Últimas histórias

  • A arte de não saber criar filhos

    Criar filhos é um exercício de incerteza. Não importa quantos livros de psicologia, quantos artigos sobre parentalidade positiva, quantas palestras sobre inteligência emocional se assista. No fim das contas, a única certeza que se tem é que, qualquer que seja a abordagem escolhida, em algum momento parecerá errada. Se cobramos muito, somos opressores. Se cobramos pouco, somos negligentes. Se elogiamos demais, criamos indivíduos que não sabem lidar com frustrações. Se não elogiamos o suficiente, somos responsáveis pela baixa autoestima que os levará a anos de terapia.

    Há um ditado que diz que a melhor maneira de criar filhos é não ter filhos. Porque, sem filhos, a teoria funciona perfeitamente. Quem não tem filhos sabe exatamente como educá-los. Mas os filhos chegam, crescem e desenvolvem uma personalidade que não foi exatamente a que imaginamos. Vem a adolescência e, com ela, uma certeza: falhamos em algum ponto. Só não sabemos exatamente onde.

    A relação entre pais e filhos é um jogo de equilíbrios instáveis. Queremos que estudem, mas sem pressão excessiva. Que sejam responsáveis, mas sem se tornarem workaholics. Que aproveitem a juventude, mas sem exageros. Queremos que saibam o valor do dinheiro, mas sem que fiquem obcecados por ele. Que sejam independentes, mas que não nos esqueçam. O problema é que tudo isso é impossível.

    No fundo, o que queremos é protegê-los. Preparamos seus cafés da manhã, damos carona quando poderiam pegar ônibus, fingimos não perceber que, às vezes, mentem para nós. Mas, acima de tudo, passamos boa parte da vida tentando transmitir nossas experiências. Experiências essas que são prontamente descartadas porque “o mundo mudou” e “não funciona mais assim”.

    Filhos não acreditam que os pais já tiveram dúvidas, inseguranças, medos. E pais não acreditam que os filhos tenham certezas. Mas há um ponto em que todos se encontram: a incapacidade de dizer exatamente o que sentem. Filhos demonstram amor de um jeito torto, com pedidos de dinheiro, favores, roupas esquecidas para lavar e perguntas sobre como se faz arroz. Pais demonstram amor com broncas, insistências, lembretes, conselhos que não foram pedidos e, claro, um “leva um casaco”.

    A grande questão que atormenta qualquer pai ou mãe, em silêncio, é: quando formos velhos, quem cuidará de nós? Quem dirá para colocarmos um casaco? Quem nos perguntará se almoçamos? Filhos de hoje cresceram ouvindo que precisam cuidar da própria felicidade. Mas a felicidade deles inclui os pais? Essa é uma pergunta que só o tempo responderá.

    E o tempo, como sabemos, passa depressa. Num sábado qualquer, sua filha faz 18 anos. A mais velha, 24 em setembro. Ontem estavam aprendendo a andar de bicicleta, hoje já sabem tudo sobre o mundo. Exceto, talvez, sobre o fato de que, um dia, terão filhos e descobrirão que ninguém sabe exatamente como se cria um filho.

    Mas, até lá, pais continuarão amando, filhos continuarão questionando e todos seguirão tentando expressar sentimentos de um jeito desajeitado, como sempre foi e sempre será.

  • Sinto muito, você não é capitalista

    Queridos pequenos burgueses iludidos, vocês que acordam às seis da manhã achando que são capitalistas porque têm três criptomoedas e duzentas ações da Petrobras, venham cá, sentem-se. Preciso lhes contar uma história sobre auto-engano e mediocridade.

    Antes que você comece a se defender, vamos estabelecer uma verdade fundamental: capitalista é aquele que vive do capital. Não aquele que trabalha para ter capital – esse é só mais um trabalhador com delírios de grandeza. Se você ainda precisa do seu salário para pagar as contas, mesmo que seja muito o que você ganha (tipo juiz, desembargador, empresário que depende do prolabore), você é apenas uma engrenagem bem-lubrificada do sistema, não seu dono. Simples assim.

    Vejam, toda vez que vocês postam no LinkedIn sobre mindset de riqueza, todo empresário de verdade ri discretamente atrás de suas taças de Rothschild. Não é adorável? Vocês são como aqueles cachorrinhos de madame que pensam ser lobos porque usam coleira de couro italiana.

    Permita-me explicar a matemática da sua insignificância: você trabalha 44 horas semanais, investe 30% do seu salário, lê livros do Primo Rico e acha que está no mesmo jogo que os verdadeiros donos do capital. Que ternura. É como ver uma formiga carregando um grão de açúcar e achando que é sócia do supermercado.

    Sabe aquele seu chefe que você admira, aquele que também “investe na bolsa”? Ele é tão instrumento quanto você. A única diferença é que ele é um instrumento mais caro, como um Stradivarius do sistema, enquanto você é uma violinha de quinta comprada em promoção.

    Vocês são adoráveis com suas planilhas de investimentos, seus sonhos de liberdade financeira e suas metas de aposentadoria. Fazem contas, reorganizam porcentagens, cortam o cafezinho. E o sistema aplaude, não porque vocês estão “vencendo”, mas porque vocês são as engrenagens mais eficientes que o dinheiro pode comprar.

    Sabem por que os verdadeiros capitalistas adoram coach financeiro? Porque eles transformam hamsters em hamsters premium, que correm mais rápido na rodinha, acreditando que um dia serão donos do pet shop.

    Mas não fiquem tristes. Vocês são fundamentais. Quem iria gerar valor para o capital sem suas preciosas horinhas extras, seus dedicados fins de semana estudando para “mudar de vida”, seus sacrifícios em nome do enriquecimento? Vocês são os verdadeiros heróis do sistema – os heróis descartáveis.

    E quando vocês finalmente conseguirem juntar aquele milhão (que nem é mais tanto assim), continuarão acordando cedo, pegando condução, batendo ponto. Só que agora com o peito estufado de orgulho porque são “investidores”. Como se ter dinheiro na Bolsa pagando as parcelas do seu carro te tornasse parte do clube.

    Então continuem assim, meus queridos instrumentos. Continuem acreditando que são capitalistas porque têm um patrimônio líquido de sete dígitos. Os verdadeiros donos do capital agradecem sua dedicação em manter as engrenagens girando, enquanto sorriem do deck de seus iates, brindando à sua adorável ingenuidade.

    Porque no final, vocês não são capitalistas. São apenas capital humano. E como todo capital, existem apenas para gerar mais valor – para os outros.

  • Onde morou Gabo, vivemos todos nós

    É impossível capturar em uma imagem ou vídeo a essência de Cartagena de las Indias. Há algo etéreo e intangível nessa cidade. Seu encanto não se deixa aprisionar em pixels ou molduras. Ao atravessar as ruas da cidade amuralhada, somos imediatamente engolfados por uma sinfonia caótica: carros e buzinas duelam com o som de vendedores oferecendo suas mercadorias, enquanto a música caribenha dança pelo ar. Cores vibrantes explodem em cada esquina, um caleidoscópio vivo que contrasta com a serenidade do céu.

    Se Sevilla tem um “color especial”, Cartagena é toda uma paleta, extraordinária em sua intensidade. A arquitetura colonial, com casarões de varandas floridas e ruas estreitas pavimentadas em pedra, nos transporta para um lugar que transcende a Colômbia. É como passear entre as cidades medievais da Espanha, mas com um toque inconfundível da América Latina, onde a história europeia encontra o calor e a energia das culturas indígenas e africanas.

    As ruas fervilham de vida, mas o encanto vai além da algazarra. Há uma ordem invisível no caos. No ar paira algo quase mágico, como as borboletas de Cem Anos de Solidão, que, aqui, assumem a forma de aves coloridas que cortam os céus. É impossível ignorar a presença de Gabriel García Márquez. Cartagena não é apenas o lugar onde ele viveu e escreveu obras como O Amor nos Tempos do Cólera; ela é também sua inspiração, seu reflexo, sua própria Macondo.

    A cidade amuralhada é um microcosmo do mundo que Gabo capturou em suas páginas. Nas ruas de pedra, nas praças onde músicos e artesãos se reúnem, nas palenqueras que desfilam com frutas e cores como se fossem esculturas vivas, tudo está impregnado de história e resistência. Essas mulheres, ícones da cultura afro-colombiana, são mais do que um símbolo. São a prova viva da força e resiliência de um povo que transformou a dor em arte, a opressão em beleza.

    Dentro das muralhas, a cidade parece suspensa no tempo. Cada esquina é um convite à introspecção. É fácil imaginar Gabo caminhando por aqui, observando rostos, capturando histórias, transformando o ordinário em extraordinário. A sensação que invade o viajante é a mesma que pulsa nas entrelinhas de suas obras: uma profunda melancolia misturada a uma alegria absurda. Cartagena não é apenas uma cidade; é um estado de espírito, uma ponte entre o real e o imaginário.

    Há tudo de África em Cartagena: a alegria que explode em música e dança, o mistério que se oculta nas sombras das noites tropicais. Mas há também a dor, o peso de uma história de sofrimento e resistência. Esse contraste, tão marcante, define não apenas a cidade, mas toda a América Latina. É como se Cartagena fosse um lembrete do que poderíamos ter sido, do que ainda podemos ser.

    Caminhar pelas ruas de Cartagena é viajar ao passado e, ao mesmo tempo, encarar o presente com seus contrastes. É sentir o vento salgado vindo do Caribe e se perder nas histórias que cada pedra das muralhas tem a contar. É ouvir as vozes dos ancestrais que ecoam nas ruelas, nas músicas dos artistas de rua, nos passos das palenqueras. Aqui, o tempo é fluido e o passado e o presente se misturam em uma dança eterna.

    Talvez seja essa fusão de tempos e histórias que torna Cartagena tão especial. É como se cada elemento – as cores, os sons, os cheiros – fosse uma camada de significado, uma pista para desvendar o enigma da latinidade. Ao olhar para Cartagena, entendemos o que Gabo tanto disse: tudo está aqui, mesmo que em doses homeopáticas. A alegria e a dor, a fantasia e o realismo, o possível e o impossível.

    À noite, quando as luzes douradas se acendem nas fachadas coloridas, Cartagena revela outro mistério. O murmúrio das ondas que beijam as muralhas mistura-se às risadas nos pátios escondidos, aos acordes de guitarras distantes. Sob o céu estrelado, as ruas ganham uma aura de encantamento. É como se o tempo, sempre tão implacável, parasse para admirar a beleza desse instante, deixando que o viajante sinta o peso da eternidade.

    E então, há o mar. O mar que circunda a cidade com sua vastidão, que fala de partidas e chegadas, de sonhos e promessas. É o mesmo mar que Gabo transformou em metáfora de solidão e infinitude. Em Cartagena, o mar não é apenas paisagem; é testemunha e cúmplice de tudo o que a cidade já foi e continua sendo. Ele guarda os segredos dos navegantes, das conquistas e dos amores impossíveis.

    Cada porta colorida, cada varanda com suas flores pendentes, cada esquina desgastada pela história carrega fragmentos de vidas que passaram. É como se Cartagena fosse um livro cujas páginas nunca se acabam, onde cada visitante escreve, mesmo sem saber, uma linha, um verso, uma memória. E, ao partir, ninguém deixa a cidade intocada. Algo de nós permanece entre as muralhas, enquanto levamos um pedaço dela em nosso coração.

    Cartagena não pertence apenas à Colômbia. Pertence ao mundo, a todos os que se deixam encantar por sua magia. É uma promessa, um refúgio, um lembrete de que, apesar de tudo, há beleza, há poesia, há esperança. Porque, como dizia Gabo, “A vida não é o que a gente viveu, mas o que a gente recorda e como recorda para contar”. E Cartagena, mais do que uma cidade, é a própria memória do impossível tornado real. E assim, onde morou Gabo, vivemos todos nós.

    Cartagena de Índias, 9 de dezembro de 2024.

  • Livros

    Eu tenho estantes de livros, diversos, clássicos e contemporâneos. Mas eu tenho a ideia de que não gosto mais de livros porque o livro exige tempo, dedicação e silêncio. É uma multidão que povoa seu interior, um mundo paralelo que acontece enquanto você está parado e desprendido da realidade presente. Não me desfaço dos meus livros porque tenho por eles um apego inexplicável, são patrimônios físicos que me conduzem a outras realidades como portas portáteis com poder absoluto de transferência do corpo invisível que nos compõe. Os livros são objetos transcendentes que se pode amá-los de amor tátil, que podemos vivê-los e lançá-los ou simplesmente deixá-los pausados no coração da estante.

    Existe um paradoxo que é gostar de livros sem querer abri-los sempre, mas ainda amá-los com a intensidade de quem os lê todos os dias. Eles repousam ali, nas prateleiras, observando o tempo passar, cúmplices do nosso apego silencioso, quase tímido. Cada um deles é uma espécie de portal discreto, um universo dobrado em páginas e capas que aguardam, pacientes, nosso olhar atento. E é curioso pensar que o livro não se ofende por ficar fechado. Ele sabe esperar. Na sua quietude, guarda para si histórias e segredos que, um dia, talvez decidamos desdobrar de novo, como cartas antigas cheias de memórias.

    Livros são, por essência, coisas de eternidade, e nós sabemos disso. Talvez por isso, mesmo com a vida atribulada, eles continuam ali, fiéis, esperando por nós. Não há pressa. É como se nos amassem também, com a paciência de um velho amigo. E nesse amor silencioso, cada capa guarda uma lembrança, cada lombada é um fragmento da nossa história. Deixá-los ali, na estante, é como preservar um pedaço de quem fomos, de quem ainda podemos ser. São como guardiões de memórias e sonhos, pontes entre realidades que se mesclam ao toque de nossos dedos. Esse amor tátil, essa devoção aos livros físicos, transcende qualquer funcionalidade. É o prazer de possuí-los, de senti-los ali, testemunhas da nossa própria jornada.

    Há quem diga que o futuro será sem papel, sem livros, mas nós, leitores de estantes povoadas, sabemos que isso seria um crime. Porque o livro é mais do que história impressa; é um companheiro de viagem, um espelho que nos reflete em nuances secretas. Cada um deles, parado ali, já é uma promessa, uma aventura aguardando para ser desvelada. Quem passa os olhos por essas estantes percebe algo de sagrado. São mais que objetos, são relíquias vivas, cápsulas do tempo que não nos aprisionam, mas nos libertam.

    É por isso que, mesmo que o ritmo da vida nos afaste das leituras, nunca deixamos de amá-los. Os livros, como todos os amores verdadeiros, não exigem pressa. Eles sabem que o amor é feito de tempo e que a eternidade cabe em cada página. Na estante, ficam ali, pausados, mas pulsando, como corações de papel que batem no ritmo da nossa própria existência. A nossa história está ali, enredada nessas páginas, e cada livro, mesmo fechado, é uma pequena peça do quebra-cabeça de quem somos.

  • Estamos envelhecendo rápido, e agora?

    O poeta não fingiu, ele calculou hermeticamente a saída e tomou a decisão que a ele lhe foi mais humana. Feriu os preceitos cristãos, causou perdas e danos, gerou um debate estranho e mórbido, numa decisão que afeta a moral humana e provoca uma tristeza subterrânea, dessas que não se encontra palavras para dizer. Mas o poeta estava consciente e aproveitou dessa lucidez para apagar ele próprio as memórias e a vida antes que a biologia o fizesse de forma arbitrária e dolorida. Como havia escrito antes em seu poema mais célebre, “melhor se guarda o voo de um pássaro do que um pássaro sem voos”.

    A decisão do poeta Antônio Cícero, diagnosticado com Alzheimer anos atrás, de  realizar sua morte assistida na Suíça é, de fato, incômoda e não recomendável, mas há muitas camadas nesse percurso: a solidão da velhice e o despreparo do mundo para lidar com o envelhecimento populacional.

    Cícero teve pressa em resolver o fim de seu próprio enigma, pois talvez temesse mais a incapacidade do que a morte. E, se somos sinceros, tememos a incapacidade tanto quanto ele; há algo cruel em ver a memória e o corpo se apagarem devagar, enquanto o mundo ao redor se reorganiza, embora não exatamente para os velhos. No Brasil, envelhecer é quase um desenraizamento — a cidade, construída para jovens, persegue e descarta o idoso em cada degrau alto demais, em cada rampa íngreme, em cada transporte público com acesso limitado. O país, que um dia viu a sua população crescer exponencialmente, vê agora sua gente envelhecer sem um olhar para a dignidade no caminho.

    Hoje, o envelhecimento populacional no Brasil deixou de ser uma tendência vaga e se tornou um fato inescapável. Em 2022, a idade mediana da população brasileira atingiu os 35 anos, um salto em direção a uma estrutura etária madura, acompanhada pelo aumento do número de idosos. Desde 1980, a parcela de pessoas com mais de 65 anos praticamente dobrou, agora somando 10,9% da população. Mas a matemática fria das estatísticas esconde os rostos e histórias desses que envelhecem sem infraestrutura, sem assistência e, muitas vezes, sem apoio familiar ou social.

    Esse envelhecimento representa uma terceira fase da transição demográfica, marcada pela desaceleração do crescimento populacional e pela inversão da pirâmide etária. E, enquanto isso, as políticas públicas parecem correr atrás de uma sombra, uma tentativa de adaptar o que já deveria estar pronto. Como o voo de um pássaro que tenta ir contra o vento, o esforço para oferecer cuidados integrais e planejados esbarra em um contexto que mal considera a saúde dos idosos, menos ainda suas necessidades emocionais e sociais.

    Imaginemos, então, uma cidade que se adequa a seus habitantes, como o refúgio que Cícero talvez esperasse ver para ele e os de sua idade. Seria uma cidade que se ajusta ao tempo, onde os passos mais lentos não são motivo de pressa alheia. Em vez disso, o idoso no Brasil enfrenta o desafio de se movimentar em espaços hostis, onde faltam rampas, onde há poucos bancos nas praças, onde o transporte público é um verdadeiro teste de resistência física. É a ausência de uma cultura do cuidado — esta sim, necessária e urgente — que transforma a experiência da velhice em um momento de isolamento e sofrimento.

    O envelhecimento, por si só, poderia ser um período de frutos e colheitas, um bônus demográfico tardio onde a experiência se torna recurso para a sociedade. Mas, sem preparo, o que vemos é uma inversão de expectativas: os idosos têm a sabedoria e a vontade, mas carecem do ambiente e das condições para aplicá-las. Eles poderiam ser mentores, poderiam contribuir para o desenvolvimento de políticas e práticas sociais inovadoras, mas se veem presos em um ciclo de invisibilidade, onde sua experiência é subutilizada e, muitas vezes, ignorada.

    Em algumas cidades do Brasil, iniciativas como o Programa Cidade Amiga dos Idosos, incentivado pela OMS, buscam adaptar o espaço urbano para promover saúde e bem-estar aos mais velhos. No entanto, são poucos os municípios brasileiros que realmente seguem esses parâmetros. Faltam acessibilidade, assistência integral e políticas que considerem a complexidade do envelhecimento. Mesmo nas grandes cidades, onde o índice de envelhecimento é maior, há pouca oferta de ambientes realmente amigáveis para idosos.

    Precisamos, então, não de mais despedidas tristes e silenciosas como a de Antônio Cícero, mas de uma transformação estrutural, onde o envelhecer no Brasil seja um processo seguro e digno. O Brasil tem a oportunidade de transformar essa realidade, mas isso exige coragem e vontade política. Envelhecer não precisa ser um fardo; pode ser uma continuação do voo, com passos mais lentos, mas com a liberdade e o respeito que todos merecemos. Para isso, a cultura do cuidado deve ser uma prioridade — um compromisso com a acessibilidade, com a adaptação dos serviços e com o respeito àqueles que já tanto deram de si à sociedade.

    A decisão de Antônio Cícero deve ser respeitada, pois foi sua, mas a solução para o envelhecimento não precisa ser o fim. Em vez disso, o envelhecimento pode ser visto como uma nova juventude, onde o idoso, com sua experiência e paciência, se torna novamente parte ativa e integrada da sociedade. Ao respeitarmos a trajetória e o ritmo dos que já viveram tanto, damos um passo em direção a uma convivência mais humana, mais generosa. Que o idoso de amanhã seja o novo jovem de hoje, com a experiência de quem aprendeu que a calma e o tempo bem aproveitado são aliados mais poderosos que a pressa. O bônus demográfico tardio que o Brasil viverá em breve é uma chance para valorizar a sabedoria e construir alternativas que transformem o envelhecimento em um caminho suave e acolhedor, onde o fim não se apresse em chegar e o voo permaneça livre.

  • O vício das revoluções passageiras

    Outro dia, lá estava eu, olhando para a tela do celular, quando me dei conta: vivo numa era onde até a cafeteira quer me ensinar storytelling. A máquina de café, que antes só chiava e cuspia café, agora quer me contar uma história sobre a origem das sementes, a jornada de um grão até a xícara, como se eu fosse esquecer que o único enredo que me interessa às sete da manhã é a narrativa do café salvando minha vida. A verdade é que estamos todos viciados em novidades embaladas como revoluções.

    Lá no TikTok, a juventude se espreme para caber em vídeos de 15 segundos, vendendo-se como gurus da modernidade. Eles saltam, dublam, apontam para frases flutuantes, enquanto eu me pergunto: será que esses jovens sabem que a TV já fazia reels antes de eles saberem o que é um controle remoto? E não falo de agora, mas desde que os dinossauros andavam pela Terra, a TV já exibia vídeos curtos. Lembram das vídeo cassetadas? A mesma piada de alguém tropeçando e caindo, só que sem o filtro de gatinho no rosto. A diferença é que a gente ainda tinha a decência de rir mais baixo.

    E agora tudo é em inglês. Roteiro virou storytelling. Trabalho é job. Ouço gente dizendo que vai fazer um “call” ao invés de telefonar. Você convida para um cafezinho e a resposta é “bora tomar um coffee?”. Antigamente, isso seria chamado de pedantismo. Hoje, é só mais um dia comum na era da globalização. E tudo bem, mas eu tenho um compromisso com o vernáculo, veja você. Não é por nacionalismo bobo, mas por amor à nossa própria riqueza linguística. Afinal, um bom português é igual a uma boa cachaça: forte, autêntico e te deixa meio bobo, mas feliz.

    A juventude, sempre na frente, pensa que inventou a roda. O rádio, coitado, dá uma risada silenciosa a cada novo “podcaster” que acha que desbravou território inexplorado. O que eles não sabem é que o rádio já faz isso há cem anos. O problema é que, como diria Bauman, vivemos em tempos líquidos, onde o velho é reciclado com uma nova embalagem, e ninguém repara que o conteúdo é o mesmo. Só mudam as cores e o sabor artificial de inovação.

    E então eu olho para essas novas gerações, e sorrio. Elas se acham as donas da bola, enquanto a gente, que já viu muito feijão queimar na panela, assiste de camarote. Vai passar, eu penso. Sempre passa. E quando a próxima “grande revolução” vier, eu já estarei preparado, com meu storytelling afiado, lembrando que, no fim, tudo isso não passa de uma boa e velha história sendo recontada. Em inglês, é claro.

    Como disse um velho e bom amigo, num mundo pós-apocalíptico, quando tudo falhar, só restará o analógico e nós da geração X ainda seremos a geração do futuro.

    *Para o poeta Olavo Saldanha

  • A geração de vidro e a arte de quebrar promessas

    Vivemos tempos em que a palavra empenhada já não é mais moeda de troca, e o compromisso virou um conceito tão frágil quanto os egos que habitam as mentes pós-milênio. A antiga ideia de honrar uma oportunidade, uma tarefa, ou até mesmo um simples acordo, parece tão anacrônica quanto o conceito de trabalhar em silêncio e com determinação. Os nascidos na era digital, embalados pelo barulho das notificações e anestesiados pelas redes sociais, desenvolveram uma habilidade notável: a arte de não cumprir.

    Lembro-me de um tempo, não tão distante, em que a oportunidade era tratada como um bem precioso, um pacto tácito entre quem oferece e quem aceita. Era como um contrato invisível, mas cheio de peso, firmado pelo simples ato de apertar mãos, sem a necessidade de um emoji piscando na tela. E nesse contrato, estava implícita a obrigação de fazer o melhor possível, de cumprir prazos, de mostrar que o seu nome, a sua reputação, valiam algo. Hoje, no entanto, esses valores parecem se dissolver na neblina da procrastinação, empurrados pelo vento fraco de desculpas esfarrapadas.

    As desculpas, ah, essas são um capítulo à parte. Nunca antes na história das justificativas humanas houve um repertório tão vasto e criativo. É quase uma arte performática. O trânsito, o tempo, a necessidade urgente de uma sessão de pilates, ou a visita à avó, que só acontece quando a entrega de um trabalho está em jogo. E que ninguém ouse questionar, pois as gerações pós-2000 têm a pele fina, quase translúcida. Um pequeno arranhão verbal, uma cobrança mais direta, e pronto! O cenário se transforma em uma tragédia digna de novela: lágrimas de indignação, expressões de surpresa ofendida e, claro, o vitimismo em sua forma mais pura.

    Curioso é que essa mesma geração, tão frágil e mimada, adora arrotar superioridade. Dizem saber de tudo, como se fossem os primeiros a desbravar o mundo. Falam como se tivessem a fórmula secreta do sucesso, como se soubessem fazer tudo melhor do que aqueles que vieram antes. A confiança beira a arrogância, até o momento em que precisam, de fato, mostrar serviço. E é então que se revela o grande paradoxo: muitos não sabem o mínimo, e precisam de orientação até o final, como crianças perdidas em um parque de diversões. No entanto, apontar essa falha é quase um sacrilégio, pois a juventude de cristal se chateia, ofende-se, cria um drama digno de um espetáculo de tragédia grega.

    Enquanto isso, aqueles que ainda acreditam na ideia de fidelidade e responsabilidade se veem forçados a navegar em um mar de promessas quebradas e desilusões constantes. O que antes era uma questão de honra, agora é tratado como uma bagatela, algo que pode ser dispensado com a mesma facilidade com que se desliza o dedo sobre a tela do celular. O nome, que outrora era uma marca indelével de caráter, hoje é apenas uma sequência de letras acompanhada de um arroba, pronto para ser deletado e substituído por um novo perfil, sem que ninguém perceba ou se importe.

    E é aqui que reside o ranço. Não apenas pela falta de compromisso, mas pela falta de consciência, pela incapacidade de entender que cada oportunidade desprezada, cada tarefa não cumprida, é uma microfissura na estrutura do que deveria ser uma sociedade baseada em confiança. As gerações que vieram antes talvez tenham falhado em muitas coisas, mas uma coisa sabiam: o valor de uma palavra. E ao observar essa fragilidade cristalina que domina os novos tempos, é impossível não se perguntar: o que será das próximas gerações, quando a responsabilidade e a honra forem definitivamente relegadas ao museu das virtudes extintas?

    Talvez, no futuro, a tecnologia avance a ponto de criar um novo material, mais resistente que o vidro, capaz de suportar as pressões da vida adulta sem estilhaçar. Até lá, restará aos que ainda têm respeito pela palavra empenhada o desafio de continuar remando, cada vez mais contra a maré, em um oceano de fragilidade moral e promessas quebradas.

  • Sombra e carne

    Perdão, padre, porque pequei. Não, eu não queria, nem nunca havia imaginado tal coisa; afinal, fui criada para a função de santa. Desde criança, mantive-me na fé, cumprindo os rituais que me foram cobrados e repassados desde minha avó. Minha mãe morre de orgulho e repete a todo canto a dádiva de sua filha. Estou na missão desde que me entendo por gente e nunca, nunca mesmo, pensei em abandonar a tarefa de cuidar de Deus, até hoje.

    Eu sei que foi provação, eu sei, mas nunca soube como me livrar dela, embora às vezes ache que não nasci para a culpa, só às vezes. Talvez depois desta confissão. Mas o que seria de mim se eu negasse a verdade?

    Não pensei ser assim tão ruim, e tive educação para não ser. Tudo estava bem, e eu rezo todas as noites, mas há dias em que só o banco celestial da casa de Deus é suficiente para aplacar a minha dor material. A vida é um jogo muito duro para quem se prepara para o paraíso. Nunca desejei morrer porque é pecado, mas queria que o céu não estivesse tão longe; assim não teria acontecido a minha desgraça.

    A Cristo converto o meu espírito enquanto tenho forças, mas há momentos em que preciso olhar em seu rosto e sentir-me mais próxima, então venho à igreja. Mas nesta noite não estava sozinha. A sombra estava à espreita, a mesma sombra que há dias vinha me perseguindo. Não sei por que, sempre me pergunto, não sei por que não tive medo. Há tanto tempo sendo caçada pela mesma aparição rasteira, estendendo-se nas paredes ou apontando nas esquinas, que me senti íntima dela. As sombras, padre, vêm sempre nos momentos vagos, quando os proscritos suspiram o seu pecado. As sombras nos preenchem mais que o próprio espírito, porque somos sombra tanto quanto.

    Eu percebi, confesso, mas não gritei como faz toda temente. Eu fechei os olhos como sombra e deixei-me consumir qual um corpo putrefato entregue aos deliciosos vermes da terra, porque eu era terra. Pela primeira vez, deixei-me ser terra e consumir. Haveria pecado mesmo na defesa; por isso, deixei-me. E o pior, padre, pequei por não me arrepender da sombra. Não acredito nesta ressurreição. Eu sou um prego nos pés de Cristo e não sei se posso ser diferente.

    Já tentei encontrar a compunção nas lembranças antigas. Tentei encontrar uma lágrima qualquer que me fizesse sentir triste como uma condição de arrependida, mas só me lembro do ato e do chão empoeirado; do caminho onde transcendi abastadamente. Não pude escapar da satisfação de ser jogada contra o chão para satisfazer a sombra, nem de vê-la fugindo na escuridão após me deixar na sarjeta: dolorida e lambuzada pelos seus instintos. Não há sensação melhor, por isso entrego-me ao desatino e ao descaminho. Não sirvo para Deus ou ao mundo santo. Eu sou carne e, como as ovelhas do campo, sirvo apenas de alimento aos homens e aos vermes. Sou filha dos pensamentos e não das paredes.

    Gozo das sensações de minhas irmãs e da madre superiora, tão boas e tão ingênuas. Da sensação da sombra sobre o meu corpo esfarrapado como num sonho distante. De vê-la correndo na escuridão de sua própria casta, rumo ao mesmo quarto vazio onde as luzes se acendem toda madrugada aos olhos de nós todas. Deixá-lo-ei, padre, mas não se assuste com a minha partida. Meus olhos estarão fechados e tudo estará mudo quando eu me for. Não há o que temer, há perdão para tudo.

  • Quando o demais é veneno

    Por José de Paiva Rebouças e Maria Clarice Lima Paiva

    Há pouco tempo, logo ali, pela década de 1990, também início dos anos 2000, a gente ia a uma locadora de vídeo, alugava duas ou três fitas VHS para o final de semana e era isso, senão a principal, mas uma das principais atividades recreativas do descanso. Hoje, minha filha e eu gastamos uma enormidade de tempo decidindo o que assistir nos diversos streamings que assinamos, cada um deles com milhares, sem exagero, milhares de opções de todos os gêneros. Antes, a escolha era o que tinha e, por isso, cada minuto vendo o filme tinha maior valor, haja vista que na segunda-feira precisaríamos devolver a fita (depois o DVD) ou pagaríamos a mais. No caso do VHS, você há de lembrar, se não fosse rebobinado, pagava multa.

    Não há coisa mais importante para a liberdade do que a possibilidade de escolhas, a concorrência, a ausência de imposição. Contudo, como aprendemos com Zygmunt Bauman, existe uma distância enorme entre liberdade e segurança. A liberdade de escolha esbarra na segurança da própria escolha, quer dizer, quando eu entro na Shopee para procurar a capinha para o meu celular posso até ter uma ideia fixa na cabeça, mas o montante de opções pode me causar insegurança, ampliar minha ansiedade e tornar a minha escolha um problema.

    Essa conversa me faz lembrar o amigo, poeta, Antônio Francisco, que teve um grande problema quando Nira, sua esposa, lhe comprou outra calça. Ele já não sabia mais com que calça sair, se com a nova ou com a já usada e, por vezes, preferiu ficar em casa. Obviamente, essa é uma anedota do poeta, mas, como tudo que ele escreve, faz muito sentido. A gigantesca liberdade de escolhas que o capitalismo e a classe média acessam provoca também um reverso da possibilidade de escolher. Talvez, por isso, tanta gente caia na armadilha da futilidade, se obrigando a se vestir, se comportar, viajar ou se mostrar como outros. Muitas vezes esse comportamento é tomado para que os sujeitos, homens e mulheres, saibam aproveitar a vida, usando o argumento das “tendências” para, enfim, tomar suas decisões.

    O nível de fragilidade que advém de um mundo de facilidades reflete diretamente na construção das gerações seguintes. Na casa de meus avós, um tamborete e uma mesa eram artigos de luxo. Na casa de minha mãe, já precisamos de geladeira e televisão. Em minha casa é internet, celular e outros penduricalhos com os quais não vivemos mais, ou pensamos que não vivemos, mas, no fim das contas, a cadeira e a mesa são as coisas mais necessárias e importantes. É onde trabalhamos, onde comemos e onde nos reunimos para conversar.

    Dosar o exagero, achar o meio termo, tudo isso é assunto para psicólogos que precisam dizer o óbvio para nós, os ansiosos, que não sabemos lidar com a simplicidade das coisas e da vida. Dez mil anos atrás, nem precisávamos de roupa para viver. Atualmente, sem uma série de objetos, nos tornamos infelizes, tristes, deprimidos e inferiorizados. Quando a União Soviética fez o Lada, imaginou um carro que durasse 20 anos. Hoje, ainda encontramos algum Lada pelas ruas, mas a União Soviética não existe mais. Como os comunistas perderam a Guerra Fria, agora se não trocamos de carro pelo menos a cada três anos, nós e o veículo nos tornamos obsoletos.

    Desde pequenos, aprendemos com nossos cuidadores, pais, avós, tios, irmãos, que tudo demais é veneno, seja o que for. Água demais pode matar, cansaço demais pode fazer o pulmão explodir, opção demais pode fazer a gente ter dificuldade de escolher e, o que é pior, querer mais do que o que se tem para escolher. Contudo, se ter opções demais é um problema, uma solução é lembrar que também temos “passado demais” para consultar e lembrar que se vivíamos, antes, com pouco, podemos viver com o suficiente agora. É só pensar no que é necessário, porque o extraordinário é demais.

  • O arroto

    Marieta acordou diferente. A casa era a mesma, e o silêncio das moscas das manhãs seguintes ainda figurava no ambiente. A cama estava vazia. Marido e filhos já perambulavam. Ela os olhou desatenta, parecia cansada quando entrou no banheiro e demorou mais do que o de costume. O tempo demonstrava atraso no café e nas tarefas diárias. O filho mais velho aguardava a torrada para se deslocar ao trabalho. A filha menor esperava as ordens para ir à escola. O marido não esperava nada.

    Marieta mexeu as panelas e ligou a cafeteira. Seus olhos pareciam fechados, assim como seus ouvidos. Aprontou uma mesa feia e pães aguados. O café sem açúcar torceu as caras nos primeiros goles. À mesa, a sobrinha agregada ainda perguntou algo, mas não obteve resposta. O filho puxou conversa, mas Marieta ficou calada e não lhe deu sequer um gesto.

    Sentou-se com todo mundo, tomou café como de costume, abriu o jornal que era do marido. Leu as notícias de polícia, passou pelas colunas, viu a política, passou pelos classificados, viu os preços; folheou os anúncios, as mesmas festas. No cinema, os mesmos filmes, e o signo era repetido da semana passada. Marieta soluçou expelindo gases.

    Notava-se aí que a mulher poderia estar doente. Talvez um chá de boldo para acalmar o estômago, foi o que alguém pensou, mas só ela sabia como fazê-lo. Ofereceram-lhe um antiácido. Não obtiveram resposta. As pessoas já se acostumaram a não obter respostas. Marieta cuspiria essa filosofia se quisesse falar.

    Voltou para seu quarto em busca de um livro e esqueceu a cozinha por um instante. Mas os livros são feitos por dois motivos: ou sem propósito algum, para deixar as pessoas extasiadas com o nada, empreitando uma tentativa torpe de entender o que não foi dito, ou puramente para fazer lucro e fama. Marieta lançou gases pela boca e se sentiu como se estivesse inflando. Pensou no que tinha comido nos últimos dias e na noite anterior. Sua cabeça, como ela, não dizia nada. Lembrava apenas dos rótulos garantidos pelos estudos científicos e pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária. Estava segura.

    Entre a sala e a cozinha, existia muito barulho. As meninas carregavam conversas sobre as palavras alheias. O marido perguntava coisas a elas, que respondiam monossilabicamente. Um retrato diferente do que se expunha na estante, onde todos se abraçavam com sorrisos largos. Marieta expulsou os gases do medo de já passar dos 40 com uma família comum demais para os padrões das novelas. Havia desistido de tudo em que acreditava e quase não tinha sonhos. Aparecia sempre alguém para lhe dizer que não possuía talento ou sorte, e ela foi abrindo mão dessas coisas e se entregando à tranquilidade de não ter ambição, para ser apenas um nome com o sobrenome do marido, mais velho e aposentado com um salário de fome. Nunca deixou de fazer nada de comum aos outros, mas sempre se achou à margem da vontade alheia. Não que se sentisse infeliz, nunca se sentiu; só não queria comprometer-se e deixar de ser a única coisa que conseguira ser.

    Acostou-se na cama como quem não pensa em nada e cochilou tranquilamente sonhos dos quais não se lembraria. Acordou algum tempo depois ouvindo gargalhadas que vinham da sala. Lembrou-se das antigas reuniões familiares. Dos filhos pequenos. O filme da locadora, o marido lendo a sinopse. O livro infantil, lido e relido a pedido dos pequenos, enquanto ela preparava os quitutes. A palavra “mãe” soava a cada minuto com uma sonoridade infantil e inocente. O sorriso do marido, que ainda era forte e vigoroso como o próprio corpo, a abraçava com força pela cintura. O telefone tocava como por coincidência, apenas para ouvir aquela algazarra farta de pão.

    Marieta sorriu no canto da boca e esforçou-se para levantar, mas estava pesada demais para se mexer com pressa. Os gases saiam agora por todos os orifícios. Quando atravessou a casa, lembrou-se das mãos enrugadas. Os pés, nas pantufas, arrastavam toneladas pelos cômodos sujos. Ninguém saíra de casa, como se fosse domingo e como se não houvesse contas a pagar. Marieta chegou à sala e encontrou a família indiferente, esparramada em frente à televisão. Olharam-na com espanto e medo. Ela estava enorme, inchada, parecia duas. Os lábios não se fechavam e os olhos saltavam esbugalhados. Iria explodir.

    Sob a agonia dos seus, recolhidos no imenso sofá azul, Marieta levantou a cabeça para o teto, escancarou a imensa boca que agora possuía e abriu-se num arroto interminável. Aí foi desinchando, desinchando, desinchando e ficando magra, magra e magra, até que seu corpo caiu feito um saco de pele e osso no chão.