Últimas histórias

  • Livros

    Eu tenho estantes de livros, diversos, clássicos e contemporâneos. Mas eu tenho a ideia de que não gosto mais de livros porque o livro exige tempo, dedicação e silêncio. É uma multidão que povoa seu interior, um mundo paralelo que acontece enquanto você está parado e desprendido da realidade presente. Não me desfaço dos meus livros porque tenho por eles um apego inexplicável, são patrimônios físicos que me conduzem a outras realidades como portas portáteis com poder absoluto de transferência do corpo invisível que nos compõe. Os livros são objetos transcendentes que se pode amá-los de amor tátil, que podemos vivê-los e lançá-los ou simplesmente deixá-los pausados no coração da estante.

    Existe um paradoxo que é gostar de livros sem querer abri-los sempre, mas ainda amá-los com a intensidade de quem os lê todos os dias. Eles repousam ali, nas prateleiras, observando o tempo passar, cúmplices do nosso apego silencioso, quase tímido. Cada um deles é uma espécie de portal discreto, um universo dobrado em páginas e capas que aguardam, pacientes, nosso olhar atento. E é curioso pensar que o livro não se ofende por ficar fechado. Ele sabe esperar. Na sua quietude, guarda para si histórias e segredos que, um dia, talvez decidamos desdobrar de novo, como cartas antigas cheias de memórias.

    Livros são, por essência, coisas de eternidade, e nós sabemos disso. Talvez por isso, mesmo com a vida atribulada, eles continuam ali, fiéis, esperando por nós. Não há pressa. É como se nos amassem também, com a paciência de um velho amigo. E nesse amor silencioso, cada capa guarda uma lembrança, cada lombada é um fragmento da nossa história. Deixá-los ali, na estante, é como preservar um pedaço de quem fomos, de quem ainda podemos ser. São como guardiões de memórias e sonhos, pontes entre realidades que se mesclam ao toque de nossos dedos. Esse amor tátil, essa devoção aos livros físicos, transcende qualquer funcionalidade. É o prazer de possuí-los, de senti-los ali, testemunhas da nossa própria jornada.

    Há quem diga que o futuro será sem papel, sem livros, mas nós, leitores de estantes povoadas, sabemos que isso seria um crime. Porque o livro é mais do que história impressa; é um companheiro de viagem, um espelho que nos reflete em nuances secretas. Cada um deles, parado ali, já é uma promessa, uma aventura aguardando para ser desvelada. Quem passa os olhos por essas estantes percebe algo de sagrado. São mais que objetos, são relíquias vivas, cápsulas do tempo que não nos aprisionam, mas nos libertam.

    É por isso que, mesmo que o ritmo da vida nos afaste das leituras, nunca deixamos de amá-los. Os livros, como todos os amores verdadeiros, não exigem pressa. Eles sabem que o amor é feito de tempo e que a eternidade cabe em cada página. Na estante, ficam ali, pausados, mas pulsando, como corações de papel que batem no ritmo da nossa própria existência. A nossa história está ali, enredada nessas páginas, e cada livro, mesmo fechado, é uma pequena peça do quebra-cabeça de quem somos.

  • Estamos envelhecendo rápido, e agora?

    O poeta não fingiu, ele calculou hermeticamente a saída e tomou a decisão que a ele lhe foi mais humana. Feriu os preceitos cristãos, causou perdas e danos, gerou um debate estranho e mórbido, numa decisão que afeta a moral humana e provoca uma tristeza subterrânea, dessas que não se encontra palavras para dizer. Mas o poeta estava consciente e aproveitou dessa lucidez para apagar ele próprio as memórias e a vida antes que a biologia o fizesse de forma arbitrária e dolorida. Como havia escrito antes em seu poema mais célebre, “melhor se guarda o voo de um pássaro do que um pássaro sem voos”.

    A decisão do poeta Antônio Cícero, diagnosticado com Alzheimer anos atrás, de  realizar sua morte assistida na Suíça é, de fato, incômoda e não recomendável, mas há muitas camadas nesse percurso: a solidão da velhice e o despreparo do mundo para lidar com o envelhecimento populacional.

    Cícero teve pressa em resolver o fim de seu próprio enigma, pois talvez temesse mais a incapacidade do que a morte. E, se somos sinceros, tememos a incapacidade tanto quanto ele; há algo cruel em ver a memória e o corpo se apagarem devagar, enquanto o mundo ao redor se reorganiza, embora não exatamente para os velhos. No Brasil, envelhecer é quase um desenraizamento — a cidade, construída para jovens, persegue e descarta o idoso em cada degrau alto demais, em cada rampa íngreme, em cada transporte público com acesso limitado. O país, que um dia viu a sua população crescer exponencialmente, vê agora sua gente envelhecer sem um olhar para a dignidade no caminho.

    Hoje, o envelhecimento populacional no Brasil deixou de ser uma tendência vaga e se tornou um fato inescapável. Em 2022, a idade mediana da população brasileira atingiu os 35 anos, um salto em direção a uma estrutura etária madura, acompanhada pelo aumento do número de idosos. Desde 1980, a parcela de pessoas com mais de 65 anos praticamente dobrou, agora somando 10,9% da população. Mas a matemática fria das estatísticas esconde os rostos e histórias desses que envelhecem sem infraestrutura, sem assistência e, muitas vezes, sem apoio familiar ou social.

    Esse envelhecimento representa uma terceira fase da transição demográfica, marcada pela desaceleração do crescimento populacional e pela inversão da pirâmide etária. E, enquanto isso, as políticas públicas parecem correr atrás de uma sombra, uma tentativa de adaptar o que já deveria estar pronto. Como o voo de um pássaro que tenta ir contra o vento, o esforço para oferecer cuidados integrais e planejados esbarra em um contexto que mal considera a saúde dos idosos, menos ainda suas necessidades emocionais e sociais.

    Imaginemos, então, uma cidade que se adequa a seus habitantes, como o refúgio que Cícero talvez esperasse ver para ele e os de sua idade. Seria uma cidade que se ajusta ao tempo, onde os passos mais lentos não são motivo de pressa alheia. Em vez disso, o idoso no Brasil enfrenta o desafio de se movimentar em espaços hostis, onde faltam rampas, onde há poucos bancos nas praças, onde o transporte público é um verdadeiro teste de resistência física. É a ausência de uma cultura do cuidado — esta sim, necessária e urgente — que transforma a experiência da velhice em um momento de isolamento e sofrimento.

    O envelhecimento, por si só, poderia ser um período de frutos e colheitas, um bônus demográfico tardio onde a experiência se torna recurso para a sociedade. Mas, sem preparo, o que vemos é uma inversão de expectativas: os idosos têm a sabedoria e a vontade, mas carecem do ambiente e das condições para aplicá-las. Eles poderiam ser mentores, poderiam contribuir para o desenvolvimento de políticas e práticas sociais inovadoras, mas se veem presos em um ciclo de invisibilidade, onde sua experiência é subutilizada e, muitas vezes, ignorada.

    Em algumas cidades do Brasil, iniciativas como o Programa Cidade Amiga dos Idosos, incentivado pela OMS, buscam adaptar o espaço urbano para promover saúde e bem-estar aos mais velhos. No entanto, são poucos os municípios brasileiros que realmente seguem esses parâmetros. Faltam acessibilidade, assistência integral e políticas que considerem a complexidade do envelhecimento. Mesmo nas grandes cidades, onde o índice de envelhecimento é maior, há pouca oferta de ambientes realmente amigáveis para idosos.

    Precisamos, então, não de mais despedidas tristes e silenciosas como a de Antônio Cícero, mas de uma transformação estrutural, onde o envelhecer no Brasil seja um processo seguro e digno. O Brasil tem a oportunidade de transformar essa realidade, mas isso exige coragem e vontade política. Envelhecer não precisa ser um fardo; pode ser uma continuação do voo, com passos mais lentos, mas com a liberdade e o respeito que todos merecemos. Para isso, a cultura do cuidado deve ser uma prioridade — um compromisso com a acessibilidade, com a adaptação dos serviços e com o respeito àqueles que já tanto deram de si à sociedade.

    A decisão de Antônio Cícero deve ser respeitada, pois foi sua, mas a solução para o envelhecimento não precisa ser o fim. Em vez disso, o envelhecimento pode ser visto como uma nova juventude, onde o idoso, com sua experiência e paciência, se torna novamente parte ativa e integrada da sociedade. Ao respeitarmos a trajetória e o ritmo dos que já viveram tanto, damos um passo em direção a uma convivência mais humana, mais generosa. Que o idoso de amanhã seja o novo jovem de hoje, com a experiência de quem aprendeu que a calma e o tempo bem aproveitado são aliados mais poderosos que a pressa. O bônus demográfico tardio que o Brasil viverá em breve é uma chance para valorizar a sabedoria e construir alternativas que transformem o envelhecimento em um caminho suave e acolhedor, onde o fim não se apresse em chegar e o voo permaneça livre.

  • O vício das revoluções passageiras

    Outro dia, lá estava eu, olhando para a tela do celular, quando me dei conta: vivo numa era onde até a cafeteira quer me ensinar storytelling. A máquina de café, que antes só chiava e cuspia café, agora quer me contar uma história sobre a origem das sementes, a jornada de um grão até a xícara, como se eu fosse esquecer que o único enredo que me interessa às sete da manhã é a narrativa do café salvando minha vida. A verdade é que estamos todos viciados em novidades embaladas como revoluções.

    Lá no TikTok, a juventude se espreme para caber em vídeos de 15 segundos, vendendo-se como gurus da modernidade. Eles saltam, dublam, apontam para frases flutuantes, enquanto eu me pergunto: será que esses jovens sabem que a TV já fazia reels antes de eles saberem o que é um controle remoto? E não falo de agora, mas desde que os dinossauros andavam pela Terra, a TV já exibia vídeos curtos. Lembram das vídeo cassetadas? A mesma piada de alguém tropeçando e caindo, só que sem o filtro de gatinho no rosto. A diferença é que a gente ainda tinha a decência de rir mais baixo.

    E agora tudo é em inglês. Roteiro virou storytelling. Trabalho é job. Ouço gente dizendo que vai fazer um “call” ao invés de telefonar. Você convida para um cafezinho e a resposta é “bora tomar um coffee?”. Antigamente, isso seria chamado de pedantismo. Hoje, é só mais um dia comum na era da globalização. E tudo bem, mas eu tenho um compromisso com o vernáculo, veja você. Não é por nacionalismo bobo, mas por amor à nossa própria riqueza linguística. Afinal, um bom português é igual a uma boa cachaça: forte, autêntico e te deixa meio bobo, mas feliz.

    A juventude, sempre na frente, pensa que inventou a roda. O rádio, coitado, dá uma risada silenciosa a cada novo “podcaster” que acha que desbravou território inexplorado. O que eles não sabem é que o rádio já faz isso há cem anos. O problema é que, como diria Bauman, vivemos em tempos líquidos, onde o velho é reciclado com uma nova embalagem, e ninguém repara que o conteúdo é o mesmo. Só mudam as cores e o sabor artificial de inovação.

    E então eu olho para essas novas gerações, e sorrio. Elas se acham as donas da bola, enquanto a gente, que já viu muito feijão queimar na panela, assiste de camarote. Vai passar, eu penso. Sempre passa. E quando a próxima “grande revolução” vier, eu já estarei preparado, com meu storytelling afiado, lembrando que, no fim, tudo isso não passa de uma boa e velha história sendo recontada. Em inglês, é claro.

    Como disse um velho e bom amigo, num mundo pós-apocalíptico, quando tudo falhar, só restará o analógico e nós da geração X ainda seremos a geração do futuro.

    *Para o poeta Olavo Saldanha

  • A geração de vidro e a arte de quebrar promessas

    Vivemos tempos em que a palavra empenhada já não é mais moeda de troca, e o compromisso virou um conceito tão frágil quanto os egos que habitam as mentes pós-milênio. A antiga ideia de honrar uma oportunidade, uma tarefa, ou até mesmo um simples acordo, parece tão anacrônica quanto o conceito de trabalhar em silêncio e com determinação. Os nascidos na era digital, embalados pelo barulho das notificações e anestesiados pelas redes sociais, desenvolveram uma habilidade notável: a arte de não cumprir.

    Lembro-me de um tempo, não tão distante, em que a oportunidade era tratada como um bem precioso, um pacto tácito entre quem oferece e quem aceita. Era como um contrato invisível, mas cheio de peso, firmado pelo simples ato de apertar mãos, sem a necessidade de um emoji piscando na tela. E nesse contrato, estava implícita a obrigação de fazer o melhor possível, de cumprir prazos, de mostrar que o seu nome, a sua reputação, valiam algo. Hoje, no entanto, esses valores parecem se dissolver na neblina da procrastinação, empurrados pelo vento fraco de desculpas esfarrapadas.

    As desculpas, ah, essas são um capítulo à parte. Nunca antes na história das justificativas humanas houve um repertório tão vasto e criativo. É quase uma arte performática. O trânsito, o tempo, a necessidade urgente de uma sessão de pilates, ou a visita à avó, que só acontece quando a entrega de um trabalho está em jogo. E que ninguém ouse questionar, pois as gerações pós-2000 têm a pele fina, quase translúcida. Um pequeno arranhão verbal, uma cobrança mais direta, e pronto! O cenário se transforma em uma tragédia digna de novela: lágrimas de indignação, expressões de surpresa ofendida e, claro, o vitimismo em sua forma mais pura.

    Curioso é que essa mesma geração, tão frágil e mimada, adora arrotar superioridade. Dizem saber de tudo, como se fossem os primeiros a desbravar o mundo. Falam como se tivessem a fórmula secreta do sucesso, como se soubessem fazer tudo melhor do que aqueles que vieram antes. A confiança beira a arrogância, até o momento em que precisam, de fato, mostrar serviço. E é então que se revela o grande paradoxo: muitos não sabem o mínimo, e precisam de orientação até o final, como crianças perdidas em um parque de diversões. No entanto, apontar essa falha é quase um sacrilégio, pois a juventude de cristal se chateia, ofende-se, cria um drama digno de um espetáculo de tragédia grega.

    Enquanto isso, aqueles que ainda acreditam na ideia de fidelidade e responsabilidade se veem forçados a navegar em um mar de promessas quebradas e desilusões constantes. O que antes era uma questão de honra, agora é tratado como uma bagatela, algo que pode ser dispensado com a mesma facilidade com que se desliza o dedo sobre a tela do celular. O nome, que outrora era uma marca indelével de caráter, hoje é apenas uma sequência de letras acompanhada de um arroba, pronto para ser deletado e substituído por um novo perfil, sem que ninguém perceba ou se importe.

    E é aqui que reside o ranço. Não apenas pela falta de compromisso, mas pela falta de consciência, pela incapacidade de entender que cada oportunidade desprezada, cada tarefa não cumprida, é uma microfissura na estrutura do que deveria ser uma sociedade baseada em confiança. As gerações que vieram antes talvez tenham falhado em muitas coisas, mas uma coisa sabiam: o valor de uma palavra. E ao observar essa fragilidade cristalina que domina os novos tempos, é impossível não se perguntar: o que será das próximas gerações, quando a responsabilidade e a honra forem definitivamente relegadas ao museu das virtudes extintas?

    Talvez, no futuro, a tecnologia avance a ponto de criar um novo material, mais resistente que o vidro, capaz de suportar as pressões da vida adulta sem estilhaçar. Até lá, restará aos que ainda têm respeito pela palavra empenhada o desafio de continuar remando, cada vez mais contra a maré, em um oceano de fragilidade moral e promessas quebradas.

  • Sombra e carne

    Perdão, padre, porque pequei. Não, eu não queria, nem nunca havia imaginado tal coisa; afinal, fui criada para a função de santa. Desde criança, mantive-me na fé, cumprindo os rituais que me foram cobrados e repassados desde minha avó. Minha mãe morre de orgulho e repete a todo canto a dádiva de sua filha. Estou na missão desde que me entendo por gente e nunca, nunca mesmo, pensei em abandonar a tarefa de cuidar de Deus, até hoje.

    Eu sei que foi provação, eu sei, mas nunca soube como me livrar dela, embora às vezes ache que não nasci para a culpa, só às vezes. Talvez depois desta confissão. Mas o que seria de mim se eu negasse a verdade?

    Não pensei ser assim tão ruim, e tive educação para não ser. Tudo estava bem, e eu rezo todas as noites, mas há dias em que só o banco celestial da casa de Deus é suficiente para aplacar a minha dor material. A vida é um jogo muito duro para quem se prepara para o paraíso. Nunca desejei morrer porque é pecado, mas queria que o céu não estivesse tão longe; assim não teria acontecido a minha desgraça.

    A Cristo converto o meu espírito enquanto tenho forças, mas há momentos em que preciso olhar em seu rosto e sentir-me mais próxima, então venho à igreja. Mas nesta noite não estava sozinha. A sombra estava à espreita, a mesma sombra que há dias vinha me perseguindo. Não sei por que, sempre me pergunto, não sei por que não tive medo. Há tanto tempo sendo caçada pela mesma aparição rasteira, estendendo-se nas paredes ou apontando nas esquinas, que me senti íntima dela. As sombras, padre, vêm sempre nos momentos vagos, quando os proscritos suspiram o seu pecado. As sombras nos preenchem mais que o próprio espírito, porque somos sombra tanto quanto.

    Eu percebi, confesso, mas não gritei como faz toda temente. Eu fechei os olhos como sombra e deixei-me consumir qual um corpo putrefato entregue aos deliciosos vermes da terra, porque eu era terra. Pela primeira vez, deixei-me ser terra e consumir. Haveria pecado mesmo na defesa; por isso, deixei-me. E o pior, padre, pequei por não me arrepender da sombra. Não acredito nesta ressurreição. Eu sou um prego nos pés de Cristo e não sei se posso ser diferente.

    Já tentei encontrar a compunção nas lembranças antigas. Tentei encontrar uma lágrima qualquer que me fizesse sentir triste como uma condição de arrependida, mas só me lembro do ato e do chão empoeirado; do caminho onde transcendi abastadamente. Não pude escapar da satisfação de ser jogada contra o chão para satisfazer a sombra, nem de vê-la fugindo na escuridão após me deixar na sarjeta: dolorida e lambuzada pelos seus instintos. Não há sensação melhor, por isso entrego-me ao desatino e ao descaminho. Não sirvo para Deus ou ao mundo santo. Eu sou carne e, como as ovelhas do campo, sirvo apenas de alimento aos homens e aos vermes. Sou filha dos pensamentos e não das paredes.

    Gozo das sensações de minhas irmãs e da madre superiora, tão boas e tão ingênuas. Da sensação da sombra sobre o meu corpo esfarrapado como num sonho distante. De vê-la correndo na escuridão de sua própria casta, rumo ao mesmo quarto vazio onde as luzes se acendem toda madrugada aos olhos de nós todas. Deixá-lo-ei, padre, mas não se assuste com a minha partida. Meus olhos estarão fechados e tudo estará mudo quando eu me for. Não há o que temer, há perdão para tudo.

  • Quando o demais é veneno

    Por José de Paiva Rebouças e Maria Clarice Lima Paiva

    Há pouco tempo, logo ali, pela década de 1990, também início dos anos 2000, a gente ia a uma locadora de vídeo, alugava duas ou três fitas VHS para o final de semana e era isso, senão a principal, mas uma das principais atividades recreativas do descanso. Hoje, minha filha e eu gastamos uma enormidade de tempo decidindo o que assistir nos diversos streamings que assinamos, cada um deles com milhares, sem exagero, milhares de opções de todos os gêneros. Antes, a escolha era o que tinha e, por isso, cada minuto vendo o filme tinha maior valor, haja vista que na segunda-feira precisaríamos devolver a fita (depois o DVD) ou pagaríamos a mais. No caso do VHS, você há de lembrar, se não fosse rebobinado, pagava multa.

    Não há coisa mais importante para a liberdade do que a possibilidade de escolhas, a concorrência, a ausência de imposição. Contudo, como aprendemos com Zygmunt Bauman, existe uma distância enorme entre liberdade e segurança. A liberdade de escolha esbarra na segurança da própria escolha, quer dizer, quando eu entro na Shopee para procurar a capinha para o meu celular posso até ter uma ideia fixa na cabeça, mas o montante de opções pode me causar insegurança, ampliar minha ansiedade e tornar a minha escolha um problema.

    Essa conversa me faz lembrar o amigo, poeta, Antônio Francisco, que teve um grande problema quando Nira, sua esposa, lhe comprou outra calça. Ele já não sabia mais com que calça sair, se com a nova ou com a já usada e, por vezes, preferiu ficar em casa. Obviamente, essa é uma anedota do poeta, mas, como tudo que ele escreve, faz muito sentido. A gigantesca liberdade de escolhas que o capitalismo e a classe média acessam provoca também um reverso da possibilidade de escolher. Talvez, por isso, tanta gente caia na armadilha da futilidade, se obrigando a se vestir, se comportar, viajar ou se mostrar como outros. Muitas vezes esse comportamento é tomado para que os sujeitos, homens e mulheres, saibam aproveitar a vida, usando o argumento das “tendências” para, enfim, tomar suas decisões.

    O nível de fragilidade que advém de um mundo de facilidades reflete diretamente na construção das gerações seguintes. Na casa de meus avós, um tamborete e uma mesa eram artigos de luxo. Na casa de minha mãe, já precisamos de geladeira e televisão. Em minha casa é internet, celular e outros penduricalhos com os quais não vivemos mais, ou pensamos que não vivemos, mas, no fim das contas, a cadeira e a mesa são as coisas mais necessárias e importantes. É onde trabalhamos, onde comemos e onde nos reunimos para conversar.

    Dosar o exagero, achar o meio termo, tudo isso é assunto para psicólogos que precisam dizer o óbvio para nós, os ansiosos, que não sabemos lidar com a simplicidade das coisas e da vida. Dez mil anos atrás, nem precisávamos de roupa para viver. Atualmente, sem uma série de objetos, nos tornamos infelizes, tristes, deprimidos e inferiorizados. Quando a União Soviética fez o Lada, imaginou um carro que durasse 20 anos. Hoje, ainda encontramos algum Lada pelas ruas, mas a União Soviética não existe mais. Como os comunistas perderam a Guerra Fria, agora se não trocamos de carro pelo menos a cada três anos, nós e o veículo nos tornamos obsoletos.

    Desde pequenos, aprendemos com nossos cuidadores, pais, avós, tios, irmãos, que tudo demais é veneno, seja o que for. Água demais pode matar, cansaço demais pode fazer o pulmão explodir, opção demais pode fazer a gente ter dificuldade de escolher e, o que é pior, querer mais do que o que se tem para escolher. Contudo, se ter opções demais é um problema, uma solução é lembrar que também temos “passado demais” para consultar e lembrar que se vivíamos, antes, com pouco, podemos viver com o suficiente agora. É só pensar no que é necessário, porque o extraordinário é demais.

  • O arroto

    Marieta acordou diferente. A casa era a mesma, e o silêncio das moscas das manhãs seguintes ainda figurava no ambiente. A cama estava vazia. Marido e filhos já perambulavam. Ela os olhou desatenta, parecia cansada quando entrou no banheiro e demorou mais do que o de costume. O tempo demonstrava atraso no café e nas tarefas diárias. O filho mais velho aguardava a torrada para se deslocar ao trabalho. A filha menor esperava as ordens para ir à escola. O marido não esperava nada.

    Marieta mexeu as panelas e ligou a cafeteira. Seus olhos pareciam fechados, assim como seus ouvidos. Aprontou uma mesa feia e pães aguados. O café sem açúcar torceu as caras nos primeiros goles. À mesa, a sobrinha agregada ainda perguntou algo, mas não obteve resposta. O filho puxou conversa, mas Marieta ficou calada e não lhe deu sequer um gesto.

    Sentou-se com todo mundo, tomou café como de costume, abriu o jornal que era do marido. Leu as notícias de polícia, passou pelas colunas, viu a política, passou pelos classificados, viu os preços; folheou os anúncios, as mesmas festas. No cinema, os mesmos filmes, e o signo era repetido da semana passada. Marieta soluçou expelindo gases.

    Notava-se aí que a mulher poderia estar doente. Talvez um chá de boldo para acalmar o estômago, foi o que alguém pensou, mas só ela sabia como fazê-lo. Ofereceram-lhe um antiácido. Não obtiveram resposta. As pessoas já se acostumaram a não obter respostas. Marieta cuspiria essa filosofia se quisesse falar.

    Voltou para seu quarto em busca de um livro e esqueceu a cozinha por um instante. Mas os livros são feitos por dois motivos: ou sem propósito algum, para deixar as pessoas extasiadas com o nada, empreitando uma tentativa torpe de entender o que não foi dito, ou puramente para fazer lucro e fama. Marieta lançou gases pela boca e se sentiu como se estivesse inflando. Pensou no que tinha comido nos últimos dias e na noite anterior. Sua cabeça, como ela, não dizia nada. Lembrava apenas dos rótulos garantidos pelos estudos científicos e pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária. Estava segura.

    Entre a sala e a cozinha, existia muito barulho. As meninas carregavam conversas sobre as palavras alheias. O marido perguntava coisas a elas, que respondiam monossilabicamente. Um retrato diferente do que se expunha na estante, onde todos se abraçavam com sorrisos largos. Marieta expulsou os gases do medo de já passar dos 40 com uma família comum demais para os padrões das novelas. Havia desistido de tudo em que acreditava e quase não tinha sonhos. Aparecia sempre alguém para lhe dizer que não possuía talento ou sorte, e ela foi abrindo mão dessas coisas e se entregando à tranquilidade de não ter ambição, para ser apenas um nome com o sobrenome do marido, mais velho e aposentado com um salário de fome. Nunca deixou de fazer nada de comum aos outros, mas sempre se achou à margem da vontade alheia. Não que se sentisse infeliz, nunca se sentiu; só não queria comprometer-se e deixar de ser a única coisa que conseguira ser.

    Acostou-se na cama como quem não pensa em nada e cochilou tranquilamente sonhos dos quais não se lembraria. Acordou algum tempo depois ouvindo gargalhadas que vinham da sala. Lembrou-se das antigas reuniões familiares. Dos filhos pequenos. O filme da locadora, o marido lendo a sinopse. O livro infantil, lido e relido a pedido dos pequenos, enquanto ela preparava os quitutes. A palavra “mãe” soava a cada minuto com uma sonoridade infantil e inocente. O sorriso do marido, que ainda era forte e vigoroso como o próprio corpo, a abraçava com força pela cintura. O telefone tocava como por coincidência, apenas para ouvir aquela algazarra farta de pão.

    Marieta sorriu no canto da boca e esforçou-se para levantar, mas estava pesada demais para se mexer com pressa. Os gases saiam agora por todos os orifícios. Quando atravessou a casa, lembrou-se das mãos enrugadas. Os pés, nas pantufas, arrastavam toneladas pelos cômodos sujos. Ninguém saíra de casa, como se fosse domingo e como se não houvesse contas a pagar. Marieta chegou à sala e encontrou a família indiferente, esparramada em frente à televisão. Olharam-na com espanto e medo. Ela estava enorme, inchada, parecia duas. Os lábios não se fechavam e os olhos saltavam esbugalhados. Iria explodir.

    Sob a agonia dos seus, recolhidos no imenso sofá azul, Marieta levantou a cabeça para o teto, escancarou a imensa boca que agora possuía e abriu-se num arroto interminável. Aí foi desinchando, desinchando, desinchando e ficando magra, magra e magra, até que seu corpo caiu feito um saco de pele e osso no chão.

  • A LEITURA DO MUNDO

    O menino nunca se livrou daquela sensação de que não sabia das coisas. Fazia tudo como mandavam ou pediam. Acertava no ponto, sabia o que fazia, mas não tinha certeza. Tudo parecia mecanicamente engendrado, mas o menino sentia-se distante da engrenagem, uma peça à parte, um fio solto no meio do emaranhado do mundo.

    A ausência de conhecimento é uma prisão, mas o conhecimento sem liberdade é tal qual. O menino pensava sobre isso, mas não tinha certeza. Ele chegou a perguntar a alguém alguma coisa sobre, mas a explicação era tão complexa que o confundiu ainda mais. Isso era terrível, porque se o pedissem para fazer uma coisa ele fazia, mas quando ouvia sobre aquela mesma coisa se sentia incapaz diante dela. Uma lâmina escura na memória, a sensação de frio e de silêncio. O medo de errar.

    Um dia, lendo alguns dos muitos livros que gostava de ter, encontrou uma frase diferente e elucidativa: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Ele sabia o que aquilo queria dizer, mas, ainda assim, foi ao dicionário para saber todas as possibilidades do verbo “preceder”. Era esse medo das engrenagens que o levava a essa angústia cortante de não entender o óbvio que parecia tão complexo nos discursos alheios.

    Mas agora tudo parecia mais claro. Se a leitura do mundo precedia a leitura da palavra, ele entendia o mundo da maneira certa e, talvez, os outros nem tanto. Se fosse dessa forma, ele, quando menino, aprendera a ler no tempo certo, porque já conversava com as cantofas e distinguia uma aroeira de uma jurema e uma jurema de uma umburana; um bem-te-vi de um anu; a qualidade dos terrenos, o vento da chuva, os animais nos currais…

    Era estranho imaginar que as palavras, muitas vezes, desconstruíam isso com violência. Desdizia o que ele aprendera, embora mantivesse o mesmo tom. Era arrogante a palavra, não a que estava posta e acoplada às imagens, as leves e estáticas, mas aquela proferida, arbitrária: “isso é um Pseudocaule, não uma fruta”. Mas era uma fruta, um caju, amarelo, vermelho, doce e travoso. Uma delícia de infância.

    Tudo agora fazia sentido, estava claro e ele sorria. Voltava a olhar o mundo pelo olho e pela memória e então achava que não precisava mais se submeter ao discurso, embora precisasse ouvi-lo e, lentamente, como a calma que nunca havia recebido do mundo, entregar ao outro a mesma liberdade contida naquela frase doce, embora forte o suficiente para quebrar correntes.

  • Resiliência que chama

    De certo modo, as manifestações culturais comprometem-se, acima de tudo, com a coragem. Dizer o que se pensa, denunciar e relatar a vida cotidiana de maneira aberta é, teoricamente, o papel do jornalismo, dos articulistas e cronistas. Contudo, no Brasil, isso não é regra, mas sim uma mera exceção. O jornalismo muitas vezes está atrelado ao capital, focado unicamente nos interesses políticos daqueles que podem pagar, geralmente priorizando causas pessoais em detrimento do bem-estar do Estado. No Nordeste, em particular, o coronelismo assume diversas formas, mantendo-se no poder e controlando o que pode ou não ser dito. Esse controle custa caro, e é por isso que muitos acabam se rendendo; felizmente, a maioria não significa unanimidade.

    É evidente que para uma revista que não se submete, o caminho é doloroso. Observamos o surgimento diário de panfletos jornalescos que, da noite para o dia, inundam lares e repartições. Infelizmente, muitos carecem de imparcialidade e não possuem uma pitada de criticidade social. A parte mais robusta da opinião busca sustentar os mandatários no poder, custe o que custar. Assim, qualquer pessoa que contradiga esse pensamento é considerada inimiga ou motivo de piada, mesmo dentro de um contexto ilógico e sem fundamento. Estes pedaços de papel, redigidos por uma massa de jornalistas amordaçados, definem a agenda do jornalismo, criando o que chamamos de “agenda setting”.

    Quando cheguei a esta revista, cerca de vinte anos atrás, tinha em mãos uma questão política. Naquela época, sem internet e com o surgimento das rádios comunitárias, os impressos dominavam. A maioria seguia o ritmo daqueles que pagavam mais e detinham o poder. No entanto, esta revista, ao contrário, seguia na contramão e circulava meio que à deriva, numa espécie de clandestinidade não declarada. Embora recebesse patrocínio governamental, sua linha editorial nunca se vendeu. Criticavam a Papangu, alegando elitismo, quando eu, claramente, expressava minhas preocupações sobre o que não ia bem em Apodi e Túlio Ratto sobre o que não se encaixava em Mossoró. Ele até desenhava literalmente na capa, mas nem assim.

    Nessa época, os jornais começaram a abandonar a literatura, e o fato de a Papangu manter e resgatar essa tradição literária a destacava, mas também incomodava uma pseudoelite politiqueira e uma parte prepotente da imprensa potiguar. Natal, que sempre teve rivalidade com Mossoró, fingia não perceber, mas todos nos viam, liam e comentavam entre si o que era dito em cada edição.

    Duas décadas depois, parece que estou falando de um tempo que se foi. De uma era em que fazíamos fanzines para nos opormos ao status quo. No entanto, a Papangu continua seguindo a mesma linha e enfrentando os mesmos desaforos. Ela continua machucando aqueles que vestem a carapuça, afirmando que é preciso dizer o que precisa ser dito sem rodeios, ao mesmo tempo que preserva a mesma cultura literária de contos, crônicas e poesia, abandonada pela imprensa e por esse novo mundo que surgiu no jornalismo virtual.

    Ao olhar para trás, percebo que parte da minha história está entrelaçada a esse mundo jornalístico, mas vejo também uma parte significativa do legado jornalístico-literário do nosso estado preservada nos anais desta revista. Por não se submeter, a Papangu tornou-se maior do que seu próprio nome, seus editores e autores. Sua resiliência a incorporou à história recente do nosso estado, fazendo da Papangu um arquivo perene de nossa memória, de nosso grito e de nossa arte.

  • A morte de Bruce Lee

    A chuva fina deixava a velha Barcelona ainda mais fria. Com nosso guarda-chuva lilás, entramos no bairro gótico e saímos nos espremendo pelas vielas sem fim. Entre tabernas e pontos comerciais, caímos, sem querer, em uma dessas lojas de quinquilharias. Bolsas, sombreiros e uma infinidade de tranqueiras preenchiam o chão e todas as paredes formando um túnel que levava não sei para onde.

    Uma bolsinha de cortiça com desenhos asiáticos chamou atenção de minha mulher. Uma moça chinesa nos atendeu em seu tom de vendedora. Por ali, uma senhora peruana, baixinha, também nos interpelou. Parecia uma cliente experimentando as mercadorias, mas logo vimos que era também atendente da loja. Como bons curiosos, puxamos conversa e enveredamos por diversos assuntos sobre a vida, as escolhas e o destino. Eu, tateando no portunhol, ouvia atento o papo de minha companheira, professora de espanhol, com a nativa das grandes terras incas.

    Porque os peruanos não pensaram nisso! Reclamou a senhorinha ao se referir à organização de Barcelona. Transporte de toda qualidade, garagens subterrâneas em todos os prédios e até nas ruas. Do nada, um túnel que leva a um largo estacionamento fica embaixo de uma praça onde passam milhares de pessoas. Por que não pensamos nisso?! Acompanhei a peruaninha indignada. De fato, não faz sentido que ainda estejamos tão atrasados, completei. Minha esposa riu porque é o que tenho repetido desde que pousamos na Europa. 

    A moça chinesa por ali também interagia com a gente. Assim como eu, seu espanhol era tão falso quando suas bugigangas. Mas ela havia experimentado, talvez da peruana, o espírito latino e sorria e falava alto e fazia piadas. Para socializar, comecei a dizer o pouco que conheço da China, de sua cultura e de seu importante momento econômico. Então lembrei, e disse a ela, que quando criança eu era muito fã de Bruce Lee e que comprava todas as revistas sobre seu trabalho, mas também sua filosofia marcial. A chinesa sorriu mais ainda e disse que seu irmão, que ficou na China, é mestre em Jeet kune do, um neo sistema de arte marcial criado por Lee. Parecia que ela e sua família também tiveram o astro do cinema sino-americano como seu ídolo de infância.

    Do nada, como quem me conta um segredo, ela me perguntou: “Sabe como Bruce morreu?”. Eu respondi que sim. “Edema cerebral”. E ela, com olhos enormes e em tom baixíssimo disse: “Nonnn!! Murió por envidia” e pegou o celular para traduzir o que havia dito: “morreu por inveja”. E aí, como num soco de uma polegada, concluiu: “Fue asesinado, igual que su hijo”. “Assassinado igual foi o seu filho?!” repeti como buscando uma confirmação e, ao mesmo tempo, lembrando que, em outra circunstância, Brandon Lee foi mesmo assassinado no set do filme O corvo. Teriam envenenado Bruce?

    Olhei para ela e, por um instante, parecia que uma névoa cinza nos encobria e que ali, naquela loja estreita, só estávamos nós dois, conspirando um segredo proibido. Um arrepio me tomou do calcanhar ao cocuruto da cabeça e eu acreditei piamente naquela teoria conspiratória. Fazia todo sentido, todo sentido! Pagamos a compra, nos despedimos com abraços de velhos amigos e saímos com nosso guarda-chuva lilás e este segredo que jurei não contar a mais ninguém.