Últimas histórias

  • Resiliência que chama

    De certo modo, as manifestações culturais comprometem-se, acima de tudo, com a coragem. Dizer o que se pensa, denunciar e relatar a vida cotidiana de maneira aberta é, teoricamente, o papel do jornalismo, dos articulistas e cronistas. Contudo, no Brasil, isso não é regra, mas sim uma mera exceção. O jornalismo muitas vezes está atrelado ao capital, focado unicamente nos interesses políticos daqueles que podem pagar, geralmente priorizando causas pessoais em detrimento do bem-estar do Estado. No Nordeste, em particular, o coronelismo assume diversas formas, mantendo-se no poder e controlando o que pode ou não ser dito. Esse controle custa caro, e é por isso que muitos acabam se rendendo; felizmente, a maioria não significa unanimidade.

    É evidente que para uma revista que não se submete, o caminho é doloroso. Observamos o surgimento diário de panfletos jornalescos que, da noite para o dia, inundam lares e repartições. Infelizmente, muitos carecem de imparcialidade e não possuem uma pitada de criticidade social. A parte mais robusta da opinião busca sustentar os mandatários no poder, custe o que custar. Assim, qualquer pessoa que contradiga esse pensamento é considerada inimiga ou motivo de piada, mesmo dentro de um contexto ilógico e sem fundamento. Estes pedaços de papel, redigidos por uma massa de jornalistas amordaçados, definem a agenda do jornalismo, criando o que chamamos de “agenda setting”.

    Quando cheguei a esta revista, cerca de vinte anos atrás, tinha em mãos uma questão política. Naquela época, sem internet e com o surgimento das rádios comunitárias, os impressos dominavam. A maioria seguia o ritmo daqueles que pagavam mais e detinham o poder. No entanto, esta revista, ao contrário, seguia na contramão e circulava meio que à deriva, numa espécie de clandestinidade não declarada. Embora recebesse patrocínio governamental, sua linha editorial nunca se vendeu. Criticavam a Papangu, alegando elitismo, quando eu, claramente, expressava minhas preocupações sobre o que não ia bem em Apodi e Túlio Ratto sobre o que não se encaixava em Mossoró. Ele até desenhava literalmente na capa, mas nem assim.

    Nessa época, os jornais começaram a abandonar a literatura, e o fato de a Papangu manter e resgatar essa tradição literária a destacava, mas também incomodava uma pseudoelite politiqueira e uma parte prepotente da imprensa potiguar. Natal, que sempre teve rivalidade com Mossoró, fingia não perceber, mas todos nos viam, liam e comentavam entre si o que era dito em cada edição.

    Duas décadas depois, parece que estou falando de um tempo que se foi. De uma era em que fazíamos fanzines para nos opormos ao status quo. No entanto, a Papangu continua seguindo a mesma linha e enfrentando os mesmos desaforos. Ela continua machucando aqueles que vestem a carapuça, afirmando que é preciso dizer o que precisa ser dito sem rodeios, ao mesmo tempo que preserva a mesma cultura literária de contos, crônicas e poesia, abandonada pela imprensa e por esse novo mundo que surgiu no jornalismo virtual.

    Ao olhar para trás, percebo que parte da minha história está entrelaçada a esse mundo jornalístico, mas vejo também uma parte significativa do legado jornalístico-literário do nosso estado preservada nos anais desta revista. Por não se submeter, a Papangu tornou-se maior do que seu próprio nome, seus editores e autores. Sua resiliência a incorporou à história recente do nosso estado, fazendo da Papangu um arquivo perene de nossa memória, de nosso grito e de nossa arte.

  • A morte de Bruce Lee

    A chuva fina deixava a velha Barcelona ainda mais fria. Com nosso guarda-chuva lilás, entramos no bairro gótico e saímos nos espremendo pelas vielas sem fim. Entre tabernas e pontos comerciais, caímos, sem querer, em uma dessas lojas de quinquilharias. Bolsas, sombreiros e uma infinidade de tranqueiras preenchiam o chão e todas as paredes formando um túnel que levava não sei para onde.

    Uma bolsinha de cortiça com desenhos asiáticos chamou atenção de minha mulher. Uma moça chinesa nos atendeu em seu tom de vendedora. Por ali, uma senhora peruana, baixinha, também nos interpelou. Parecia uma cliente experimentando as mercadorias, mas logo vimos que era também atendente da loja. Como bons curiosos, puxamos conversa e enveredamos por diversos assuntos sobre a vida, as escolhas e o destino. Eu, tateando no portunhol, ouvia atento o papo de minha companheira, professora de espanhol, com a nativa das grandes terras incas.

    Porque os peruanos não pensaram nisso! Reclamou a senhorinha ao se referir à organização de Barcelona. Transporte de toda qualidade, garagens subterrâneas em todos os prédios e até nas ruas. Do nada, um túnel que leva a um largo estacionamento fica embaixo de uma praça onde passam milhares de pessoas. Por que não pensamos nisso?! Acompanhei a peruaninha indignada. De fato, não faz sentido que ainda estejamos tão atrasados, completei. Minha esposa riu porque é o que tenho repetido desde que pousamos na Europa. 

    A moça chinesa por ali também interagia com a gente. Assim como eu, seu espanhol era tão falso quando suas bugigangas. Mas ela havia experimentado, talvez da peruana, o espírito latino e sorria e falava alto e fazia piadas. Para socializar, comecei a dizer o pouco que conheço da China, de sua cultura e de seu importante momento econômico. Então lembrei, e disse a ela, que quando criança eu era muito fã de Bruce Lee e que comprava todas as revistas sobre seu trabalho, mas também sua filosofia marcial. A chinesa sorriu mais ainda e disse que seu irmão, que ficou na China, é mestre em Jeet kune do, um neo sistema de arte marcial criado por Lee. Parecia que ela e sua família também tiveram o astro do cinema sino-americano como seu ídolo de infância.

    Do nada, como quem me conta um segredo, ela me perguntou: “Sabe como Bruce morreu?”. Eu respondi que sim. “Edema cerebral”. E ela, com olhos enormes e em tom baixíssimo disse: “Nonnn!! Murió por envidia” e pegou o celular para traduzir o que havia dito: “morreu por inveja”. E aí, como num soco de uma polegada, concluiu: “Fue asesinado, igual que su hijo”. “Assassinado igual foi o seu filho?!” repeti como buscando uma confirmação e, ao mesmo tempo, lembrando que, em outra circunstância, Brandon Lee foi mesmo assassinado no set do filme O corvo. Teriam envenenado Bruce?

    Olhei para ela e, por um instante, parecia que uma névoa cinza nos encobria e que ali, naquela loja estreita, só estávamos nós dois, conspirando um segredo proibido. Um arrepio me tomou do calcanhar ao cocuruto da cabeça e eu acreditei piamente naquela teoria conspiratória. Fazia todo sentido, todo sentido! Pagamos a compra, nos despedimos com abraços de velhos amigos e saímos com nosso guarda-chuva lilás e este segredo que jurei não contar a mais ninguém.

  • Trabalho não remunerado e não reconhecido

    Deu polêmica, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM 2023) deu polêmica. Não por acaso, a proposta tenta fazer uma reparação histórica com as mulheres e aí, já se viu, quando se trata de justiça social no Brasil, parte dos conservadores ficam incomodados. Disseram que foi ideológico, que é mimimi e coisa de feministas. Mas a verdade é outra bem diferente e a desigualdade de sexo no Brasil ainda é drástica e necessita mudanças urgentes. Além de ser infinitamente maior do que a dedicação dos homens, o trabalho doméstico não remunerado no Brasil é subnotificado em até 60%, segundo pesquisa da UFRN e UFMG.

    O tema da redação do ENEM foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Esse cuidado trata exatamente do tempo que a mulher gasta fazendo comida, pondo a casa em ordem, cuidando dos filhos, do marido e, muitas vezes, dos pais, dos sogros ou de outros parentes. É uma rotina exaustiva, repetitiva e, além de não remunerada, não é reconhecida pela própria família.

    De acordo com as pesquisadoras Luana Myrrha e Jordana Cristina de Jesus, do Programa de Pós-Graduação em Demografia da UFRN, ao colocar uma temática presente no dia a dia da grande maioria das famílias brasileiras para reflexão de milhões de estudantes, seus amigos, familiares e a comunidade de modo mais amplo, o Ministério da Educação, por meio do Enem, realiza um movimento importante, que é o de reconhecer os cuidados.  “Reconhecer o trabalho de cuidados executado pelas mulheres é um dos passos iniciais para um caminho de redistribuição dessa carga de trabalho. Para, de fato, redistribuir os trabalhos de cuidados, organizados de maneira injusta na sociedade, eles devem ser transformados em objeto de políticas públicas”, diz Luana.

    Jordana Cristina reforça que para essa discussão ser ainda mais relevante, em um primeiro momento, é necessário definir o conceito de cuidados. “O cuidado pode ser definido como um trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e reprodução da vida humana, da força de trabalho, das sociedades e da economia e à garantia do bem-estar de todas as pessoas. São trabalhos, como a preparação de alimentos, a limpeza, a gestão e a organização da casa, como também as atividades de assistência, apoio e auxílio diários para pessoas com diferentes graus de dependência, como bebês e crianças pequenas, pessoas idosas ou pessoas com deficiência quando estas não conseguem, sozinhas, realizar atividades como alimentar-se, caminhar, tomar um transporte, fazer compras, etc. Essa é a definição que foi apresentada na primeira versão do Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil”, explica.

    As pesquisadoras ressaltam que o Brasil tem, atualmente, uma organização social dos cuidados desigual, injusta e insustentável. Essa organização, segundo elas, é desigual e injusta na medida em que, embora os cuidados sejam uma necessidade humana, são as mulheres as principais responsáveis por atender a essa demanda em suas famílias. As mulheres mais sobrecarregadas com esse trabalho invisibilizado são as empobrecidas, as mulheres negras e as que estão em territórios com carências profundas na oferta de serviços públicos de cuidado, como as zonas rurais e as periferias urbanas.  

    Considerando a tendência de envelhecimento populacional, em que cada vez mais se tem a presença de idosos nas famílias, a situação das mulheres ficará cada vez mais insustentável.

  • Nosso passado nativo

    Minha avó comentava em suas divagações que uma de suas avós era “índia”, daquelas pegas a casco de cavalo. Uma história meio lendária, embora alguns ramos da família trouxessem traços mais queimados, não como pessoas pretas, mas como amorenadas de sol. Obviamente, apesar de sabermos de nossas raízes ibéricas dos povos antigos vindos para o novo mundo sabe-se lá Deus como, nunca nos consideramos brancos, embora nunca nos assumamos pretos. Indígena é algo que nunca se passou por nossa cabeça, não por acaso, afinal de contas o genocídio dos povos tradicionais apagou completamente essas possibilidades. Mas, no final, examinando documentos antigos, há um grande indício de que é possível sim que uma das avós de minha avó tenha sido uma indígena.

    Quando Lúcia Tapuya começou um movimento em Apodi para resgatar a tribo desse povo dizimado e apagado da história do Brasil, muitos a chamaram de louca. Ora, quem já se viu, achar índio em Apodi?! Coisa de gente desequilibrada. Acontece que basta olhar para as periferias desta velha cidade, a segunda mais antiga do Rio Grande do Norte, para ver que Lúcia era mais visionária do que “louca”. A cor da pele, os traços de muitas pessoas, as currutelas, como Peba e Porróias, tudo isso eram indícios claros daquilo que qualquer antropólogo ou cientista social sabe de cor: houve um processo de branqueamento das populações indígenas, sobretudo dos que negaram suas origens para poder permanecerem vivos. Milhares foram exterminados durante a Guerra dos Bárbaros no século XVII, genocídio também chamada de Levante dos Tapuyas.

    Lúcia começou essa caminhada entrevistando pessoas que confirmaram ter, em sua família, alguém que, no passado, foi “pega a casco de cavalo”. Essa expressão diz respeito ao comportamento violento dos brancos de origem européia e seus capangas que caçavam nativos nordestinos como bichos, sequestravam as mulheres e depois as estupravam ou as escravizavam nas cozinhas dos casarões. Uma lembrança tenebrosa e dolorosa para qualquer árvore genealógica, embora contada sempre como algo “normal”, que aconteceu há muito tempo. Vultos de um passado sem memória.

    Na minha linhagem de agricultores, forneiros e vaqueiros, o meu quarto avô por parte de mãe (o segundo avô da minha avó, por parte de mãe, para se mais preciso), um sujeito por nome de Benvenuto, só tinha mãe: Thereza Maria de Jesus, o que é estranho, uma vez que, geralmente são os homens os primeiros citados. O pai de Benvenuto é sempre ignorado. Claro que as pesquisas realizadas até então são inconclusivas, pois dependemos de documentos muito antigos e muito mal preservados, mas a hipótese suscitada por minha avó começa a fazer sentido. Ao contrário dele, sua esposa – minha quarta avó – dona Innocência, apesar de também ser Maria da Conceição, tem registros de pai e mãe.

    Os testes genéticos que realizei recentemente me dão apenas 6% de sangue ancestral indígena. 71% de meu DNA é composto por genes europeus, com maior concentração na região Ibérica e na Itália, o que me limita a reivindicar qualquer lugar de assento entre os ilustres Tapuyas Paiacus da Ribeira do Apodi, embora também não possa eu negar esse traço em meu sangue.

    Existe uma luta importante acontecendo nesse campo e é preciso que se diga a verdade sobre o passado, sobre a história e suas injustiças. Não se trata, como alguns tolos pensam, de se montar tribos, ocas e arco e flecha como há séculos atrás. Essa visão eurocentrista ignora o óbvio: que a reivindicação está centrada no reconhecimento de um povo mais antigo do que a própria ideia de Brasil. Assim como os judeus, os italianos, os árabes, os alemães e muitos outros, os povos tradicionais brasileiros também têm uma linhagem, um passado e uma diáspora. O seu renascimento e ocupação de espaços e territórios é nada mais do que justiça natural e reparação histórica.

  • O holocausto, o Papa e um dilema moral

    Lembra ou conhece o dilema do trem, usado na filosofia para discutir questões morais? Bem, o dilema moral do trem, apresentado por Philippa Foot, filósofa britânica que se destacou em ética e filosofia moral, é um experimento mental que coloca em questão a decisão moral de sacrificar uma vida para salvar outras. No cenário, um trem está desgovernado e se aproxima de cinco pessoas que estão presas na linha férrea. Você está perto de uma alavanca que pode mudar a direção do trem para outra linha, onde há apenas uma pessoa presa. A decisão moral é se você deve ou não puxar a alavanca para salvar as cinco pessoas em detrimento da vida da pessoa na outra linha. O dilema levanta questões sobre a ética da ação, o valor da vida individual versus o valor da vida em grupo e a responsabilidade moral diante de situações difíceis.

    Acontece que este dilema acaba de ser atualizado, tendo como cenário a Segunda Guerra Mundial, o holocausto, em que milhões de judeus foram chacinados pelos Nazistas, e a negligência da Igreja Católica, então comandada pelo Papa Pio XII. De acordo com o jornal italiano Corriere della Sera, uma carta recém-encontrada é um indício gravíssimo de que o chefe da igreja foi avisado dos campos de concentração e da morte inumana dos judeus. De acordo com a CNN, que traduziu a matéria do Corriere, o documento, datado de dezembro de 1942, foi escrita pelo padre Lother Koenig, um jesuíta que fez parte da resistência antinazista na Alemanha, e dirigida ao secretário pessoal do papa no Vaticano, padre Robert Leiber, também alemão. “Na carta, Koenig diz a Leiber que suas fontes lhe confirmaram que cerca de 6 mil poloneses e judeus eram assassinados por dia em ‘fornos da SS (grupo antissemita do nazismo)’ no campo de Belzec, perto de Rava-Ruska, que então fazia parte da Polônia ocupada pelos alemães e agora está localizado no oeste da Ucrânia”, relata a CNN.

    Para o arquivista do Vaticano, Giovanni Coco, a carta tem uma importância “enorme” por se tratar de “um caso único”, pois mostrava que o Vaticano tinha informações de que os campos de trabalho eram, na verdade, fábricas de morte. A reportagem do jornal italiano diz ainda que “Os apoiadores de Pio XII dizem que ele trabalhou nos bastidores para ajudar os judeus e não se manifestou para evitar o agravamento da situação dos católicos na Europa ocupada pelos nazis.” (tradução CNN). Ou seja, embora a informação mostre que o Papa não ficou de braços cruzados, mas está claro que ele deixou o “trem” seguir o curso normal para não tomar uma decisão para não colocar em risco outro grupo, no caso, os membros de sua igreja.

    Perguntei a dois amigos doutores em Filosofia o que achavam do caso e as respostas foram curiosas. Um deles citou a máxima “Os fins justificam os meios”, do poeta romano Ovídio, em seus Heroides – frase também cunhada por Maquiavel, no clássico O Príncipe. Contudo, reformulou em seguida dizendo que “Religiões são feitas por humanos, daí seus erros”. O outro (uma mulher na verdade) questionou-me “Como ele teria evitado? Ele poderia era ter evitado o holocausto! Aí resolveu deixar a coisa fluir pra acabar com os judeus?” Filósofos costumam responder perguntas com outra pergunta, embora a deontologia na Filosofia enfatize a importância de seguir princípios éticos universais, mesmo que isso possa levar a consequências negativas em curto prazo. Claro que não espero uma resposta para este caso, ainda mais de filósofos, já que se trata de um paradoxo moral que merece discussão e reflexão e é este um dos objetivos do presente texto.

    É preciso reforçar, no entanto, que o que está sendo comprovado agora em relação ao alto escalão católico não é novidade para as suspeitas, muito bem já referenciadas em obras artísticas, como no filme Amém, dirigido por Costa-Gavras, por exemplo. A busca por poder, benesses, prestígio, etc, é do comportamento humano, o que inclui – sem polêmica – o representante de Deus na terra para a igreja católica. O que seria ético para o Papa senão agir pela verdade e justiça? Conclamar a seus fiéis para entrar na defesa da vida humana, não apenas a própria (como fez o próprio Cristo), tema tão debatido pela igreja em outros casos bem específicos. Mas não foi isso que o Papa, os cardeais, abades, bispos, arcebispos, etc, fizeram de maneira ordenada. Por outro lado, vale lembrar que todas as vezes que um representante da Igreja Católica se mete a defender questões sociais sofre punições, vide Frei Caneca, Dom Helder Câmara, Leonardo Boff, Frei Tito, Frei Betto e outros. Assim como esses, o atual papa, Francisco, também pode ser colocado como exemplo de justiça, uma vez que foi ele quem anunciou abertura de arquivos secretos do pontificado de Pio XII durante a 2ª Guerra Mundial e eis aí alguns resultados.

    Mas não estou aqui questionando a importância dessa religião, nem a de seus membros que, por outro lado, têm dado relevante contribuição humana, às letras e às artes e têm sido um caminho necessário para os desamparados. A questão aqui é um ponto no papel branco, afinal, relembrando o amigo filósofo, “religiões são feitas de humanos” e, aos humanos, agora pensando no que supostamente disse Cristo, é preciso reconhecer os erros e reconciliar-se com Deus por meio do perdão. Contudo, é tempo ainda de questionar a mitificação dos homens e a santificação dos religiosos. Não é que um homem não possa fazer coisas extraordinárias, pode e faz, o que inclui atos bonitos de caridade, humildade e quase milagres, mas tenho como quase impossível que um humano possa ser elevado à categoria de santo, pois um santo, na tradição cristã, é uma pessoa reconhecida por ter vivido uma vida exemplar de serviço a Deus e ao próximo e aí, recorrendo novamente à Filosofia, posso perguntar: o que seria exatamente uma vida exemplar? Essa questão me parece criar caminhos para outro paradoxo e novos dilemas para se discutir.

  • Latada

    Dali, daquele monte de areia batida, sedimentada de tanto pisada, molhada e cuspida, chamava-se o gado. Final da tarde. Vocalização alongada, aspas de vaquejada, sofrimento flamenco de algum resquício cultural da Andaluzia. Meu avô, de poucas palavras, entusiasmava-se chamando o gado.

    Latas de querosene estendidas a martelo, pregos sustentando as pontas com firmeza nas ripas e caibros, espaço dois por dois e olhe lá. Só o suficiente para não molhar a porta da cozinha ou a soleira feita de algum pedaço velho de madeira.

    Latada, não varanda, caramanchão, pérgola, pavilhão, gelosia ou parreira, latada, pois era feita de lata. Duas forquilhas tortas sustentando a estrutura de zinco armado à martelada. Utensílio simples com propósito básico, mas que definia toda a existência e prevalência de um signo, a permanência de um significado que jamais foi substituído na memória por outra coisa que não fosse semelhante àquela imagem.

    Alpendres, de madeiramento e telha, não são latadas, pois na construção semântica de minha infância, latada só poderia ser definida por uma construção cuja cobertura fosse de latas, o que não significa folha de zinco, dessas brilhantes compradas em material de construção. Lata só existiam duas: de querosene e de óleo de caroço de algodão, qualquer outro metal mudaria obrigatoriamente o sentido lógico daquela arquitetura.

    Sob sua sombra pouca, construí muitas fazendas de gados de ossos de ovelhas. Algumas vértebras eram direitinho tratores, máquina mais bonita já criada pelo homem. Aos 30 quilômetros por hora, faz os cabelos esvoaçarem, acende a adrenalina de menino, o que destampa a panela do sorriso. Segurança alguma, lugar nenhum para se apoiar a não ser o próprio paralamas armado sob a roda gigante. Posso dizer que o trator foi meu primeiro trem, minha única montanha-russa.

    Da esquina para o oitão o tanque d’água quase sempre vazio. Da outra banda fumegante pela chaminé do fogão, cerca de vara e curral. Ao fundo, por trás de tudo e até da casa, a porteira abraçando a estrada. No rumo contrário, para onde meu avô usava o vento como transporte da voz, o sertão todinho como num quadro estanque e pequeno, desses que se esquece na parede. Um pezinho de jucá à direita com ninhos pequenos indicava o começo da estradinha torta. À esquerda, aroeira frondosa recheada de ninhos de gralhas, observatório de carcarás, alinhava a visão da roça de algodão.

    Solilóquio de reza e cancioneiro antigo vindos da cozinha velha e escura. A voz pouco delicada de minha avó lembrando da mocidade e mantendo vivas histórias mais antigas que nosso próprio país; passagens decoradas de ouvir cantorias. Um jovem que luta com um dragão em defesa da honra de uma princesa, um capitalista que constrói um planador em forma de ave para roubar uma donzela. Reinos, ducados, países estrangeiros. Todas palavras bonitas, mas sem significado para quem só conhecia a existência de mato. Mas ouvi-las educava a mente a construir narrativas melhores com o gado de osso.

    Em dias de inverno, a chuva faz batucada na lataria da latada e inunda o terreiro limpo de vegetação até certa altura. Lamaçal em frente à cozinha velha. Galinhas e ovelhas fazem pisadela. Na manhã seguinte, o milagre da biologia estendido por toda a extensão daquele pequeno mundo que se forma. Micro-floresta de babugem, alimento para aves e minhocas, sinal de forragem para os animais maiores. Caramujos pequeninos passeiam pelas ramagens que só se consegue ver pelo quantitativo. Uma festa de tanto bicho que de tão minúsculos obrigam-nos a deitar e quase encostar o olho na terra para ver sua existência e beleza.

    A latada é um observatório do micromundo que se forma lá fora, mas que, com certeza, se forma, microscopicamente, do batente para dentro também e, bem possível, se enraize em meus pés descalços de menino. Resistência pela convivência, como parte daquilo tudo, integrante da natureza que compartilha o meio e só o transforma o suficiente para existir. Como os pássaros que fazem casas, o gado que cavuca a terra, os tatus que cavam cacimbas. Natureza viva e proeminente, bichos influenciando bichos, animais como quaisquer outros.

    Toco de madeira usado como banco, trilho de trem como biga para amolar enxada. A história natural e humana ali em pequenas porções de representações. Qual madeira deu aquele toco? Se for natural da região, quanto tempo viveu antes de ser cortada? Se é de outro lugar, quando trouxeram sua semente pela primeira vez? Foi homem ou foi avoante? E aquele trilho, teria vindo em navio inglês? Quantas pessoas e vagões suportou até chegar ali naquela latada? Teria minha avó ideia de que existia em seu terreiro algo que veio de um reinado, forjado por súditos de um reino legítimo e mais antigo que nosso próprio continente?

    A latada, a olho nu, era um paliativo daqueles que, desprovidos de recursos, usam qualquer estrutura para se amparar. Mas, para nós, era o espaço de nossa vivência real e intermitente. Rotina orgânica com o biológico, o cosmo, a santa trindade e a literatura medieval que alimentava nossos mitos e lendas. A latada, simples e esteticamente duvidosa, era um dos portais de nosso castelo de barro, único mundo que realmente conhecíamos.

  • Porteira

    A estrada está aberta e quem por ela passa não sabe que antes, bem ali, na linha daqueles dois mourões, habitava uma porteira. Azul entrelaçada, aberta como dois braços freando a liberdade de quem pensava em passar; uma sentinela imponente de madeira resistente à chuva, ao sol, à poeira e ao vento que, em insistência impertinente, a balançava em traquinagem. O vento e o portão em eterno conflito: briga medonha.

    Vazio de porteira é também ausência de memória. Os que por ali atravessam ou perambulam não veem na sombra do que já foi portão a réstia de minha infância. Vaporosa para quem ouve, infinita para quem conta. O portão não era um amigo, mas um patrão ou, quem sabe, um meio para uma renda infantil e tutti-frutti que ocupava meus dias. Eu que sempre gostei de trabalhar. Abria o portão para os carros afobados de onde jogavam uma moeda qualquer como paga e eu, como todo sertânico feliz, reconhecia com uma alegria menina.

    Minha primeira renda. Níqueis tilintando em  vasilha azul-plástica de minha avó. Escondidos dos olhos alheios, pensava eu, em um ambiente de poucos objetos domésticos, onde nada podia ser escondido. A possibilidade de moeda era o moinho que fazia fluir o rio dos dias, lentos, secos e trêmulos do mormaço cotidiano. Vento quente ressecando a pele que mais parecia uma lousa escura de desenhar formas simples, devaneios distantes e alheios ao que se via entre o alpendre da casa velha e a porteira comprida.

    Ouvidos atentos distinguiam a gralha de grasnido ininterrupto das ações humanas. Automóveis ou motocicletas sempre apressadas em fugir do sol agressivo e eficiente. Ardente castigo sertanejo. Corria sobre as perninhas finas sabendo de onde vinha: de lá ou de cá, subindo ou descendo. Poeira comendo as vistas, sequidão na garganta, caneco de água retumbando no fundo do velho pote no canto da parede. A ausência da moeda que ficou para a volta. Ouvidos atentos novamente para nova empreitada que rasgue o silêncio silvícola como uma faca quente sobre plástico mole.

    O tempo só é linear para quem vai, mas se você para e pensa não há nenhuma linha reta ou divisão que separe o antes do agora; aquele momento gravado na parede da memória com o desejo distante de reconstruir as porteiras azuis como o céu aberto, horizonte distante e azul igual, longilíneo, única imaginação possível de se apontar.

    Para a memória geral é apenas uma porteira, objeto inanimado substituível. Agora mesmo deve estar fechando outra estrada ou, quem sabe, em situação mais drástica, escorada sem serventia; pior ainda, queimando em brasa como lenha no fogão de alguém. Para meu baú dos guardados, uma missão que se repete naquela infância pensada. Designer estático de um tempo irrevogável onde, sem diálogo, eu pensava a porteira como uma oportunidade para a qual eu me dedicava sem necessidade de ser demandado. Era minha liberdade financeira, minha goma de mascar, meu carrinho de plástico, se desse.

    A porteira era uma faixa que limitava a posse do ser e do estar. Briga com meu primo pelas moedas quando, esporadicamente, estava por lá. Minha avó me repreendendo para dar oportunidade ao outro: tadinho, mais novo e sem pai. Ela me ajudava ali a exercer com mais propriedade a empatia, embora também meus rancores. A porteira era minha necessidade, era eu quem dali tirava o desconto do tempo sem nada pra fazer, a moeda que para além do monetário era uma forma de me fazer próximo do que era urbano, humano e social.

    Havia uma simbiose entre o alpendre e a porteira, entre nosso lugar minúsculo e todo o resto defendido por ela. Fazenda de cavalos, de gado nelore, de água jorrando em poços profundos, cajuais conjugando o futuro das fábricas de castanhas e sucos de caju. A porteira restringia para nós tudo o que se movia depois dela e nos mantinha, ali, presos num passado perene, sabendo o que se passava além de suas treliças. A porteira nos barrava, mas talvez fosse ela que nos protegesse de ser como os demais urbanizados, pessoas sem apego à memória, carentes de objetos virtualizados, de atenção alheia. Talvez fosse ela a relíquia de um tempo que deixamos para trás.

  • Canção de viola nordestina

    No dicionário, a palavra “Sertanejo” refere-se àquele ou àquela que vive no sertão; quem vive em cidades muito pequenas, aldeias, vilas ou regiões no interior, normalmente com hábitos muito simples: caipira. A música sertaneja, portanto, é um estilo que exalta os elementos do sertão, o modo de vida das pessoas caipiras, normalmente com melodias acompanhadas por uma viola caipira ou pelo violão. Dito isso, peço maxima venia para defender este estilo artístico que não se limita apenas ao interior do centro do país, mas também a nós, do Nordeste. Pelas definições, posso afirmar que Luiz Gonzaga é um autêntico cantor sertanejo, talvez o mais autêntico de todos, mas também os cantores de forró, de aboios e toadas e, obviamente, cantadores de viola também são sertanejos. Desde Elizeu Ventania, o repente introduziu outro gênero artístico-musical que todos chamam de “canção” e eu, na busca por caracterizar este estilo, chamo de “canção de viola nordestina.”

    Sendo aqui muito bairrista, e para não confundir os mais exigentes, vou chamar este estilo que muito aprecio de canção sertanista, em alusão ao trabalho impecável do pesquisador Oswaldo Lamartine de Farias. Pois bem, a música sertanista do Nordeste resiste ao tempo e se moderniza. Se o cancioneiro virou cordel e depois virou repente, tudo isso deu qualidade e condições para o poeta Elizeu Ventania inaugurar esse gênero com a belíssima “Serenata na montanha” e tantas outras composições memoráveis. São inúmeros artistas que enchem nossos corações com músicas repletas de força e verdade. Cito alguns: Daudeth Bandeira, Sebastião Dias, Hernandes Pereira, Onildo Barbosa, Nonato Neto,  Nonato Costa (os Nonatos) e muitos outros, o que inclui o grande Zé Viola que, apesar de ser reconhecido como o maior intérprete de todos, é também compositor e, por ser casado com uma potiguar, tem um pé muito grande aqui na terrinha.

    Falando dos locais, além de Elizeu, Sebastião da Silva, de Caicó, compôs esta canção que, para mim, é a mais bela, melódica e poética de todas. “Sem dormir” cumpre, a meu ver, o círculo perfeito sendo, possivelmente, a música romântica mais bonita que eu já ouvi e gosto de repetir. Porém, hoje, especificamente, quero concluir este texto fazendo referência a outro poeta dos mais completos repentistas e compositores de música sertaneja e sertanista deste país. Falo de Raulino Silva, nascido no Rio Grande do Norte, na cidade de Antônio Martins, no coração do alto oeste potiguar.

    Nos últimos cinco anos, Raulino que já era muito respeitado como improvisador, evoluiu como compositor romântico e escreveu, gravou e divulgou verdadeiras pérolas. Existe uma diferença enorme – agora sendo ainda mais bairrista – da maioria das músicas sertanejas do Centro-Oeste, Sul e Sudeste da nossa canção sertanista. Nos preocupamos tanto com a melodia quanto com a poesia, por isso que as composições por aqui fecham de uma maneira ímpar. Para dar um exemplo, peço que pense numa música boa das outras parte do país e compare com o refrão dessa de Raulino, cujo título é “Não é amor”: “Porque amor/ Não é amor, porque você deseja/ Ou quando alguém quer/ Com essas bases uma relação/ De homem e mulher/ Pareceria dona e objeto escravo e senhor// Não é amor/ Esse desejo que lhe deixa crente/ Que é dona de mim/ Quem ama cuida/ Mais também liberta e se não for assim/ Pode ser qualquer outro sentimento/ Mais não é amor”.

    Repare bem no cuidado do poeta em encaixar a lógica na narrativa, de construir o cenário e fechar as estrofes com palavras que assevera uma rima potente e uma mensagem segura e marcante. Na canção “A razão que se dane”, o autor desenha uma crônica bem elaborada e contundente de uma relação problemática, dessas meio tóxicas, mas que, por rotina, povoam a vivência de muitos por aí. Para isso, assim ele nos conta essa estória: Começo a falar feito um tonto/ Você perde a calma e pronto/ Objetos voam/ Há trocas de acusações/ Xingamentos, palavrões/ Pela casa ecoam/ Até que chegue nessa hora/ De um dizer, que vai embora/ E outro fica mal/ E na hora do tudo ou nada/ Uma vírgula é colocada/ No ponto Final”.

    Nestes dois exemplos, Raulino caminha por letras mais românticas ao estilo próximo ao comercial, como fizeram os já citados Nonatos, estes que tiveram algumas de suas canções gravadas por grandes nomes do Sertanejo comercial, como César Menotti e Fabiano, Di Paullo e Paulino, Edy Britto e Samuel e até Gusttavo Lima – aliás, as músicas dos Nonatos estão nos repertórios daqueles que se propõem a colocar em seus shows um momento daquilo que chamamos de “modão”. Mas aí, com tudo isso, e ao contrário desse pequeno exemplo, talvez você não tenha ouvido falar de Raulino e, se ouviu, pode não ter se atentado a seu lado cantor/compositor. Mas não se sinta mal, o poeta não toca nas rádios como tocam esses outros, não porque não mereça, mas porque não deve ter recursos para pagar por isso.

    A verdade é que se você escuta muito um estilo musical nas rádios e plataformas de streamings não vale a pena colocar a culpa no gênero, atacar a tradição de alguns grupos ou exigir paridade poética porque você não se identifica. Há lugar para todo mundo e cada um canta aquilo que lhe confere memória, sentimento e referência. Não é culpa do sertanejo romântico ou universitário estarem tomando espaços que podiam ser dos poetas, dos cantores de forró tradicional, do aboiador e outros artistas nordestinos. A culpa é da indústria cultural que compra e monopoliza os espaços. Faz isso com esse tipo de música porque tá dando certo, mas pode mudar o gosto por qualquer outro, basta que fature mais.

    Agora, verdade seja dita, outro fator que não deixa você ouvir a nossa música é porque o diretor da rádio, o programador e o locutor não tocam; mas também porque, talvez, você não procure, não valorize e não se importe.

    Imagem: Poeta, cantor e compositor Raulino Silva

  • Ninguém explica

    A ciência tem como missão explicar tudo o que é possível explicar, mas os cientistas não fazem isso – ou pelo menos não deveriam fazer – para impor algum poder opressor sobre o mundo. Não, o papel da ciência é compreender a natureza, buscar explicações baseadas em evidências e desenvolver teorias que possam ser testadas e refutadas. É importante entender de onde viemos e saber para onde iremos, quais são as doenças e como combatê-las, quais as probabilidades de cair outro asteroide na terra, se teremos ou provocaremos novas extinções em massa… A capacidade de conhecer, de explorar, de se superar é inerente à mente dos primatas humanos, mas também de ter fé, de duvidar e de acreditar numa existência suprema e divina.

    Faz mais de 160 anos que Darwin publicou o seu livro ‘A origem das espécies’, um trabalho longevo que mostra como os animais se adaptam ao ambiente, dando origem a outros animais. O naturalista, que também era teólogo, não descobriu isso sozinho, na verdade ele reuniu nesse trabalho todo o conhecimento discutido na época, uma vez que o criacionismo já não era aceito por muitos pesquisadores há séculos. É bom lembrar que a igreja colaborou com os estudos de Darwin, não exatamente para que ele refutasse as ideias bíblicas, mas para que conhecesse os fenômenos do mundo, pois, além de patrocinar as artes, o clero também financiou a ciência em muitas ocasiões. Vários religiosos fizeram contribuições importantes para o avanço científico.

    São inúmeras as intercorrências em que igreja e estados se juntaram contra pensadores. Hypatia de Alexandria (350-415), filósofa e matemática grega, uma das principais intelectuais da Antiguidade, foi assassinada por uma multidão de cristãos fanáticos, que a acusaram de pagã e bruxa. Miguel Servet (1511-1553), médico espanhol conhecido por suas contribuições para a anatomia e a medicina, rejeitou a doutrina da Trindade cristã e escreveu obras consideradas heréticas. Foi condenado por heresia pela Igreja Católica e queimado na estaca. Giordano Bruno (1548-1600), filósofo, astrônomo e defensor do heliocentrismo, foi acusado de heresia pela Inquisição Romana e queimado na fogueira em 1600. Galileu Galilei (1564-1642), astrônomo e físico italiano, enfrentou oposição da Igreja Católica devido à sua defesa do sistema heliocêntrico proposto por Copérnico. Ele foi chamado perante o Tribunal da Inquisição e, sob ameaça de tortura, foi forçado a renunciar às suas visões heliocêntricas.

    Apesar desses casos e outros também conhecidos, a separação entre religião e ciência ganha maior adeptos depois do Iluminismo (1685). Até então, nem todas as interações entre igreja e ciência foram negativas – como hoje ainda. O movimento protestante, iniciado no século XVI, poderia ter construído uma ponte segura entre conhecimento e crença, mas parece que muito desse movimento descambou para lugares mais arredios do que os que haviam sido construídos por parte do catolicismo. Atualmente, setores do neopentecostalismo têm criado figuras estranhas que defendem absurdos como a possibilidade de dinossauros terem sido colocados na Arca de Noé. É importante esclarecer que os antigos dinossauros e os humanos não conviveram.

    Alguns grupos se reúnem no mundo todo para refutar a ciência com a chamada “teoria do design inteligente”. Esses indivíduos argumentam que existem características nos organismos vivos e em fenômenos do universo que não podem ser adequadamente explicadas pela evolução natural e requerem uma explicação além da ciência convencional. Acontece que não conseguem provar nada porque não têm evidências empíricas, nem consistência com os princípios do método científico, como também se limitam a buscar explicar à luz dos escritos históricos (não científicos) da Bíblica. Na maioria das vezes, se apoiam em explicações incompletas de achados que não esclarecem tudo, mas apenas uma pequena parcela de outra parte menor. Há ainda os que acreditam na possibilidade de termos sido criados por extraterrestres, numa missão exploratória intergalática.

    No meio disso tudo está Deus, ser que passa a existir conforme a necessidade de quem o cita. Quando é para se proteger, faz-se furioso e vingativo, como no Velho Testamento, quando é para acalmar e perdoar, torna-se justo e calmo. Se para a ciência é impossível explicar Deus, pois não há nenhuma evidência material que o leve a ele, pior é para alguns crentes que se fixaram na ideia desnecessária de explicá-lo. A natureza tem uma lógica matemática perfeita, o que inclui os seres que vivem nela, entre os quais nós, primatas humanos, animais tal qual as outras espécies do ponto de vista biológico e natural. Aquilo que para alguns é perfeição divina, está mais para um grande organismo vivo que depende de vários movimentos e circunstâncias para se manter assim. A cadeia alimentar é um exemplo disso: os animais pequenos são devorados pelos maiores e os microorganismos precisam de nossos corpos para se reproduzir. Somos todos ambientes com prazos de validade.

    Tentar explicar essa complexidade é fascinante e necessária para sabermos o que fazer com os fenômenos advindos desses ciclos. Mas o planeta terra e sua confusão – ou a sua incapacidade de muitos compreendê-lo – não é suficiente para supor a possível existência de um Deus. Pois, para ser Deus, criador de tudo, a complicação está naquilo que está além do átomo, da fissão nuclear, da expansão cósmica, das nanopartículas, da matéria escura. Coisas que de tão complexas parecem divinas – e talvez sejam. Se Deus criou o universo, a terra é um grão praticamente invisível considerando as mais de um trilhão de galáxias que se imagina ter (até então). O cientista, com toda a sua arrogância, sabe que todo conhecimento dito hoje pode ser refutado, requalificado e reescrito amanhã. Certos crentes, por outro lado, no alto de suas ignorâncias, acham que Deus está com um caderno decidindo quem vai pro céu ou para o inferno.

    Essa mediocrização de Deus é chave para o extremismo religioso. Existem diferentes abordagens para a relação entre ciência e religião, e nem todos os crentes negam a evolução ou outras descobertas científicas estabelecidas. Mas, do ponto de vista pessoal, tendo a acreditar que Deus, sendo quem é, não deveria ter tempo para coisas tão insignificantes, embora, nessa concepção, tenha sido ele criador de tudo. Materialmente, repito, não é possível, ainda, explicar Deus, mas negar a evolução, a astrofísica, a biologia, a sociologia, etc, em nome de concepções mal compreendidas na leitura de uma única coleção de livros antigos e manipulados ao longo da história também não. Deus não se explica porque, existindo, ele não precisa ser explicado, pois não é necessário. Ou, talvez, seja tão simples que o explicamos todo dia e não somos capazes de perceber – e nossas mentes limitadas jamais entenderão isso. Ao contrário do que apregoam por aí, Deus não parece carecer de bajulação, como se diziam dos deuses antigos gregos e nórdicos. Deus não liga para o que pensamos ou fazemos, pois ele criou a natureza para se autorregular, daí as consequência dos desequilíbrios ambientais.

    Ninguém é obrigado a acreditar em Deus, ele também não liga pra isso, mas os que preferem acreditar têm o benefício de nunca se sentirem sozinhos, como disse a escritora Rachel de Queiroz, que se posicionava como ateia. Aos que têm fé, como diz minha mãe, é óbvia a presença de Deus, não como um sujeito espião, acusador ou castigador, mas como força de vontade e dignidade. Ele parece muito claro nos gestos de amor e solidariedade, nas horas de solidão e desespero, naquele momento em que a cabeça repousa no travesseiro e se descobre que é só você e o mundo. Quando se estende a mão, não por caridade, mas por empatia, por respeito e verdade; quando você sente dentro de si uma força estranha que lhe move sem explicação, algo divino, natural, como o vento que nos toca e nos refresca, como os bons pensamentos que trazem a sensação de alma limpa e nos fazem sorrir por nenhum motivo aparente. Ali está Deus, você acreditando ou não.

  • Velhofobia

    Sente-se, por favor. Quero falar com você sobre algo que tem me incomodado ultimamente: a velhofobia. Sim, você leu certo. Velhofobia. Esse termo que soa estranho e talvez desconhecido para você é uma forma de preconceito que se manifesta contra pessoas mais velhas, mas não necessariamente pessoas com idade avançada. Basta começar a pintar os cabelos, antes mesmo dos 40, para esse comportamento precipitado se manifestar.

    Não é raro ouvir piadas depreciativas sobre a velhice ou vermos pessoas dando um jeitinho de evitar o convívio com os mais velhos. A verdade é que a nossa sociedade é obcecada pela juventude e pela beleza, e acaba menosprezando as pessoas mais velhas. É como se o passar do tempo fosse uma espécie de falha, uma imperfeição a ser corrigida.

    Mas por que isso acontece? Será que estamos tão obcecados com a imagem e a aparência que nos esquecemos do valor da experiência e da sabedoria acumuladas pelos idosos? Ou será que estamos simplesmente assustados com a ideia de envelhecer, e por isso projetamos nos outros uma espécie de medo que sentimos em relação a nós mesmos?

    De qualquer forma, o preconceito contra os idosos é real, e pode ser tão devastador quanto qualquer outra forma de discriminação. Ele afeta a autoestima e a autoconfiança dos mais velhos, além de limitar as suas oportunidades e possibilidades de realização pessoal e profissional. E o pior de tudo é que muitas vezes não é percebido ou reconhecido como um problema grave.

    E se isso já não fosse ruim o suficiente, a velhofobia é agravada ainda mais pela tecnologia. Sim, você leu certo novamente. A tecnologia, essa mesma que nos promete conectividade e inclusão, muitas vezes se torna um obstáculo para os idosos. E não estou falando só de botões muito pequenos, instruções confusas, interfaces pouco intuitivas que podem fazer com que certas ferramentas se tornem um pesadelo para quem não tem familiaridade com ela. Estou falando de comportamentos em redes que, para algumas gerações, não fazem sentido algum, embora seu desconhecimento ou desinteresse possa ampliar o abismo da exclusão geracional.

    Idade e conflito de gerações

    E quando o velho não é tão velho? Pois é, isso acontece também e com mais frequência do que se imagina ou se percebe. É inevitável que, ao longo da vida, nos deparemos com conflitos de gerações. Afinal, cada época tem suas próprias referências, valores e formas de se relacionar com o mundo. No entanto, o que me preocupa é o preconceito que muitos jovens parecem ter em relação às pessoas com mais de 40 anos.

    Não é raro ouvir comentários do tipo: “nossa, você é tão velho!” ou “você não entende nada do mundo de hoje”. Esses comentários, embora possam parecer inofensivos, revelam um preconceito e uma falta de respeito pelas pessoas mais velhas.

    O que muitos jovens não percebem é que a vida é uma escola constante, e que cada geração tem suas próprias lições a aprender. Os mais velhos têm a experiência e o conhecimento adquiridos ao longo de décadas de vida, enquanto os mais jovens têm a energia e a curiosidade que os movem para frente. Juntos, eles podem criar um ambiente de aprendizado e evolução mútua.

    No entanto, esse diálogo entre as gerações só é possível quando há respeito e abertura para o outro. Quando há preconceito e falta de respeito, o diálogo se fecha e as oportunidades de aprendizado são perdidas. E isso não é bom para ninguém.

    Por isso, é importante que os jovens reconheçam o valor da experiência e da sabedoria dos mais velhos, e que os mais velhos reconheçam a energia e a curiosidade dos mais jovens. É importante que haja espaço para o diálogo e a troca de ideias, sem preconceitos ou julgamentos.

    O conflito de gerações é inevitável, é verdade, mas o preconceito e a falta de respeito não devem ser. Afinal, a velhice não é um erro ou uma falha. É simplesmente uma fase natural da vida que só afeta os abençoados pela biologia. Todos que recebemos esse privilégio ficamos velhos, mas, enquanto isso não acontece, cabe-nos correr para deixar alguma coisa marcada em nossa brevíssima passagem pela terra.

    Você pode até se sentir poderoso enquanto jovem ou brincar com tudo, característica natural dessa fase humana, mas a verdade é que a maioria de nós só será lembrado bem depois, quando os cabelos brancos forem a fonte mais visível de nossa aparência.