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  • Culpa | Capítulo XXI

    Por Clauder Arcanjo

    Quando o reforço policial chegou a Licânia, encontrou quase toda a população diante da delegacia.

    Em meio ao tumulto, o padre Araquento, as pias Filhas de Maria, o sacristão e outros católicos, nem tão praticantes assim, puxavam o rosário em honra à Senhora Sant’Anna.

    Companheiro Acácio cuidou de separar os diferentes grupos. A fim de evitar o encontro e possíveis rusgas entre o sacro e o profano, segundo argumentação acaciana, posicionou os fiéis na parte da frente da multidão, convidando a turma da pinga e do forró para ocupar a parte da retaguarda. No meio, uma legião de homens, mulheres e crianças movidos pela ideia de reparar tão flagrante injustiça.

    Gordinho colocou o tamborete-palanque no alto da calçada da delegacia. Sobre ele, vários oradores e oradoras se revezavam, mantendo a multidão unida e mobilizada em torno da causa. Acácio, com algumas pingas a mais, renunciou ao cargo de porta-voz do levante; fez isso após a terceira queda.

    — Ô pinga braba! — ouviu-se entre os presentes.

    — Perdoem-me, cidadãs e cidadãos desta terra tão bravia, mas tenho fobia à altura. Nomeio ad hoc o companheiro João Américo para tão augusta missão, enquanto eu me juntarei ao grupo da logística — anunciou Acácio, mantendo-se em pé com muita dificuldade, zonzo devido aos eflúvios da carraspana.

    João Américo aceitou a missão, mas a condicionou ao reforço no número de pessoas, quando da subida, bem como na sua manutenção no alto e na descida do tamborete. Iniciou o primeiro improviso mencionando As Catilinárias, de Cícero. A turba aplaudia-o com entusiasmo, mesmo sem entender de nada quando ele se empolgava com as citações em latim.

    Em certo momento, dia alto, o comandante do regimento policial anunciou:

    — Desafasta!

    E foi entrando, abrindo espaço com bordoadas a torto e a direito. Quando ele atingiu a cabeça de uma jovem que se encontrava orando, o padre Araquento disparou:

    — Enviado do Belzebu!

    O comandante se voltou para o local em que se encontrava o pároco de Licânia e, tomado de fúria, rumou em sua direção.

    — O que o senhor disse?

    — Enviado do Belzebu! — repetiu padre Araquento.

    O cassetete subiu, e seu Zequinha se interpôs entre o padre e o comandante. A pancada forte atingiu-o no alto da cabeça. O sangue escorreu em jorro, descendo pela testa. Um silêncio se fez, enquanto Zequinha cedia, ficando de joelhos.

    — Meu Deus! — gritaram todos.

    — Afastem-se, temos que levar depressa o seu Zequinha para a urgência médica — pediu o ex-delegado de Licânia.

    Companheiro Acácio, João Américo, Gordinho e o cabo Jacinto tomaram-no pelos braços e conduziram-no às pressas. A multidão, respeitosa, abria caminho para a passagem do ferido.

    — Cristo Jesus, São José e Senhora Sant’Anna, cuidai deste bom homem! — orava Creuza. Nesse instante o cego Julião das Queimadas, sentado no adro da Igreja Matriz, jurou, pela luz dos seus olhos, que os sinos repicaram em dobres fúnebres.

  • CULPA: Capítulo XX

    O movimento diante da delegacia aumentava, chegando gente de todos os lugares: Sapó, Mutambeiras, Baixa Fria, Serrota, Estreito, Santa Rita. Sem esquecer que até as damas do Caneco Amassado, único cabaré de Licânia, juntaram-se ao protesto contra a prisão do cabo Maguinho.

    Creuza, com franca aprovação do dono da casa, ia e voltava levando café, sucos e caldos para manter a força dos presentes. Gazumba supria o movimento com doses de cachaça da serra com tira-gosto de tripa assada.

    Companheiro Acácio, sem se dar conta, fora nomeado como porta-voz do levante. Depois da segunda pinga, o latim brotava de seus lábios, tornando o seu discurso pleno de uma sapiência divinal. Isso segundo as palavras do João Américo, confesso admirador das epístolas de Paulo.

    O delegado fez uma ligação para o secretário de segurança pública narrando os últimos fatos.

    — Mas… Como?! Isso não, nunca! Não obedecerei. E outra coisa, senhor secretário, saiba que renuncio ao cargo e me junto agora mesmo aos “rebeldes”, como o senhor mesmo os denominou.

    Ao bater o telefone, arrancou o distintivo do peito, jogando-o sobre a mesa.

    — Mais problema? — inquiriu o cabo Jacinto Gamão.

    — De certa forma sim. O secretário exige que eu disperse o movimento com o uso extremo da força.

    — E…

    — E disse-lhe que estou demissionário e, ainda mais, juntando-me, como mais um cidadão, ao movimento de libertação do Maguinho.

    O cabo, de início desorientado, assuntou o bestunto, assanhando os cabelos ralos e pigarreando várias vezes. O estômago queimava em fogo alto. Em seguida suspirou e rápido retirou o revólver do coldre, depositando-o próximo ao distintivo.

    — Vou também! O meu cassetete de jucá vai junto.

    — Sugiro que fique. Alguém precisa cuidar dos detentos, assim como dar notícias às autoridades de como anda o desenrolar das coisas — argumentou o ex-delegado.

    — Vou suprir a cela dos presos com um bom estoque de água e de comida. Quanto ao secretário, senhor, que ele vá para a p…

    — Calma, Jacinto! Resolveremos tudo na paz. Senhora Sant’Anna estará conosco.

    Quando os dois desceram os degraus que separavam o prédio público da multidão, houve um silêncio. Ao perceberem que se juntavam ao protesto, uma salva de palmas anunciou à província que tal causa seria histórica.

    Gordinho trouxe um tamborete, que serviu de palanque para Acácio, o Demóstenes das ribeiras do Acaraú. Seu discurso insuflou fúria nos presentes, quando propagou:

    — Filhos de terra bravia, aqui habita um povo valoroso. Alea jacta est! Licânia não recua diante da injustiça. Se for para viver com ela, caríssimos e caríssimas conterrâneas, é melhor cair nos braços da Indesejada das Gentes.

    Gordinho, boquiaberto, perguntou-lhe:

    — E essa dona, mora onde?

    Antes que caísse do tamborete, Acácio dispara, encerrando o improviso:

    — Salve, Licânia!… Palmas para a justiça! — continuou Acácio.

    Enquanto isso, Maguinho orava a todos os santos, receoso das consequências daquela rebelião popular.

    Na esquina da Matriz, o cego Julião das Queimadas dizia em versos toscos:

    — Licânia, terra de bom caminho,

    Se levanta diante do desatino.

    Reúne forças desconhecidas:

    Cabras, doutores, polícias.

    E o pau pode cantar, amigo,

    Eu não tenho nada com isso.

  • Culpa: Capítulo XIX

    Por Clauder Arcanjo

    Creuza entrou com passo lento. Sentou-se perto do fogão frio, pois a casa estivera fechada por muito tempo. Antes de acender o fogo, resolveu orar. A cabeça confusa, as lembranças a se meterem por entre as orações. Como não conseguia avançar sequer no pai-nosso, abriu os olhos e decidiu interromper as preces. Sua mãe lhe ensinara que Deus conversa melhor com a gente em silêncio.

    — Creuza? Ó, Santa Maria!…

    — Meu Deus!

    Ao virar-se, deu com a presença do amado.

    Abraçaram-se longamente. Os dois em lágrimas.

    — Creuza, minha filha, como você sabia que eu estaria aqui?

    Ela passa a mão pelos olhos lacrimejados, pigarreia e diz:

    — Eu suspeitei de que, antes de você ganhar o mundo novamente, revisitaria o nosso… cantinho.

    Percebendo que algo a afligia, perguntou:

    — Você me parece angustiada. Alguma novidade, Creuza?

    Ela afastou-se em direção à porta de entrada, como se ganhasse tempo. Virou-se para ele, segurou firme em suas mãos e, num jorro só, com receio de lhe faltar coragem, anunciou:

    — O soldado Maguinho, meu filho, foi preso por ser o principal suspeito pela sua fuga.

    & & &

    Creuza voltou à casa do seu Zequinha na madrugada seguinte. A cidade dormia quando ela entrou pelos fundos, enfiando-se direto na cozinha. Sabia que dona Lídia já estava a preparar o café.

    — Bom dia, dona Lídia!

    — Que bom que você voltou, senhorita Creuza. Seu Zequinha e dona Maria estavam muito preocupados com o seu sumiço. Por onde você andou? Este sertão é muito perigoso para quem corre por ele desacompanhado.

    Antes de sentar-se, Creuza ajudou Lídia a pôr a mesa. Com pouco respondeu:

    — Fui cumprir com um compromisso de fé, amiga. Coisa inadiável e que não poderia aguardar. Espero que me entenda?

    Lídia, a coar o café sobre o fogão, manteve-se calada. Há coisas que é melhor respeitá-las na condição de segredo.

    — Sirva-se. Depois vá para o seu quarto, tome um banho e descanse um pouco. Na certa você vai querer conversar com seu Zequinha. Suas coisas estão tudo arrumadas. Há um lençol e uma toalha de banho limpinhos aguardando você.

    Creuza, antes de se recolher, deu um beijo afetuoso na testa da amiga Lídia.

    & & &

    — Bom dia, seu Zequinha.

    — Bom dia, Creuza. Já estava aguardando você. Sente-se.

    Seu Zequinha afastou a agenda de anotações, que estava sobre a escrivaninha, sinalizando para Creuza que estava completamente atento à sua narrativa.

    Creuza, um pouco cabisbaixa, não sabia bem por onde começar. Respeitava muito aquele homem e estava em dúvidas se as suas últimas ações seriam aprovadas por ele.

    — Você esteve com ele, Creuza?

    — Sim.

    — Quando ele se apresentará? Temos que evitar a injustiça com a prisão do pobre soldado.

    — Ele concorda, mas teme por sua vida — declarou Creuza.

    Zequinha toma um bloco de notas, que se encontrava na primeira gaveta e escreve um bilhete em letras cursivas.

    — Peça ao Marquinhos para levar este meu pedido ao advogado Mateus. Por enquanto, aguardemos.

    Creuza encheu os olhos de emoção, levantou-se e seguiu em direção à porta do escritório, não sem antes se voltar, dizendo:

    — Muito obrigada, nem sei como nós podemos agradecer tanto zelo que vocês têm conosco. Deus lhes pague.

    — Vá, filha. Quanto mais cedo agirmos, melhor.

    & & &

    No dia seguinte, na delegacia de Licânia.

    — Sim, comandante. O homem acabou de se entregar. Veio acompanhado do seu advogado.

    Em frente à mesa, o advogado Mateus acompanhava aquela ligação, pois ainda restava uma missão a cumprir: ordem do seu avô.

    O delegado, ao telefone, inquieto.

    — Mas… Como?! Obedecerei. Bom dia.

    Ao desligar, suspira irritado.

    — Outro problema, delegado?

    — O secretário de Segurança Pública exige que mantenhamos a prisão do Maguinho. Até termos certeza de que não houve, por parte dele, ajuda na fuga do seu cliente.

    — Pois, então, serei também advogado da causa do soldado Maguinho. Posso ter um momento com o meu novo cliente?

    O delegado levanta-se e chama por um dos seus:

    — Sargento Palmiro, leve o doutor até a cela do soldado Maguinho.

    Lá fora, uma multidão se formara diante da entrada do prédio. Parecia que a notícia se espalhara por todas as ruas da cidade. Ao saberem que o soldado Maguinho permanecia recolhido, apesar do fugitivo ter-se entregado, uma onda de protesto cresceu entre os presentes.

    Gazumba e Acácio adiantaram-se e protestaram:

    — Justiça! Justiça!…

  • CULPA | Capítulo XVIII

    — O preso fugiu! O preso fugiu!…

    Licânia acordou com aquele tumulto que brotou da cadeia e, em pouco tempo, tomou as ruas da cidade. Quando chegou ao Mercado, virou domínio público.

    Durante o dia só se falava daquela fuga.

    — Com certeza, minha gente, teve ajuda de alguém lá de dentro da…

    — Feche esta matraca, Acácio! As autoridades, até prova em contrário, estão acima de qualquer suspeita.

    — Você é um inocente, Dederardo! Sempre acredita em tudo.

    — Prefiro ser considerado um tolo do que um precipitado, seu Acácio. Aguardemos a conclusão das investigações.

    Gazumba, com receio de que aquela discussão espantasse os clientes da sua panelada, cuidou de interceder:

    — Só sei que os nossos policiais de plantão estão sempre bem alimentados: todos são fiéis clientes da minha banca. Inclusive, meus senhores, hoje o Maguinho se serviu com gosto e ainda levou meia panela para o plantão — disse, caindo em seguida numa gaitada gostosa.

    — Lá vai o seu Zequinha de volta para casa. Na certa irá levar a novidade para a sua hóspede! — supôs o João Américo.

    — Vai chegar atrasado. A notícia aqui nestas bandas anda a cavalo; o padim Zequinha tem a passada curta — disparou o Gordinho.

    — Hoje em dia, ninguém respeita mais o próprio padrinho. Sei não! Sei não! — cutucou o Batista.

    Gordinho tentou lançar uma resposta nos peitos do Batista do Zé Aguiar, mas a gagueira lhe tomou o fôlego. E ele ficou apenas de rosto em brasa, tomado pela forte emoção:

    — E, e, e…

    & & &

    — Seu Zequinha, é verdade?

    Zequinha fecha o portão, silente, e entra, sem responder nada e em passo decidido.

    Ao sentar-se na cadeira de balanço da sala, ele pede água a Lídia.

    Maria Djanira se aproxima com o terço na mão e indaga:

    — O que vamos fazer, meu velho? Ô, Senhora Santana!

    — Em primeiro lugar, manter a calma. E, depois… rezar — diz, enquanto se levanta e segue em direção ao quarto de Creuza. No corredor, para e pergunta:

    — Ela já soube?

    — Por nós, não.

    & & &

    Na delegacia.

    — Sim, comandante. Sei, sei… mas, senhor…

    Silêncio em torno da mesa do delegado. Ele, ao telefone, nervoso, a riscar a madeira do birô com a unha do dedo indicador direito.

    — Mas… Sim, obedecerei, são ordens. Agirei. Bom dia.

    Ao desligar, leva as mãos à cabeça, suspirando:

    — Que diacho!

    — Algum problema, seu delegado?

    — O caso ganhou proporções estaduais. O secretário de Segurança Pública pede… melhor, exige…

    Ao perceber que não estava sozinho, cala-se, interrompendo o que dizia.

    Levanta-se e convoca o seu assistente:

    — Tenente, recolha o soldado Maguinho à prisão.

    — Delegado?!

    — Faça isso, são ordens expressas superiores.

    & & &

    — Prenderam o soldado Maguinho. Ele é o principal suspeito pela fuga do preso.

    Aquilo leva Licânia a uma disputa de opiniões. Parte da cidade regozijando-se pela pronta resposta da polícia. Outra parte reclamando que o pau sempre quebra no lombo dos mais fracos.

    Na casa do seu Zequinha, a história chega depressa.

    — Aonde você vai, minha filha?

    Creuza sai sem dizer nada.

    — O que vamos fazer, meu velho? Ô, Senhora Santana!

  • CULPA | Capítulo XVII

    — Bom dia, dona — o soldado Maguinho saudou-a.

    — Bom dia. O senhor quer falar com o seu Zequinha?

    — Na realidade, minha senhora, queria dar uma palavrinha com a Creuza, hóspede do casal.

    Lídia, sempre receosa com as coisas da lei, ficou nervosa e logo indagou:

    — Algum problema?

    Maguinho, amassando a boina, titubeou, enganchando-se com as palavras:

    — Não estou aqui representando a polícia. Quero ter um particular com a hóspede. Isso se for possível, claro.

    Lídia enxugou as mãos veiadas no avental e, mais serena, disse-lhe:

    — Sente-se aqui na sala, seu…

    — Pode me chamar de Maguinho, é assim que sou conhecido por todos em Licânia.

    — Muito bem, seu Maguinho. Volto já. Aceita um cafezinho?

    — Não, muito grato. Acabei de sair do plantão e tenho pressa — arrematou ansioso.

    Lídia foi ao quarto da Creuza. Bateu e, sem esperar por resposta, entrou a falar assustada:

    — Tem um guarda aí, Creuza, querendo um particular com você. Ah, meu Deus do Céu, não gosto de polícia. Tome cuidado, minha filha. Não seria melhor avisar ao patrão? Ele acabou de sair para visitar dona Adamir, no São João.

    Creuza, que rezava no pequeno oratório improvisado no canto do quarto, fez o nome do pai, passou a mão na fivela do vestido, como se querendo ajustá-la, e se levantou.

    — Vamos ver o que esse senhor quer falar comigo, Lídia. Não se preocupe. Vou apenas ouvi-lo.

    Chegando à sala, cumprimentou-o:

    — Bom dia.

    Maguinho surpreendeu-se com a altivez daquela mulher: olhos fortes, corpo esbelto, tez morena.

    — Seu homem, senhorita, é melhor do que muitos dos que estão soltos pelas ruas desta cidade. Muito melhor…

    Maguinho, de pé diante de Creuza, não conseguiu continuar sua fala: a emoção embargava-lhe a voz, os olhos marejados, os lábios trêmulos…

    — Vou pegar um copo d’água. Tenha calma.

    Ao retornar, Creuza se deparou com o soldado cabisbaixo, ainda emocionado.

    — Tome. Vai ajudar o senhor a explicar tudo com tranquilidade.

    Pouco mais, Maguinho recomeçou:

    — Tenho muito conhecimento das coisas da prisão e…

    Não conseguia articular os pensamentos. Um choro profundo, tal qual aqueles que brotam de uma pessoa aflita.

    Creuza se aproximou, puxando uma cadeira para junto do visitante. Conversou com ele num tom baixo e brando.

    Lídia, na saleta próxima, não conseguia captar nada daquele diálogo. Era como se ele se desse ao pé do ouvido. Não que Lídia tivesse algum interesse por fuxico ou coisa da vida alheia; postara-se ao lado tão somente com receio de que o samango partisse para os maus modos com Creuza. Ela nunca confiava nesses homens da lei.

    Meia hora depois, a despedida:

    — Vá em paz, senhor Maguinho. Obrigada. Eu lhe serei eternamente grata.

    Quando Lídia retornou para a sala, o soldado já havia saído. Creuza, ainda com o copo na mão, movia os lábios como se em prece silenciosa.

    — O que ele queria, Creuza? O filho da mãe lhe disse alguma ofensa? — perguntou, azogada.

    — Em todo lugar, amiga, existe gente boa. O Maguinho é um homem direito.

    E Creuza retornou para o seu quarto. Lá se ajoelhou diante da imagem de Sant’Anna, orando com mais fervor pelo destino que os esperava.

  • CULPA | Capítulo XVI

    Por Clauder Arcanjo

    A manhã se apresenta em passos lentos. Sol tímido e passaredo em pios baixos, coisa incomum.

    Na cadeia, os dois homens (um preso e outro na parte externa da cela) se olham, mas parece que não se veem. A vista perdida em lonjuras, em coisas que só o pensamento capta.

    Com pouco a chegada dos demais guardas à delegacia.

    — Onde está o Maguinho?

    — Será que saiu antes da hora? Sempre suspeitei que ele anda de chamego para cima da cabocla Adalgisa! Não sabe que aquela mulher é enrabichada com o Abelardão! Mulher assim chama o coveiro antes da hora.

    E riram alto, coçando os bagos e sungando os cintos com os revólveres 38.

    — Maguinho?!… Houve alguma coisa, homem de Deus?

    Nenhuma resposta.

    — Está passando mal? Levante-se desse chão. Rapazes, venham até aqui. Na cela dos fundos.

    Três guardas em pé e um sentado em frente ao prisioneiro. Estes dois extenuados, marcados pelo sereno da noite, abúlicos.

    — Vamos, Maguinho! Tá na hora de você ir para casa, o seu plantão já encerrou.

    Os três guardas recém-chegados pegaram-no pelos braços e cuidaram de arrastá-lo para a parte de fora da carceragem. Sentaram-no na cadeira do delegado, a mais confortável, e lhe ofereceram água.

    — Beba, homem!

    Não quis.

    — O que aquele filho de uma égua fez com você? Aposto que encheu a sua paciência, enfiando no seu juízo as culpas dele… Espere aí que vou acertar logo essas contas! Nada que uma boa surra com o meu cacete de jucá não possa resolver! — vociferou o cabo Jacinto Gamão.

    — Não mexa com o meu amigo! — disparou Maguinho, arregalando os olhos, saindo depressa daquele estado de letargia.

    — E desde quando você, Maguinho, é amigo de assassino? — devolveu Jacinto Gamão, incomodado.

    — Aquele homem, pessoal, é melhor do que todos nós juntos. Mas muito melhor — reforçou Maguinho, já de pé diante dos samangos.

    Nesse momento entra o delegado.

    — O que está havendo? Isto aqui está parecendo mais um boteco de feira livre do que um distrito policial! — esbravejou, enquanto largava seu corpanzil sobre a cadeira antes ocupada por Maguinho.

    — E o senhor, cabo Asdrúbal Santiago, já era para estar no seu descanso.

    Os policiais encerraram a discussão. Sabiam que o pavio do delegado estava mais para espoleta: aquilo poderia desaguar em punição para os quatro. A corda sempre arrebenta no lombo deles: registro de má conduta, ou coisa que o valha, em seus apontamentos funcionais.

    Asdrúbal Santiago, o Maguinho, pediu permissão para retornar para as celas:

    — Acabei me esquecendo de uma coisa, delegado. Volto já!

    Logo depois Maguinho retornava mais animado. Despediu-se de todos sem mirar nenhum deles.

    — Bom dia. E, cabo Jacinto, repare bem no que eu lhe disse.

    Jacinto Gamão quis reagir, mas Severino Pontão, o mais ponderado, fez-lhe um aceno para que ele não respondesse à provocação.

    Maguinho ganhou a rua, já em alvoroço. Não seguiu para a bodega do Gazumba, como era de costume, mas em direção à Praça do Poeta.

    Ninguém na delegacia entendeu aquela sua mudança de rumo, porém com o tempo tudo se explicaria.

  • CULPA | Capítulo XV

    Noite fria. Longa e inquieta.

    Cabeça em tumulto, entre o sono e a vigília:

    — Não, Creuza. Melhor não.

    A cidade dorme. Acordados, somente os bêbados. Mas esses, em Licânia, parece que nunca dormem.

    — Creuza, sou… É perigoso, Creuza. Perigoso, ouviu?

    O soldado de plantão, incomodado com o vozerio, resolve conferir de qual preso procedia. Devagar, caminhou até o conjunto das celas, ao fundo do terreno. Coisa de poucos metros, entre a sala do plantão e o presídio em si.

    — Não!

    O grito forte reteve-lhe os passos.

    — Que desespero, meu Deus! — disse, enquanto, mecanicamente, benzia-se. Em nome do Pai.

    Acende a lanterna, e o facho de luz mancha o chão de amarelo.

    Com pouco, outro lamento. Agora de bem perto:

    — Fuja, fuja de mim. Creuza, fuja. Eu não sirvo… sou…

    As outras celas dormiam, era da mais ao fundo de onde vinham as vozes. Daquele que seria julgado por duplo homicídio. Segundo relato que escutara, do primeiro fora inocentado por legítima defesa. Júri popular. Depois, novo crime e a fuga. Agora, novo julgamento. Tudo marcado para o final do mês. Com certeza, toda a cidade se envolveria.

    — Fuja… fuja!

    Aquilo quase fez com que o samango desse as costas, correndo de volta para a delegacia.

    — Durma, rapaz! — ordena o homem da lei, reunindo coragem para soltar a fala.

    A ordem e o feixe da lanterna despertam o preso. Senta-se, cabisbaixo, os cabelos molhados pelo suor do pesadelo. Levanta o olhar em direção ao guarda. Olhos esbugalhados, como se surgindo de uma luta cruel.

    Sem saber o que dizer a mais, o soldado reforça:

    — Durma, rapaz!

    Ele se encosta na grade, homem forte, corpo rígido. E, segurando-as, declara:

    — Melhor, não. A noite sempre a consumir a minha paz. Se é que tenho paz! Mal entro no sono e já surge um pesadelo dos diabos: machucando os meus miolos, afundando todo o meu juízo num precipício, cenas terríveis de enlouquecer qualquer filho de Deus.

    O guarda, de baixa estatura e magricela, recua, quase sem perceber.

    Então o preso deixa o corpanzil escorregar e, quando sentado, cai num choro convulso.

    — Durma, rapaz!

    Aquele bordão é tudo que o homem da lei consegue recomendar.

    — Não, não… A noite tem sido a minha pior condenação. Minha pior condenação, seu guarda! — reafirma, entre lágrimas.

    O guarda também se senta no chão. Em seguida, desliga a lanterna; e o manto do silêncio, numa quietude estranha, apenas é rasgado de vez em quando pelo choro discreto daqueles dois.

  • Culpa: Capítulo XIV

    — Cabo, há quanto tempo que ela entrou para falar com o preso?

    — Delegado, faz meia hora.

    O delegado arrumou o revólver na cartucheira e deu uma volta em torno da mesa.

    — Vá e veja se colhe alguma pista para… Seja discreto, não vá se aproximando com aquelas suas botinadas de acordar quarteirão!

    O cabo Jacinto Gamão amassou os bagos para controlar a fúria que lhe assomava ao juízo, ergueu a calça grossa e, antes que pudesse responder ao “doutorzinho da capital”, dirigiu-se às celas. Estas ficavam numa construção nos fundos do terreno.

    Meia hora depois o cabo Jacinto retornou. Sem dizer nada, sentou-se ao canto e mergulhou num silêncio longo.

    O delegado levantou-se do birô e foi ao seu encontro:

    — E aí, o que colheu?

    — Do lugar onde me postei pude ouvir…

    — Pôde ouvir… Sim, continue, homem de Deus. Você ouviu o quê?

    Cabo Jacinto retirou o lenço que sempre trazia no bolso traseiro da calça, enxugou os olhos agateados e soprou baixinho, quase como se em confissão:

    — Pude ouvir seu choro.

    — O choro de quem, cabo? Dele ou dela? Seja claro no seu depoimento.

    Aquela palavra “depoimento” fez com que Jacinto perdesse o rumo da prosa: a voz ganhou um travo de raiva, quando ele disparou:

    — Se é depoimento, senhor delegado, então está aberta a coleta de provas testemunhais?

    O delegado inchou as veias do pescoço e se dirigiu até onde se encontrava o cabo. Este não recuou um centímetro, pondo o olhar na direção da arma do delegado, enquanto afastava um pouco os braços do corpo. Quem se aproximasse, julgava que estaria prestes a um duelo.

    Nesse exato momento o sargento Palmiro chegou; e, ao perceber o clima tenso, cuidou de serenar os ânimos:

    — Passei na bodega do Gazumba e trouxe uma panelada bem fresquinha. Cabo Jacinto, já pode ir para casa, amigo! Seu plantão terminou. Se quiser, cabo, leve a sua porção para se servir com sua senhora.

    — Eu lá sou homem de…

    — Cabo! Eu já lhe disse que pode ir-se embora! E não diga mais nada. Expediente encerrado. Agora é comigo. Vá, vá-se embora! — Palmiro falava, empurrando Jacinto para a porta da rua.

    & & &

    Pouco depois o delegado recobrou o controle dos nervos, passando a falar em voz alta:

    — Um folgado. Isso sim, sargento, é o que ele é. No mínimo poderia enquadrá-lo em desacato a autoridade. Sou ou não sou o delegado aqui?! Me diga, Palmiro, sou ou não?

    O sargento tirou um cigarro da carteira, acendeu e pôs-se a fumá-lo em longos tragos. Silenciosamente.

    — Folgado, um folgado. Isso sim é o que ele é. Onde já se viu… sei não.

    Como o sargento não lhe contestava, muito menos concordava com seu esbravejar, o delegado foi serenando, serenando… Quando resolveu se sentar à mesa da delegacia, lembrou-se da visita de Creuza ao preso por duplo homicídio:

    — Sargento, faz um bom tempo que a senhorita Creuza entrou para falar com o indigitado. Coisa de quase uma hora.

    O delegado levantou-se, ajustou a cartucheira no cinto e, pensativo, deu uma outra volta em torno da mesa.

    Pôs a mão direita sobre o ombro de Palmiro, instruindo-o:

    — Que tal, sargento, você ir até junto à cela do prisioneiro e recolher alguma pista? Você é um agente discretíssimo e saberá como se aproximar sem que os dois percebam.

    Uma hora se passou e nada do sargento retornar. O delegado já roera todos os cantos de unhas e, sem mais se aguentar, resolveu ele mesmo se dirigir à cela do homem que, segundo o processo, assassinara pai e filho.

    Tudo mergulhado numa quietude estranha.

    Apurou os ouvidos e pôde ouvir… um choro triplo. “Choro de quem, meu Deus?”; pensou.

    Ao se aproximar, a constatação: lágrimas do preso, da visitante Creuza e do sargento Palmiro. Este último, o mais desconsolado:

    — Ninguém é forte o bastante para enfrentar isso tudo sozinho. Precisaremos um do outro.

    O delegado catou o lenço… mas percebeu que esquecera na outra calça.

    — A panelada está esfriando, sargento.

  • CULPA | Capítulo XIII

    — Estou recuperada e pronta para seguir em frente — disparei mal entrei na copa.

    À mesa, seu Zequinha e dona Maria, ladeados por Lídia, serviam-se do café da manhã.

    — Bom dia! — saudou-me o dono da casa, apontando-me uma cadeira.

    — Minhas desculpas pelos maus modos, mas é que… — tentei me justificar.

    — Lídia, por favor, sirva a nossa amiga. Ela deve se alimentar muito bem para enfrentar o que a espera. Pelo jeito que aqui entrou, acho que o que a ofertamos não lhe seja suficiente — disse dona Maria, enquanto me olhava com um modo acolhedor, apesar da ligeira ironia.

    Realmente, ao me sentar, tive um desjejum daqueles: tapioca, cuscuz, queijo, leite quente, ovos fritos, suco e um café fresquinho. Comi e repeti.

    Ao final notei que os presentes me olhavam como se satisfeitos com o meu renovado apetite.

    Em seguida seu Zequinha se levantou, convidando-me para uma conversa na sala.

    De início, encabulada, somente ouvi a voz daquele homem manso, inteligente e sempre preocupado em tornar os meus dramas menos sofridos.

    De vez em quando interrompia e me indagava:

    — Isso se você concordar com a minha percepção, Creuza?

    Eu levantava a face, levando os meus olhos em direção aos dele:

    — Claro, concordo.

    Meia hora depois me perguntou:

    — Seu amor por ele é capaz de enfrentar a tudo e a todos?

    Calei-me, como se a minha resposta ficasse embargada pela emoção.

    — Não ouviu, Creuza? Quer que eu lhe repita a pergunta?

    — Não, não é preciso.

    — Então…

    — Sim, sou capaz de enfrentar a tudo e a todos.

    Quando essa frase escapou dos meus lábios, ele me abraçou, dizendo-me paternalmente:

    — Nunca tive nenhuma dúvida de que essa seria a sua escolha, menina!

    Ri um pouco, entre os olhos marejados, daquela sua saudação. Eu, menina?!

    Abraçamo-nos, enquanto ele chamou por Lídia:

    — Lídia, venha cá, por favor. Quero que peça ao Marquinhos para conduzir Creuza até… ao escritório do advogado Mateus. E que ele fique à sua disposição o dia inteiro. Ela terá muitas coisas a acertar ao longo do dia de hoje.

    Lídia chegou e me conduziu ao portão. O motorista Marquinhos já me aguardava.

    Ao entrar no carro, percebi que os três — Zequinha, Maria e Lídia — esperavam que o carro partisse. Ao me virar em direção à casa, tive a sensação de que esboçavam um sorriso.

    & & &

    A conversa com o advogado transcorreu de forma proveitosa e decidida. Mateus tudo anotava, como se minhas declarações formassem um tapete onde todo o emaranhado dos últimos dias se revelasse uma peça perfeita e coerente.

    Antes que eu saísse, Mateus me confidenciou:

    — Esta causa se reveste de muita importância para mim, Creuza. Primeiro, porque é um pedido dos meus queridos avós paternos, pelos quais tenho muita estima, você sabe. Segundo, por conta do desafio profissional que ela representa. E terceiro… Bom, eu gosto de defender as causas humanitárias, em especial aquelas que me relembram os compromissos que jurei ao abraçar esta profissão.

    — Não terei como pagá-lo, seu Mateus. Como ficaremos?

    — Digamos que o pagamento me chegará de outra forma!

    E riu, exibindo um sorriso com a doçura do afeto.

    & & &

    Antes de seguir para o encontro final, pedi a Marquinhos que passasse em casa. Lá, coloquei batom, borrifei um pouco de lavanda no colo e, em seguida, fiz uma oração à Maria Santíssima:

    — Misericordiosa, precisarei da sua divina proteção. Vou enfrentar uma batalha nesta reconstrução da minha vida, assim como a do meu amado. Escolhida por Deus, conduza os nossos passos. Amém.

    — Creuza?! Posso entrar? Sou eu: Lídia.

    Abri a porta, e Lídia logo percebeu que eu estava pronta para o encontro que selaria o meu futuro.

    “… ninguém é tão forte que possa enfrentar sozinho o mundo. Todos nós precisamos uns dos outros…”

  • CULPA | CAPÍTULO XII

    Por Clauder Arcanjo

    O advogado Mateus se apresentou, enquanto seu Zequinha pedia que me sentasse:

    — Creuza, é importante que haja uma relação de confiança entre vocês. Estou certo, doutor Mateus?

    Mateus esboçou um sorriso; pressenti que, entre eles, havia um carinho mútuo.

    — Vou deixar os dois à vontade. Se precisarem de algo, podem chamar por Lídia. Terei que sair, mas voltarei logo.

    — Nem sei como lhe agradecer, seu…

    — Não tem de quê. Esta casa é sua, e esta causa agora é nossa — Zequinha mal terminou de falar, e já ria do trocadilho inesperado.

    Foi saindo, deixando-me a sós com o advogado. De olhar firme, cabelos escuros e rosto bem delineado, Mateus abriu a pasta, colocou um bloco e uma caneta sobre a mesa ao lado, indagando-me:

    — O que pode me dizer, senhora Creuza?

    Baixei a vista, sentindo-me tonta, como se o fato de falar mais uma vez sobre tudo que passei me torturasse. Um silêncio se interpôs entre mim e o advogado.

    Ele se levantou e se aproximou de mim, perguntando-me:

    — A senhora está bem? Aceita um pouco de água?

    Pálida, pedi licença e me retirei; nada consegui declarar.

    & & &

    Entrei no quarto e me joguei na cama. Pensamentos, imagens, visões… coisas embaralhadas. Tentei me levantar, porém não consegui. Trêmulas, as pernas não me atenderam. De repente, num espasmo estranho, perdi os sentidos.

    “Creuza… Creuza?!… Minha filha… o que houve… Está…”

    & & &

    Noite escura, uma voz, informando-me, num compasso lento:

    — A sua vida não permitirá que se submeta às regras que não saiam de dentro de você.

    Eu buscava de onde vinha tal fala. Abria ainda mais os olhos, nada. A escuridão era forte e ampla.

    Pouco depois, ouvi. Agora em um tom macio, quase maternal:

    — Não criei você, minha pequena, para ser indecisa. Vá em frente, o mundo precisa daqueles e daquelas que escolhem e constroem o seu próprio caminhar.

    Enrolei-me com minhas próprias pernas, como se, imitando a posição fetal, aquilo menos me importunasse.

    Senti alguém caminhar rápido na minha direção. Toc… toc… toc… Sobre um assoalho de madeira. De repente, parou. Percebi-lhe a respiração ofegante.

    — O pior cansaço, amiga, é aquele que vem da espera. Ficar parada lhe fadigará ainda mais, isso ninguém suporta por muito tempo.

    A carne ardia-me, numa febre sem causa definida. Os músculos extenuados, os ossos doloridos, a mente confusa.

    Quis gritar, chamar por alguém, pedir socorro… Não pude, aquele estado sufocava-me a voz, e eu…

    & & &

    “Creuza… filha… Está… bem?…”

    Ao abrir os olhos, seu Zequinha, dona Maria Djanira e Lídia junto à minha cama.

    Um homem de branco preenchia um papel. Em seguida, anunciou:

    — Passei esse remédio aqui. Um comprimido após o café da manhã, outro no almoço e um após o jantar. Sigam essa prescrição por uma semana. Qualquer alteração no quadro, avisem-me.

    — E o que ela teve, doutor Artur? — quis saber Lídia.

    O médico guardou o estetoscópio dentro da valise, olhando-me, como se eu tivesse a melhor resposta.

    — Digamos que… Bom, o ideal é aguardar um pouco mais. O seu estado requer muito repouso, uma boa alimentação… E a medicação ajudará a melhorar o seu quadro clínico de um modo geral. E, uma última coisa: nada de emoções fortes, mantenham-na descansando por, no mínimo, uns bons três dias.

    Levantou-se, despediu-se dos presentes e, antes de se retirar, dirigiu-se a mim:

    — Outra coisa, minha senhora, ninguém é tão forte que possa enfrentar sozinho o mundo. Todos nós precisamos uns dos outros. Você, isso me deixa tranquilo, será bem cuidada. Nesta casa, eu sei, nada lhe faltará. Aqui o amor sempre nos foi a melhor das terapias, um infalível tratamento. Sua bênção, vovô! Bênção, vovó Maria! Um beijo grande, querida Lídia. Boa noite.

    “Vovô? Vovó?… Mas…”

    Quando fiz menção de dizer algo, Lídia já me deitava, afagando-me os cabelos suados pelos terrores que me haviam importunado.

    — E você, queridinha, cuide de se aquietar! Ouviu o que doutor Artur falou, ouviu? Estarei aqui ao lado. Antes, vou lhe preparar uma sopinha, quase não comeu hoje.

    Na janela, o clarão do luar de julho. Já era noite, eu perdera totalmente a noção do tempo.

    “… ninguém é tão forte que possa enfrentar sozinho o mundo. Todos nós precisamos uns dos outros…”