados, voltou ao criado-mudo e pegou o celular: uma hora e treze minutos. Terça-feira abafada, calorenta. Quem sabe tais condições fossem prenúncio de uma chuvinha. Gostava de chuva. Mas não choveu. Por volta das três e meia, ela ainda acordada, circulou uma cruviana. Em meio à solidão, refletiu sobre o pesadelo recorrente: os pais morrendo num pronto-socorro do Bom Jardim, em Vila Negra, sem poder respirar.
Quando o dia amanhecesse, pela primeira vez desde o sepultamento dos genitores, disse consigo mesma que iria levar umas flores para as covas dos pais, enterrados lado a lado. No dia seguinte, conforme planejara, passou em uma floricultura perto do Cemitério São Sebastião e comprou duas pequenas coroas de rosas vermelhas. Aquela seria a única oportunidade em que deitava flores sobre a sepultura do casal, que faleceu com uma mínima diferença de cinco dias um do outro. Chamavam-se Evaristo e Laura Feitosa.
Ao transpor os umbrais do São Sebastião, pouco depois das oito, Vanessa começou a se abater. Seu coração disparou. Era algo que junca experimentara, nem durante o momento do enterro. Contudo atribuiu o desconforto ao fato de que a emoção de visitar os sepulcros de seus entes queridos a fez sentir uma ânsia de choro represada, provavelmente necessária de ser dividida com outras pessoas. O único a quem ela expôs de certa maneira a sua dor, seu sofrimento, foi ao antigo namorado, o mecânico de nome Leonardo Mendes. Apesar do mal-estar, Vanessa prosseguiu pelo caminho principal do campo-santo.
Com passos lentos, enfim chegou ao ponto desejado. A questão, todavia, é que nesse local não estavam as covas do senhor Evaristo e da senhora Laura. Aí lhe sobreveio o grande impacto. Na lápide tumular, para seu choque e incredulidade, constava o seguinte: “Aqui descansa Vanessa Feitosa de Medeiros, * 1993 + 2021”.
Atordoada, trêmula, em meio a um murmúrio sufocado, largou as rosas no chão e questionou consigo própria: “Como pode, meu Deus?! Isso é impossível!”. Em pranto, rumou para casa correndo, visto que a sua residência ficava perto do São Sebastião, no bairro Doze Anos. Então deparou-se com os pais à mesa da cozinha, ambos com aspecto tristonho. Reparou ainda que os dois vestiam luto. Com muita dificuldade, quase sem voz, tentou lhes dizer qualquer coisa, porém não acusaram sua imaterial presença.