O poeta não fingiu, ele calculou hermeticamente a saída e tomou a decisão que a ele lhe foi mais humana. Feriu os preceitos cristãos, causou perdas e danos, gerou um debate estranho e mórbido, numa decisão que afeta a moral humana e provoca uma tristeza subterrânea, dessas que não se encontra palavras para dizer. Mas o poeta estava consciente e aproveitou dessa lucidez para apagar ele próprio as memórias e a vida antes que a biologia o fizesse de forma arbitrária e dolorida. Como havia escrito antes em seu poema mais célebre, “melhor se guarda o voo de um pássaro do que um pássaro sem voos”.
A decisão do poeta Antônio Cícero, diagnosticado com Alzheimer anos atrás, de realizar sua morte assistida na Suíça é, de fato, incômoda e não recomendável, mas há muitas camadas nesse percurso: a solidão da velhice e o despreparo do mundo para lidar com o envelhecimento populacional.
Cícero teve pressa em resolver o fim de seu próprio enigma, pois talvez temesse mais a incapacidade do que a morte. E, se somos sinceros, tememos a incapacidade tanto quanto ele; há algo cruel em ver a memória e o corpo se apagarem devagar, enquanto o mundo ao redor se reorganiza, embora não exatamente para os velhos. No Brasil, envelhecer é quase um desenraizamento — a cidade, construída para jovens, persegue e descarta o idoso em cada degrau alto demais, em cada rampa íngreme, em cada transporte público com acesso limitado. O país, que um dia viu a sua população crescer exponencialmente, vê agora sua gente envelhecer sem um olhar para a dignidade no caminho.
Hoje, o envelhecimento populacional no Brasil deixou de ser uma tendência vaga e se tornou um fato inescapável. Em 2022, a idade mediana da população brasileira atingiu os 35 anos, um salto em direção a uma estrutura etária madura, acompanhada pelo aumento do número de idosos. Desde 1980, a parcela de pessoas com mais de 65 anos praticamente dobrou, agora somando 10,9% da população. Mas a matemática fria das estatísticas esconde os rostos e histórias desses que envelhecem sem infraestrutura, sem assistência e, muitas vezes, sem apoio familiar ou social.
Esse envelhecimento representa uma terceira fase da transição demográfica, marcada pela desaceleração do crescimento populacional e pela inversão da pirâmide etária. E, enquanto isso, as políticas públicas parecem correr atrás de uma sombra, uma tentativa de adaptar o que já deveria estar pronto. Como o voo de um pássaro que tenta ir contra o vento, o esforço para oferecer cuidados integrais e planejados esbarra em um contexto que mal considera a saúde dos idosos, menos ainda suas necessidades emocionais e sociais.
Imaginemos, então, uma cidade que se adequa a seus habitantes, como o refúgio que Cícero talvez esperasse ver para ele e os de sua idade. Seria uma cidade que se ajusta ao tempo, onde os passos mais lentos não são motivo de pressa alheia. Em vez disso, o idoso no Brasil enfrenta o desafio de se movimentar em espaços hostis, onde faltam rampas, onde há poucos bancos nas praças, onde o transporte público é um verdadeiro teste de resistência física. É a ausência de uma cultura do cuidado — esta sim, necessária e urgente — que transforma a experiência da velhice em um momento de isolamento e sofrimento.
O envelhecimento, por si só, poderia ser um período de frutos e colheitas, um bônus demográfico tardio onde a experiência se torna recurso para a sociedade. Mas, sem preparo, o que vemos é uma inversão de expectativas: os idosos têm a sabedoria e a vontade, mas carecem do ambiente e das condições para aplicá-las. Eles poderiam ser mentores, poderiam contribuir para o desenvolvimento de políticas e práticas sociais inovadoras, mas se veem presos em um ciclo de invisibilidade, onde sua experiência é subutilizada e, muitas vezes, ignorada.
Em algumas cidades do Brasil, iniciativas como o Programa Cidade Amiga dos Idosos, incentivado pela OMS, buscam adaptar o espaço urbano para promover saúde e bem-estar aos mais velhos. No entanto, são poucos os municípios brasileiros que realmente seguem esses parâmetros. Faltam acessibilidade, assistência integral e políticas que considerem a complexidade do envelhecimento. Mesmo nas grandes cidades, onde o índice de envelhecimento é maior, há pouca oferta de ambientes realmente amigáveis para idosos.
Precisamos, então, não de mais despedidas tristes e silenciosas como a de Antônio Cícero, mas de uma transformação estrutural, onde o envelhecer no Brasil seja um processo seguro e digno. O Brasil tem a oportunidade de transformar essa realidade, mas isso exige coragem e vontade política. Envelhecer não precisa ser um fardo; pode ser uma continuação do voo, com passos mais lentos, mas com a liberdade e o respeito que todos merecemos. Para isso, a cultura do cuidado deve ser uma prioridade — um compromisso com a acessibilidade, com a adaptação dos serviços e com o respeito àqueles que já tanto deram de si à sociedade.
A decisão de Antônio Cícero deve ser respeitada, pois foi sua, mas a solução para o envelhecimento não precisa ser o fim. Em vez disso, o envelhecimento pode ser visto como uma nova juventude, onde o idoso, com sua experiência e paciência, se torna novamente parte ativa e integrada da sociedade. Ao respeitarmos a trajetória e o ritmo dos que já viveram tanto, damos um passo em direção a uma convivência mais humana, mais generosa. Que o idoso de amanhã seja o novo jovem de hoje, com a experiência de quem aprendeu que a calma e o tempo bem aproveitado são aliados mais poderosos que a pressa. O bônus demográfico tardio que o Brasil viverá em breve é uma chance para valorizar a sabedoria e construir alternativas que transformem o envelhecimento em um caminho suave e acolhedor, onde o fim não se apresse em chegar e o voo permaneça livre.