Por José de Paiva Rebouças e Maria Clarice Lima Paiva
Há pouco tempo, logo ali, pela década de 1990, também início dos anos 2000, a gente ia a uma locadora de vídeo, alugava duas ou três fitas VHS para o final de semana e era isso, senão a principal, mas uma das principais atividades recreativas do descanso. Hoje, minha filha e eu gastamos uma enormidade de tempo decidindo o que assistir nos diversos streamings que assinamos, cada um deles com milhares, sem exagero, milhares de opções de todos os gêneros. Antes, a escolha era o que tinha e, por isso, cada minuto vendo o filme tinha maior valor, haja vista que na segunda-feira precisaríamos devolver a fita (depois o DVD) ou pagaríamos a mais. No caso do VHS, você há de lembrar, se não fosse rebobinado, pagava multa.
Não há coisa mais importante para a liberdade do que a possibilidade de escolhas, a concorrência, a ausência de imposição. Contudo, como aprendemos com Zygmunt Bauman, existe uma distância enorme entre liberdade e segurança. A liberdade de escolha esbarra na segurança da própria escolha, quer dizer, quando eu entro na Shopee para procurar a capinha para o meu celular posso até ter uma ideia fixa na cabeça, mas o montante de opções pode me causar insegurança, ampliar minha ansiedade e tornar a minha escolha um problema.
Essa conversa me faz lembrar o amigo, poeta, Antônio Francisco, que teve um grande problema quando Nira, sua esposa, lhe comprou outra calça. Ele já não sabia mais com que calça sair, se com a nova ou com a já usada e, por vezes, preferiu ficar em casa. Obviamente, essa é uma anedota do poeta, mas, como tudo que ele escreve, faz muito sentido. A gigantesca liberdade de escolhas que o capitalismo e a classe média acessam provoca também um reverso da possibilidade de escolher. Talvez, por isso, tanta gente caia na armadilha da futilidade, se obrigando a se vestir, se comportar, viajar ou se mostrar como outros. Muitas vezes esse comportamento é tomado para que os sujeitos, homens e mulheres, saibam aproveitar a vida, usando o argumento das “tendências” para, enfim, tomar suas decisões.
O nível de fragilidade que advém de um mundo de facilidades reflete diretamente na construção das gerações seguintes. Na casa de meus avós, um tamborete e uma mesa eram artigos de luxo. Na casa de minha mãe, já precisamos de geladeira e televisão. Em minha casa é internet, celular e outros penduricalhos com os quais não vivemos mais, ou pensamos que não vivemos, mas, no fim das contas, a cadeira e a mesa são as coisas mais necessárias e importantes. É onde trabalhamos, onde comemos e onde nos reunimos para conversar.
Dosar o exagero, achar o meio termo, tudo isso é assunto para psicólogos que precisam dizer o óbvio para nós, os ansiosos, que não sabemos lidar com a simplicidade das coisas e da vida. Dez mil anos atrás, nem precisávamos de roupa para viver. Atualmente, sem uma série de objetos, nos tornamos infelizes, tristes, deprimidos e inferiorizados. Quando a União Soviética fez o Lada, imaginou um carro que durasse 20 anos. Hoje, ainda encontramos algum Lada pelas ruas, mas a União Soviética não existe mais. Como os comunistas perderam a Guerra Fria, agora se não trocamos de carro pelo menos a cada três anos, nós e o veículo nos tornamos obsoletos.
Desde pequenos, aprendemos com nossos cuidadores, pais, avós, tios, irmãos, que tudo demais é veneno, seja o que for. Água demais pode matar, cansaço demais pode fazer o pulmão explodir, opção demais pode fazer a gente ter dificuldade de escolher e, o que é pior, querer mais do que o que se tem para escolher. Contudo, se ter opções demais é um problema, uma solução é lembrar que também temos “passado demais” para consultar e lembrar que se vivíamos, antes, com pouco, podemos viver com o suficiente agora. É só pensar no que é necessário, porque o extraordinário é demais.