É impossível capturar em uma imagem ou vídeo a essência de Cartagena de las Indias. Há algo etéreo e intangível nessa cidade. Seu encanto não se deixa aprisionar em pixels ou molduras. Ao atravessar as ruas da cidade amuralhada, somos imediatamente engolfados por uma sinfonia caótica: carros e buzinas duelam com o som de vendedores oferecendo suas mercadorias, enquanto a música caribenha dança pelo ar. Cores vibrantes explodem em cada esquina, um caleidoscópio vivo que contrasta com a serenidade do céu.
Se Sevilla tem um “color especial”, Cartagena é toda uma paleta, extraordinária em sua intensidade. A arquitetura colonial, com casarões de varandas floridas e ruas estreitas pavimentadas em pedra, nos transporta para um lugar que transcende a Colômbia. É como passear entre as cidades medievais da Espanha, mas com um toque inconfundível da América Latina, onde a história europeia encontra o calor e a energia das culturas indígenas e africanas.
As ruas fervilham de vida, mas o encanto vai além da algazarra. Há uma ordem invisível no caos. No ar paira algo quase mágico, como as borboletas de Cem Anos de Solidão, que, aqui, assumem a forma de aves coloridas que cortam os céus. É impossível ignorar a presença de Gabriel García Márquez. Cartagena não é apenas o lugar onde ele viveu e escreveu obras como O Amor nos Tempos do Cólera; ela é também sua inspiração, seu reflexo, sua própria Macondo.
A cidade amuralhada é um microcosmo do mundo que Gabo capturou em suas páginas. Nas ruas de pedra, nas praças onde músicos e artesãos se reúnem, nas palenqueras que desfilam com frutas e cores como se fossem esculturas vivas, tudo está impregnado de história e resistência. Essas mulheres, ícones da cultura afro-colombiana, são mais do que um símbolo. São a prova viva da força e resiliência de um povo que transformou a dor em arte, a opressão em beleza.
Dentro das muralhas, a cidade parece suspensa no tempo. Cada esquina é um convite à introspecção. É fácil imaginar Gabo caminhando por aqui, observando rostos, capturando histórias, transformando o ordinário em extraordinário. A sensação que invade o viajante é a mesma que pulsa nas entrelinhas de suas obras: uma profunda melancolia misturada a uma alegria absurda. Cartagena não é apenas uma cidade; é um estado de espírito, uma ponte entre o real e o imaginário.
Há tudo de África em Cartagena: a alegria que explode em música e dança, o mistério que se oculta nas sombras das noites tropicais. Mas há também a dor, o peso de uma história de sofrimento e resistência. Esse contraste, tão marcante, define não apenas a cidade, mas toda a América Latina. É como se Cartagena fosse um lembrete do que poderíamos ter sido, do que ainda podemos ser.
Caminhar pelas ruas de Cartagena é viajar ao passado e, ao mesmo tempo, encarar o presente com seus contrastes. É sentir o vento salgado vindo do Caribe e se perder nas histórias que cada pedra das muralhas tem a contar. É ouvir as vozes dos ancestrais que ecoam nas ruelas, nas músicas dos artistas de rua, nos passos das palenqueras. Aqui, o tempo é fluido e o passado e o presente se misturam em uma dança eterna.
Talvez seja essa fusão de tempos e histórias que torna Cartagena tão especial. É como se cada elemento – as cores, os sons, os cheiros – fosse uma camada de significado, uma pista para desvendar o enigma da latinidade. Ao olhar para Cartagena, entendemos o que Gabo tanto disse: tudo está aqui, mesmo que em doses homeopáticas. A alegria e a dor, a fantasia e o realismo, o possível e o impossível.
À noite, quando as luzes douradas se acendem nas fachadas coloridas, Cartagena revela outro mistério. O murmúrio das ondas que beijam as muralhas mistura-se às risadas nos pátios escondidos, aos acordes de guitarras distantes. Sob o céu estrelado, as ruas ganham uma aura de encantamento. É como se o tempo, sempre tão implacável, parasse para admirar a beleza desse instante, deixando que o viajante sinta o peso da eternidade.
E então, há o mar. O mar que circunda a cidade com sua vastidão, que fala de partidas e chegadas, de sonhos e promessas. É o mesmo mar que Gabo transformou em metáfora de solidão e infinitude. Em Cartagena, o mar não é apenas paisagem; é testemunha e cúmplice de tudo o que a cidade já foi e continua sendo. Ele guarda os segredos dos navegantes, das conquistas e dos amores impossíveis.
Cada porta colorida, cada varanda com suas flores pendentes, cada esquina desgastada pela história carrega fragmentos de vidas que passaram. É como se Cartagena fosse um livro cujas páginas nunca se acabam, onde cada visitante escreve, mesmo sem saber, uma linha, um verso, uma memória. E, ao partir, ninguém deixa a cidade intocada. Algo de nós permanece entre as muralhas, enquanto levamos um pedaço dela em nosso coração.
Cartagena não pertence apenas à Colômbia. Pertence ao mundo, a todos os que se deixam encantar por sua magia. É uma promessa, um refúgio, um lembrete de que, apesar de tudo, há beleza, há poesia, há esperança. Porque, como dizia Gabo, “A vida não é o que a gente viveu, mas o que a gente recorda e como recorda para contar”. E Cartagena, mais do que uma cidade, é a própria memória do impossível tornado real. E assim, onde morou Gabo, vivemos todos nós.
Cartagena de Índias, 9 de dezembro de 2024.