Últimas histórias

  • Quando o demais é veneno

    Por José de Paiva Rebouças e Maria Clarice Lima Paiva

    Há pouco tempo, logo ali, pela década de 1990, também início dos anos 2000, a gente ia a uma locadora de vídeo, alugava duas ou três fitas VHS para o final de semana e era isso, senão a principal, mas uma das principais atividades recreativas do descanso. Hoje, minha filha e eu gastamos uma enormidade de tempo decidindo o que assistir nos diversos streamings que assinamos, cada um deles com milhares, sem exagero, milhares de opções de todos os gêneros. Antes, a escolha era o que tinha e, por isso, cada minuto vendo o filme tinha maior valor, haja vista que na segunda-feira precisaríamos devolver a fita (depois o DVD) ou pagaríamos a mais. No caso do VHS, você há de lembrar, se não fosse rebobinado, pagava multa.

    Não há coisa mais importante para a liberdade do que a possibilidade de escolhas, a concorrência, a ausência de imposição. Contudo, como aprendemos com Zygmunt Bauman, existe uma distância enorme entre liberdade e segurança. A liberdade de escolha esbarra na segurança da própria escolha, quer dizer, quando eu entro na Shopee para procurar a capinha para o meu celular posso até ter uma ideia fixa na cabeça, mas o montante de opções pode me causar insegurança, ampliar minha ansiedade e tornar a minha escolha um problema.

    Essa conversa me faz lembrar o amigo, poeta, Antônio Francisco, que teve um grande problema quando Nira, sua esposa, lhe comprou outra calça. Ele já não sabia mais com que calça sair, se com a nova ou com a já usada e, por vezes, preferiu ficar em casa. Obviamente, essa é uma anedota do poeta, mas, como tudo que ele escreve, faz muito sentido. A gigantesca liberdade de escolhas que o capitalismo e a classe média acessam provoca também um reverso da possibilidade de escolher. Talvez, por isso, tanta gente caia na armadilha da futilidade, se obrigando a se vestir, se comportar, viajar ou se mostrar como outros. Muitas vezes esse comportamento é tomado para que os sujeitos, homens e mulheres, saibam aproveitar a vida, usando o argumento das “tendências” para, enfim, tomar suas decisões.

    O nível de fragilidade que advém de um mundo de facilidades reflete diretamente na construção das gerações seguintes. Na casa de meus avós, um tamborete e uma mesa eram artigos de luxo. Na casa de minha mãe, já precisamos de geladeira e televisão. Em minha casa é internet, celular e outros penduricalhos com os quais não vivemos mais, ou pensamos que não vivemos, mas, no fim das contas, a cadeira e a mesa são as coisas mais necessárias e importantes. É onde trabalhamos, onde comemos e onde nos reunimos para conversar.

    Dosar o exagero, achar o meio termo, tudo isso é assunto para psicólogos que precisam dizer o óbvio para nós, os ansiosos, que não sabemos lidar com a simplicidade das coisas e da vida. Dez mil anos atrás, nem precisávamos de roupa para viver. Atualmente, sem uma série de objetos, nos tornamos infelizes, tristes, deprimidos e inferiorizados. Quando a União Soviética fez o Lada, imaginou um carro que durasse 20 anos. Hoje, ainda encontramos algum Lada pelas ruas, mas a União Soviética não existe mais. Como os comunistas perderam a Guerra Fria, agora se não trocamos de carro pelo menos a cada três anos, nós e o veículo nos tornamos obsoletos.

    Desde pequenos, aprendemos com nossos cuidadores, pais, avós, tios, irmãos, que tudo demais é veneno, seja o que for. Água demais pode matar, cansaço demais pode fazer o pulmão explodir, opção demais pode fazer a gente ter dificuldade de escolher e, o que é pior, querer mais do que o que se tem para escolher. Contudo, se ter opções demais é um problema, uma solução é lembrar que também temos “passado demais” para consultar e lembrar que se vivíamos, antes, com pouco, podemos viver com o suficiente agora. É só pensar no que é necessário, porque o extraordinário é demais.

  • O arroto

    Marieta acordou diferente. A casa era a mesma, e o silêncio das moscas das manhãs seguintes ainda figurava no ambiente. A cama estava vazia. Marido e filhos já perambulavam. Ela os olhou desatenta, parecia cansada quando entrou no banheiro e demorou mais do que o de costume. O tempo demonstrava atraso no café e nas tarefas diárias. O filho mais velho aguardava a torrada para se deslocar ao trabalho. A filha menor esperava as ordens para ir à escola. O marido não esperava nada.

    Marieta mexeu as panelas e ligou a cafeteira. Seus olhos pareciam fechados, assim como seus ouvidos. Aprontou uma mesa feia e pães aguados. O café sem açúcar torceu as caras nos primeiros goles. À mesa, a sobrinha agregada ainda perguntou algo, mas não obteve resposta. O filho puxou conversa, mas Marieta ficou calada e não lhe deu sequer um gesto.

    Sentou-se com todo mundo, tomou café como de costume, abriu o jornal que era do marido. Leu as notícias de polícia, passou pelas colunas, viu a política, passou pelos classificados, viu os preços; folheou os anúncios, as mesmas festas. No cinema, os mesmos filmes, e o signo era repetido da semana passada. Marieta soluçou expelindo gases.

    Notava-se aí que a mulher poderia estar doente. Talvez um chá de boldo para acalmar o estômago, foi o que alguém pensou, mas só ela sabia como fazê-lo. Ofereceram-lhe um antiácido. Não obtiveram resposta. As pessoas já se acostumaram a não obter respostas. Marieta cuspiria essa filosofia se quisesse falar.

    Voltou para seu quarto em busca de um livro e esqueceu a cozinha por um instante. Mas os livros são feitos por dois motivos: ou sem propósito algum, para deixar as pessoas extasiadas com o nada, empreitando uma tentativa torpe de entender o que não foi dito, ou puramente para fazer lucro e fama. Marieta lançou gases pela boca e se sentiu como se estivesse inflando. Pensou no que tinha comido nos últimos dias e na noite anterior. Sua cabeça, como ela, não dizia nada. Lembrava apenas dos rótulos garantidos pelos estudos científicos e pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária. Estava segura.

    Entre a sala e a cozinha, existia muito barulho. As meninas carregavam conversas sobre as palavras alheias. O marido perguntava coisas a elas, que respondiam monossilabicamente. Um retrato diferente do que se expunha na estante, onde todos se abraçavam com sorrisos largos. Marieta expulsou os gases do medo de já passar dos 40 com uma família comum demais para os padrões das novelas. Havia desistido de tudo em que acreditava e quase não tinha sonhos. Aparecia sempre alguém para lhe dizer que não possuía talento ou sorte, e ela foi abrindo mão dessas coisas e se entregando à tranquilidade de não ter ambição, para ser apenas um nome com o sobrenome do marido, mais velho e aposentado com um salário de fome. Nunca deixou de fazer nada de comum aos outros, mas sempre se achou à margem da vontade alheia. Não que se sentisse infeliz, nunca se sentiu; só não queria comprometer-se e deixar de ser a única coisa que conseguira ser.

    Acostou-se na cama como quem não pensa em nada e cochilou tranquilamente sonhos dos quais não se lembraria. Acordou algum tempo depois ouvindo gargalhadas que vinham da sala. Lembrou-se das antigas reuniões familiares. Dos filhos pequenos. O filme da locadora, o marido lendo a sinopse. O livro infantil, lido e relido a pedido dos pequenos, enquanto ela preparava os quitutes. A palavra “mãe” soava a cada minuto com uma sonoridade infantil e inocente. O sorriso do marido, que ainda era forte e vigoroso como o próprio corpo, a abraçava com força pela cintura. O telefone tocava como por coincidência, apenas para ouvir aquela algazarra farta de pão.

    Marieta sorriu no canto da boca e esforçou-se para levantar, mas estava pesada demais para se mexer com pressa. Os gases saiam agora por todos os orifícios. Quando atravessou a casa, lembrou-se das mãos enrugadas. Os pés, nas pantufas, arrastavam toneladas pelos cômodos sujos. Ninguém saíra de casa, como se fosse domingo e como se não houvesse contas a pagar. Marieta chegou à sala e encontrou a família indiferente, esparramada em frente à televisão. Olharam-na com espanto e medo. Ela estava enorme, inchada, parecia duas. Os lábios não se fechavam e os olhos saltavam esbugalhados. Iria explodir.

    Sob a agonia dos seus, recolhidos no imenso sofá azul, Marieta levantou a cabeça para o teto, escancarou a imensa boca que agora possuía e abriu-se num arroto interminável. Aí foi desinchando, desinchando, desinchando e ficando magra, magra e magra, até que seu corpo caiu feito um saco de pele e osso no chão.

  • A LEITURA DO MUNDO

    O menino nunca se livrou daquela sensação de que não sabia das coisas. Fazia tudo como mandavam ou pediam. Acertava no ponto, sabia o que fazia, mas não tinha certeza. Tudo parecia mecanicamente engendrado, mas o menino sentia-se distante da engrenagem, uma peça à parte, um fio solto no meio do emaranhado do mundo.

    A ausência de conhecimento é uma prisão, mas o conhecimento sem liberdade é tal qual. O menino pensava sobre isso, mas não tinha certeza. Ele chegou a perguntar a alguém alguma coisa sobre, mas a explicação era tão complexa que o confundiu ainda mais. Isso era terrível, porque se o pedissem para fazer uma coisa ele fazia, mas quando ouvia sobre aquela mesma coisa se sentia incapaz diante dela. Uma lâmina escura na memória, a sensação de frio e de silêncio. O medo de errar.

    Um dia, lendo alguns dos muitos livros que gostava de ter, encontrou uma frase diferente e elucidativa: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Ele sabia o que aquilo queria dizer, mas, ainda assim, foi ao dicionário para saber todas as possibilidades do verbo “preceder”. Era esse medo das engrenagens que o levava a essa angústia cortante de não entender o óbvio que parecia tão complexo nos discursos alheios.

    Mas agora tudo parecia mais claro. Se a leitura do mundo precedia a leitura da palavra, ele entendia o mundo da maneira certa e, talvez, os outros nem tanto. Se fosse dessa forma, ele, quando menino, aprendera a ler no tempo certo, porque já conversava com as cantofas e distinguia uma aroeira de uma jurema e uma jurema de uma umburana; um bem-te-vi de um anu; a qualidade dos terrenos, o vento da chuva, os animais nos currais…

    Era estranho imaginar que as palavras, muitas vezes, desconstruíam isso com violência. Desdizia o que ele aprendera, embora mantivesse o mesmo tom. Era arrogante a palavra, não a que estava posta e acoplada às imagens, as leves e estáticas, mas aquela proferida, arbitrária: “isso é um Pseudocaule, não uma fruta”. Mas era uma fruta, um caju, amarelo, vermelho, doce e travoso. Uma delícia de infância.

    Tudo agora fazia sentido, estava claro e ele sorria. Voltava a olhar o mundo pelo olho e pela memória e então achava que não precisava mais se submeter ao discurso, embora precisasse ouvi-lo e, lentamente, como a calma que nunca havia recebido do mundo, entregar ao outro a mesma liberdade contida naquela frase doce, embora forte o suficiente para quebrar correntes.

  • Resiliência que chama

    De certo modo, as manifestações culturais comprometem-se, acima de tudo, com a coragem. Dizer o que se pensa, denunciar e relatar a vida cotidiana de maneira aberta é, teoricamente, o papel do jornalismo, dos articulistas e cronistas. Contudo, no Brasil, isso não é regra, mas sim uma mera exceção. O jornalismo muitas vezes está atrelado ao capital, focado unicamente nos interesses políticos daqueles que podem pagar, geralmente priorizando causas pessoais em detrimento do bem-estar do Estado. No Nordeste, em particular, o coronelismo assume diversas formas, mantendo-se no poder e controlando o que pode ou não ser dito. Esse controle custa caro, e é por isso que muitos acabam se rendendo; felizmente, a maioria não significa unanimidade.

    É evidente que para uma revista que não se submete, o caminho é doloroso. Observamos o surgimento diário de panfletos jornalescos que, da noite para o dia, inundam lares e repartições. Infelizmente, muitos carecem de imparcialidade e não possuem uma pitada de criticidade social. A parte mais robusta da opinião busca sustentar os mandatários no poder, custe o que custar. Assim, qualquer pessoa que contradiga esse pensamento é considerada inimiga ou motivo de piada, mesmo dentro de um contexto ilógico e sem fundamento. Estes pedaços de papel, redigidos por uma massa de jornalistas amordaçados, definem a agenda do jornalismo, criando o que chamamos de “agenda setting”.

    Quando cheguei a esta revista, cerca de vinte anos atrás, tinha em mãos uma questão política. Naquela época, sem internet e com o surgimento das rádios comunitárias, os impressos dominavam. A maioria seguia o ritmo daqueles que pagavam mais e detinham o poder. No entanto, esta revista, ao contrário, seguia na contramão e circulava meio que à deriva, numa espécie de clandestinidade não declarada. Embora recebesse patrocínio governamental, sua linha editorial nunca se vendeu. Criticavam a Papangu, alegando elitismo, quando eu, claramente, expressava minhas preocupações sobre o que não ia bem em Apodi e Túlio Ratto sobre o que não se encaixava em Mossoró. Ele até desenhava literalmente na capa, mas nem assim.

    Nessa época, os jornais começaram a abandonar a literatura, e o fato de a Papangu manter e resgatar essa tradição literária a destacava, mas também incomodava uma pseudoelite politiqueira e uma parte prepotente da imprensa potiguar. Natal, que sempre teve rivalidade com Mossoró, fingia não perceber, mas todos nos viam, liam e comentavam entre si o que era dito em cada edição.

    Duas décadas depois, parece que estou falando de um tempo que se foi. De uma era em que fazíamos fanzines para nos opormos ao status quo. No entanto, a Papangu continua seguindo a mesma linha e enfrentando os mesmos desaforos. Ela continua machucando aqueles que vestem a carapuça, afirmando que é preciso dizer o que precisa ser dito sem rodeios, ao mesmo tempo que preserva a mesma cultura literária de contos, crônicas e poesia, abandonada pela imprensa e por esse novo mundo que surgiu no jornalismo virtual.

    Ao olhar para trás, percebo que parte da minha história está entrelaçada a esse mundo jornalístico, mas vejo também uma parte significativa do legado jornalístico-literário do nosso estado preservada nos anais desta revista. Por não se submeter, a Papangu tornou-se maior do que seu próprio nome, seus editores e autores. Sua resiliência a incorporou à história recente do nosso estado, fazendo da Papangu um arquivo perene de nossa memória, de nosso grito e de nossa arte.

  • A morte de Bruce Lee

    A chuva fina deixava a velha Barcelona ainda mais fria. Com nosso guarda-chuva lilás, entramos no bairro gótico e saímos nos espremendo pelas vielas sem fim. Entre tabernas e pontos comerciais, caímos, sem querer, em uma dessas lojas de quinquilharias. Bolsas, sombreiros e uma infinidade de tranqueiras preenchiam o chão e todas as paredes formando um túnel que levava não sei para onde.

    Uma bolsinha de cortiça com desenhos asiáticos chamou atenção de minha mulher. Uma moça chinesa nos atendeu em seu tom de vendedora. Por ali, uma senhora peruana, baixinha, também nos interpelou. Parecia uma cliente experimentando as mercadorias, mas logo vimos que era também atendente da loja. Como bons curiosos, puxamos conversa e enveredamos por diversos assuntos sobre a vida, as escolhas e o destino. Eu, tateando no portunhol, ouvia atento o papo de minha companheira, professora de espanhol, com a nativa das grandes terras incas.

    Porque os peruanos não pensaram nisso! Reclamou a senhorinha ao se referir à organização de Barcelona. Transporte de toda qualidade, garagens subterrâneas em todos os prédios e até nas ruas. Do nada, um túnel que leva a um largo estacionamento fica embaixo de uma praça onde passam milhares de pessoas. Por que não pensamos nisso?! Acompanhei a peruaninha indignada. De fato, não faz sentido que ainda estejamos tão atrasados, completei. Minha esposa riu porque é o que tenho repetido desde que pousamos na Europa. 

    A moça chinesa por ali também interagia com a gente. Assim como eu, seu espanhol era tão falso quando suas bugigangas. Mas ela havia experimentado, talvez da peruana, o espírito latino e sorria e falava alto e fazia piadas. Para socializar, comecei a dizer o pouco que conheço da China, de sua cultura e de seu importante momento econômico. Então lembrei, e disse a ela, que quando criança eu era muito fã de Bruce Lee e que comprava todas as revistas sobre seu trabalho, mas também sua filosofia marcial. A chinesa sorriu mais ainda e disse que seu irmão, que ficou na China, é mestre em Jeet kune do, um neo sistema de arte marcial criado por Lee. Parecia que ela e sua família também tiveram o astro do cinema sino-americano como seu ídolo de infância.

    Do nada, como quem me conta um segredo, ela me perguntou: “Sabe como Bruce morreu?”. Eu respondi que sim. “Edema cerebral”. E ela, com olhos enormes e em tom baixíssimo disse: “Nonnn!! Murió por envidia” e pegou o celular para traduzir o que havia dito: “morreu por inveja”. E aí, como num soco de uma polegada, concluiu: “Fue asesinado, igual que su hijo”. “Assassinado igual foi o seu filho?!” repeti como buscando uma confirmação e, ao mesmo tempo, lembrando que, em outra circunstância, Brandon Lee foi mesmo assassinado no set do filme O corvo. Teriam envenenado Bruce?

    Olhei para ela e, por um instante, parecia que uma névoa cinza nos encobria e que ali, naquela loja estreita, só estávamos nós dois, conspirando um segredo proibido. Um arrepio me tomou do calcanhar ao cocuruto da cabeça e eu acreditei piamente naquela teoria conspiratória. Fazia todo sentido, todo sentido! Pagamos a compra, nos despedimos com abraços de velhos amigos e saímos com nosso guarda-chuva lilás e este segredo que jurei não contar a mais ninguém.

  • Trabalho não remunerado e não reconhecido

    Deu polêmica, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM 2023) deu polêmica. Não por acaso, a proposta tenta fazer uma reparação histórica com as mulheres e aí, já se viu, quando se trata de justiça social no Brasil, parte dos conservadores ficam incomodados. Disseram que foi ideológico, que é mimimi e coisa de feministas. Mas a verdade é outra bem diferente e a desigualdade de sexo no Brasil ainda é drástica e necessita mudanças urgentes. Além de ser infinitamente maior do que a dedicação dos homens, o trabalho doméstico não remunerado no Brasil é subnotificado em até 60%, segundo pesquisa da UFRN e UFMG.

    O tema da redação do ENEM foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Esse cuidado trata exatamente do tempo que a mulher gasta fazendo comida, pondo a casa em ordem, cuidando dos filhos, do marido e, muitas vezes, dos pais, dos sogros ou de outros parentes. É uma rotina exaustiva, repetitiva e, além de não remunerada, não é reconhecida pela própria família.

    De acordo com as pesquisadoras Luana Myrrha e Jordana Cristina de Jesus, do Programa de Pós-Graduação em Demografia da UFRN, ao colocar uma temática presente no dia a dia da grande maioria das famílias brasileiras para reflexão de milhões de estudantes, seus amigos, familiares e a comunidade de modo mais amplo, o Ministério da Educação, por meio do Enem, realiza um movimento importante, que é o de reconhecer os cuidados.  “Reconhecer o trabalho de cuidados executado pelas mulheres é um dos passos iniciais para um caminho de redistribuição dessa carga de trabalho. Para, de fato, redistribuir os trabalhos de cuidados, organizados de maneira injusta na sociedade, eles devem ser transformados em objeto de políticas públicas”, diz Luana.

    Jordana Cristina reforça que para essa discussão ser ainda mais relevante, em um primeiro momento, é necessário definir o conceito de cuidados. “O cuidado pode ser definido como um trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e reprodução da vida humana, da força de trabalho, das sociedades e da economia e à garantia do bem-estar de todas as pessoas. São trabalhos, como a preparação de alimentos, a limpeza, a gestão e a organização da casa, como também as atividades de assistência, apoio e auxílio diários para pessoas com diferentes graus de dependência, como bebês e crianças pequenas, pessoas idosas ou pessoas com deficiência quando estas não conseguem, sozinhas, realizar atividades como alimentar-se, caminhar, tomar um transporte, fazer compras, etc. Essa é a definição que foi apresentada na primeira versão do Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil”, explica.

    As pesquisadoras ressaltam que o Brasil tem, atualmente, uma organização social dos cuidados desigual, injusta e insustentável. Essa organização, segundo elas, é desigual e injusta na medida em que, embora os cuidados sejam uma necessidade humana, são as mulheres as principais responsáveis por atender a essa demanda em suas famílias. As mulheres mais sobrecarregadas com esse trabalho invisibilizado são as empobrecidas, as mulheres negras e as que estão em territórios com carências profundas na oferta de serviços públicos de cuidado, como as zonas rurais e as periferias urbanas.  

    Considerando a tendência de envelhecimento populacional, em que cada vez mais se tem a presença de idosos nas famílias, a situação das mulheres ficará cada vez mais insustentável.

  • Nosso passado nativo

    Minha avó comentava em suas divagações que uma de suas avós era “índia”, daquelas pegas a casco de cavalo. Uma história meio lendária, embora alguns ramos da família trouxessem traços mais queimados, não como pessoas pretas, mas como amorenadas de sol. Obviamente, apesar de sabermos de nossas raízes ibéricas dos povos antigos vindos para o novo mundo sabe-se lá Deus como, nunca nos consideramos brancos, embora nunca nos assumamos pretos. Indígena é algo que nunca se passou por nossa cabeça, não por acaso, afinal de contas o genocídio dos povos tradicionais apagou completamente essas possibilidades. Mas, no final, examinando documentos antigos, há um grande indício de que é possível sim que uma das avós de minha avó tenha sido uma indígena.

    Quando Lúcia Tapuya começou um movimento em Apodi para resgatar a tribo desse povo dizimado e apagado da história do Brasil, muitos a chamaram de louca. Ora, quem já se viu, achar índio em Apodi?! Coisa de gente desequilibrada. Acontece que basta olhar para as periferias desta velha cidade, a segunda mais antiga do Rio Grande do Norte, para ver que Lúcia era mais visionária do que “louca”. A cor da pele, os traços de muitas pessoas, as currutelas, como Peba e Porróias, tudo isso eram indícios claros daquilo que qualquer antropólogo ou cientista social sabe de cor: houve um processo de branqueamento das populações indígenas, sobretudo dos que negaram suas origens para poder permanecerem vivos. Milhares foram exterminados durante a Guerra dos Bárbaros no século XVII, genocídio também chamada de Levante dos Tapuyas.

    Lúcia começou essa caminhada entrevistando pessoas que confirmaram ter, em sua família, alguém que, no passado, foi “pega a casco de cavalo”. Essa expressão diz respeito ao comportamento violento dos brancos de origem européia e seus capangas que caçavam nativos nordestinos como bichos, sequestravam as mulheres e depois as estupravam ou as escravizavam nas cozinhas dos casarões. Uma lembrança tenebrosa e dolorosa para qualquer árvore genealógica, embora contada sempre como algo “normal”, que aconteceu há muito tempo. Vultos de um passado sem memória.

    Na minha linhagem de agricultores, forneiros e vaqueiros, o meu quarto avô por parte de mãe (o segundo avô da minha avó, por parte de mãe, para se mais preciso), um sujeito por nome de Benvenuto, só tinha mãe: Thereza Maria de Jesus, o que é estranho, uma vez que, geralmente são os homens os primeiros citados. O pai de Benvenuto é sempre ignorado. Claro que as pesquisas realizadas até então são inconclusivas, pois dependemos de documentos muito antigos e muito mal preservados, mas a hipótese suscitada por minha avó começa a fazer sentido. Ao contrário dele, sua esposa – minha quarta avó – dona Innocência, apesar de também ser Maria da Conceição, tem registros de pai e mãe.

    Os testes genéticos que realizei recentemente me dão apenas 6% de sangue ancestral indígena. 71% de meu DNA é composto por genes europeus, com maior concentração na região Ibérica e na Itália, o que me limita a reivindicar qualquer lugar de assento entre os ilustres Tapuyas Paiacus da Ribeira do Apodi, embora também não possa eu negar esse traço em meu sangue.

    Existe uma luta importante acontecendo nesse campo e é preciso que se diga a verdade sobre o passado, sobre a história e suas injustiças. Não se trata, como alguns tolos pensam, de se montar tribos, ocas e arco e flecha como há séculos atrás. Essa visão eurocentrista ignora o óbvio: que a reivindicação está centrada no reconhecimento de um povo mais antigo do que a própria ideia de Brasil. Assim como os judeus, os italianos, os árabes, os alemães e muitos outros, os povos tradicionais brasileiros também têm uma linhagem, um passado e uma diáspora. O seu renascimento e ocupação de espaços e territórios é nada mais do que justiça natural e reparação histórica.

  • O holocausto, o Papa e um dilema moral

    Lembra ou conhece o dilema do trem, usado na filosofia para discutir questões morais? Bem, o dilema moral do trem, apresentado por Philippa Foot, filósofa britânica que se destacou em ética e filosofia moral, é um experimento mental que coloca em questão a decisão moral de sacrificar uma vida para salvar outras. No cenário, um trem está desgovernado e se aproxima de cinco pessoas que estão presas na linha férrea. Você está perto de uma alavanca que pode mudar a direção do trem para outra linha, onde há apenas uma pessoa presa. A decisão moral é se você deve ou não puxar a alavanca para salvar as cinco pessoas em detrimento da vida da pessoa na outra linha. O dilema levanta questões sobre a ética da ação, o valor da vida individual versus o valor da vida em grupo e a responsabilidade moral diante de situações difíceis.

    Acontece que este dilema acaba de ser atualizado, tendo como cenário a Segunda Guerra Mundial, o holocausto, em que milhões de judeus foram chacinados pelos Nazistas, e a negligência da Igreja Católica, então comandada pelo Papa Pio XII. De acordo com o jornal italiano Corriere della Sera, uma carta recém-encontrada é um indício gravíssimo de que o chefe da igreja foi avisado dos campos de concentração e da morte inumana dos judeus. De acordo com a CNN, que traduziu a matéria do Corriere, o documento, datado de dezembro de 1942, foi escrita pelo padre Lother Koenig, um jesuíta que fez parte da resistência antinazista na Alemanha, e dirigida ao secretário pessoal do papa no Vaticano, padre Robert Leiber, também alemão. “Na carta, Koenig diz a Leiber que suas fontes lhe confirmaram que cerca de 6 mil poloneses e judeus eram assassinados por dia em ‘fornos da SS (grupo antissemita do nazismo)’ no campo de Belzec, perto de Rava-Ruska, que então fazia parte da Polônia ocupada pelos alemães e agora está localizado no oeste da Ucrânia”, relata a CNN.

    Para o arquivista do Vaticano, Giovanni Coco, a carta tem uma importância “enorme” por se tratar de “um caso único”, pois mostrava que o Vaticano tinha informações de que os campos de trabalho eram, na verdade, fábricas de morte. A reportagem do jornal italiano diz ainda que “Os apoiadores de Pio XII dizem que ele trabalhou nos bastidores para ajudar os judeus e não se manifestou para evitar o agravamento da situação dos católicos na Europa ocupada pelos nazis.” (tradução CNN). Ou seja, embora a informação mostre que o Papa não ficou de braços cruzados, mas está claro que ele deixou o “trem” seguir o curso normal para não tomar uma decisão para não colocar em risco outro grupo, no caso, os membros de sua igreja.

    Perguntei a dois amigos doutores em Filosofia o que achavam do caso e as respostas foram curiosas. Um deles citou a máxima “Os fins justificam os meios”, do poeta romano Ovídio, em seus Heroides – frase também cunhada por Maquiavel, no clássico O Príncipe. Contudo, reformulou em seguida dizendo que “Religiões são feitas por humanos, daí seus erros”. O outro (uma mulher na verdade) questionou-me “Como ele teria evitado? Ele poderia era ter evitado o holocausto! Aí resolveu deixar a coisa fluir pra acabar com os judeus?” Filósofos costumam responder perguntas com outra pergunta, embora a deontologia na Filosofia enfatize a importância de seguir princípios éticos universais, mesmo que isso possa levar a consequências negativas em curto prazo. Claro que não espero uma resposta para este caso, ainda mais de filósofos, já que se trata de um paradoxo moral que merece discussão e reflexão e é este um dos objetivos do presente texto.

    É preciso reforçar, no entanto, que o que está sendo comprovado agora em relação ao alto escalão católico não é novidade para as suspeitas, muito bem já referenciadas em obras artísticas, como no filme Amém, dirigido por Costa-Gavras, por exemplo. A busca por poder, benesses, prestígio, etc, é do comportamento humano, o que inclui – sem polêmica – o representante de Deus na terra para a igreja católica. O que seria ético para o Papa senão agir pela verdade e justiça? Conclamar a seus fiéis para entrar na defesa da vida humana, não apenas a própria (como fez o próprio Cristo), tema tão debatido pela igreja em outros casos bem específicos. Mas não foi isso que o Papa, os cardeais, abades, bispos, arcebispos, etc, fizeram de maneira ordenada. Por outro lado, vale lembrar que todas as vezes que um representante da Igreja Católica se mete a defender questões sociais sofre punições, vide Frei Caneca, Dom Helder Câmara, Leonardo Boff, Frei Tito, Frei Betto e outros. Assim como esses, o atual papa, Francisco, também pode ser colocado como exemplo de justiça, uma vez que foi ele quem anunciou abertura de arquivos secretos do pontificado de Pio XII durante a 2ª Guerra Mundial e eis aí alguns resultados.

    Mas não estou aqui questionando a importância dessa religião, nem a de seus membros que, por outro lado, têm dado relevante contribuição humana, às letras e às artes e têm sido um caminho necessário para os desamparados. A questão aqui é um ponto no papel branco, afinal, relembrando o amigo filósofo, “religiões são feitas de humanos” e, aos humanos, agora pensando no que supostamente disse Cristo, é preciso reconhecer os erros e reconciliar-se com Deus por meio do perdão. Contudo, é tempo ainda de questionar a mitificação dos homens e a santificação dos religiosos. Não é que um homem não possa fazer coisas extraordinárias, pode e faz, o que inclui atos bonitos de caridade, humildade e quase milagres, mas tenho como quase impossível que um humano possa ser elevado à categoria de santo, pois um santo, na tradição cristã, é uma pessoa reconhecida por ter vivido uma vida exemplar de serviço a Deus e ao próximo e aí, recorrendo novamente à Filosofia, posso perguntar: o que seria exatamente uma vida exemplar? Essa questão me parece criar caminhos para outro paradoxo e novos dilemas para se discutir.

  • Latada

    Dali, daquele monte de areia batida, sedimentada de tanto pisada, molhada e cuspida, chamava-se o gado. Final da tarde. Vocalização alongada, aspas de vaquejada, sofrimento flamenco de algum resquício cultural da Andaluzia. Meu avô, de poucas palavras, entusiasmava-se chamando o gado.

    Latas de querosene estendidas a martelo, pregos sustentando as pontas com firmeza nas ripas e caibros, espaço dois por dois e olhe lá. Só o suficiente para não molhar a porta da cozinha ou a soleira feita de algum pedaço velho de madeira.

    Latada, não varanda, caramanchão, pérgola, pavilhão, gelosia ou parreira, latada, pois era feita de lata. Duas forquilhas tortas sustentando a estrutura de zinco armado à martelada. Utensílio simples com propósito básico, mas que definia toda a existência e prevalência de um signo, a permanência de um significado que jamais foi substituído na memória por outra coisa que não fosse semelhante àquela imagem.

    Alpendres, de madeiramento e telha, não são latadas, pois na construção semântica de minha infância, latada só poderia ser definida por uma construção cuja cobertura fosse de latas, o que não significa folha de zinco, dessas brilhantes compradas em material de construção. Lata só existiam duas: de querosene e de óleo de caroço de algodão, qualquer outro metal mudaria obrigatoriamente o sentido lógico daquela arquitetura.

    Sob sua sombra pouca, construí muitas fazendas de gados de ossos de ovelhas. Algumas vértebras eram direitinho tratores, máquina mais bonita já criada pelo homem. Aos 30 quilômetros por hora, faz os cabelos esvoaçarem, acende a adrenalina de menino, o que destampa a panela do sorriso. Segurança alguma, lugar nenhum para se apoiar a não ser o próprio paralamas armado sob a roda gigante. Posso dizer que o trator foi meu primeiro trem, minha única montanha-russa.

    Da esquina para o oitão o tanque d’água quase sempre vazio. Da outra banda fumegante pela chaminé do fogão, cerca de vara e curral. Ao fundo, por trás de tudo e até da casa, a porteira abraçando a estrada. No rumo contrário, para onde meu avô usava o vento como transporte da voz, o sertão todinho como num quadro estanque e pequeno, desses que se esquece na parede. Um pezinho de jucá à direita com ninhos pequenos indicava o começo da estradinha torta. À esquerda, aroeira frondosa recheada de ninhos de gralhas, observatório de carcarás, alinhava a visão da roça de algodão.

    Solilóquio de reza e cancioneiro antigo vindos da cozinha velha e escura. A voz pouco delicada de minha avó lembrando da mocidade e mantendo vivas histórias mais antigas que nosso próprio país; passagens decoradas de ouvir cantorias. Um jovem que luta com um dragão em defesa da honra de uma princesa, um capitalista que constrói um planador em forma de ave para roubar uma donzela. Reinos, ducados, países estrangeiros. Todas palavras bonitas, mas sem significado para quem só conhecia a existência de mato. Mas ouvi-las educava a mente a construir narrativas melhores com o gado de osso.

    Em dias de inverno, a chuva faz batucada na lataria da latada e inunda o terreiro limpo de vegetação até certa altura. Lamaçal em frente à cozinha velha. Galinhas e ovelhas fazem pisadela. Na manhã seguinte, o milagre da biologia estendido por toda a extensão daquele pequeno mundo que se forma. Micro-floresta de babugem, alimento para aves e minhocas, sinal de forragem para os animais maiores. Caramujos pequeninos passeiam pelas ramagens que só se consegue ver pelo quantitativo. Uma festa de tanto bicho que de tão minúsculos obrigam-nos a deitar e quase encostar o olho na terra para ver sua existência e beleza.

    A latada é um observatório do micromundo que se forma lá fora, mas que, com certeza, se forma, microscopicamente, do batente para dentro também e, bem possível, se enraize em meus pés descalços de menino. Resistência pela convivência, como parte daquilo tudo, integrante da natureza que compartilha o meio e só o transforma o suficiente para existir. Como os pássaros que fazem casas, o gado que cavuca a terra, os tatus que cavam cacimbas. Natureza viva e proeminente, bichos influenciando bichos, animais como quaisquer outros.

    Toco de madeira usado como banco, trilho de trem como biga para amolar enxada. A história natural e humana ali em pequenas porções de representações. Qual madeira deu aquele toco? Se for natural da região, quanto tempo viveu antes de ser cortada? Se é de outro lugar, quando trouxeram sua semente pela primeira vez? Foi homem ou foi avoante? E aquele trilho, teria vindo em navio inglês? Quantas pessoas e vagões suportou até chegar ali naquela latada? Teria minha avó ideia de que existia em seu terreiro algo que veio de um reinado, forjado por súditos de um reino legítimo e mais antigo que nosso próprio continente?

    A latada, a olho nu, era um paliativo daqueles que, desprovidos de recursos, usam qualquer estrutura para se amparar. Mas, para nós, era o espaço de nossa vivência real e intermitente. Rotina orgânica com o biológico, o cosmo, a santa trindade e a literatura medieval que alimentava nossos mitos e lendas. A latada, simples e esteticamente duvidosa, era um dos portais de nosso castelo de barro, único mundo que realmente conhecíamos.

  • Porteira

    A estrada está aberta e quem por ela passa não sabe que antes, bem ali, na linha daqueles dois mourões, habitava uma porteira. Azul entrelaçada, aberta como dois braços freando a liberdade de quem pensava em passar; uma sentinela imponente de madeira resistente à chuva, ao sol, à poeira e ao vento que, em insistência impertinente, a balançava em traquinagem. O vento e o portão em eterno conflito: briga medonha.

    Vazio de porteira é também ausência de memória. Os que por ali atravessam ou perambulam não veem na sombra do que já foi portão a réstia de minha infância. Vaporosa para quem ouve, infinita para quem conta. O portão não era um amigo, mas um patrão ou, quem sabe, um meio para uma renda infantil e tutti-frutti que ocupava meus dias. Eu que sempre gostei de trabalhar. Abria o portão para os carros afobados de onde jogavam uma moeda qualquer como paga e eu, como todo sertânico feliz, reconhecia com uma alegria menina.

    Minha primeira renda. Níqueis tilintando em  vasilha azul-plástica de minha avó. Escondidos dos olhos alheios, pensava eu, em um ambiente de poucos objetos domésticos, onde nada podia ser escondido. A possibilidade de moeda era o moinho que fazia fluir o rio dos dias, lentos, secos e trêmulos do mormaço cotidiano. Vento quente ressecando a pele que mais parecia uma lousa escura de desenhar formas simples, devaneios distantes e alheios ao que se via entre o alpendre da casa velha e a porteira comprida.

    Ouvidos atentos distinguiam a gralha de grasnido ininterrupto das ações humanas. Automóveis ou motocicletas sempre apressadas em fugir do sol agressivo e eficiente. Ardente castigo sertanejo. Corria sobre as perninhas finas sabendo de onde vinha: de lá ou de cá, subindo ou descendo. Poeira comendo as vistas, sequidão na garganta, caneco de água retumbando no fundo do velho pote no canto da parede. A ausência da moeda que ficou para a volta. Ouvidos atentos novamente para nova empreitada que rasgue o silêncio silvícola como uma faca quente sobre plástico mole.

    O tempo só é linear para quem vai, mas se você para e pensa não há nenhuma linha reta ou divisão que separe o antes do agora; aquele momento gravado na parede da memória com o desejo distante de reconstruir as porteiras azuis como o céu aberto, horizonte distante e azul igual, longilíneo, única imaginação possível de se apontar.

    Para a memória geral é apenas uma porteira, objeto inanimado substituível. Agora mesmo deve estar fechando outra estrada ou, quem sabe, em situação mais drástica, escorada sem serventia; pior ainda, queimando em brasa como lenha no fogão de alguém. Para meu baú dos guardados, uma missão que se repete naquela infância pensada. Designer estático de um tempo irrevogável onde, sem diálogo, eu pensava a porteira como uma oportunidade para a qual eu me dedicava sem necessidade de ser demandado. Era minha liberdade financeira, minha goma de mascar, meu carrinho de plástico, se desse.

    A porteira era uma faixa que limitava a posse do ser e do estar. Briga com meu primo pelas moedas quando, esporadicamente, estava por lá. Minha avó me repreendendo para dar oportunidade ao outro: tadinho, mais novo e sem pai. Ela me ajudava ali a exercer com mais propriedade a empatia, embora também meus rancores. A porteira era minha necessidade, era eu quem dali tirava o desconto do tempo sem nada pra fazer, a moeda que para além do monetário era uma forma de me fazer próximo do que era urbano, humano e social.

    Havia uma simbiose entre o alpendre e a porteira, entre nosso lugar minúsculo e todo o resto defendido por ela. Fazenda de cavalos, de gado nelore, de água jorrando em poços profundos, cajuais conjugando o futuro das fábricas de castanhas e sucos de caju. A porteira restringia para nós tudo o que se movia depois dela e nos mantinha, ali, presos num passado perene, sabendo o que se passava além de suas treliças. A porteira nos barrava, mas talvez fosse ela que nos protegesse de ser como os demais urbanizados, pessoas sem apego à memória, carentes de objetos virtualizados, de atenção alheia. Talvez fosse ela a relíquia de um tempo que deixamos para trás.