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  • Culpa – Capítulo XXV

    Por Clauder Arcanjo

    Ninguém saía, nem entrava. O silêncio era tudo o que vazava daquele quarto em que se encontravam Seu Zequinha e Creuza.

    Tempos depois, Creuza saiu. Silente, mas decidida.

    Dona Maria Djanira, que rezava seu terço na cadeira de balanço na sala, abençoou-a:

    — Vá com Deus, minha filha. Me dê um abraço. Tudo se resolverá.

    Creuza se aproximou. Abraçou-a, beijou-lhe a mão, e se despediu:

    — Preciso agir rápido. Grata por tudo.

    Deixou a casa e se dirigiu na direção do rio.

    & & &

    — O homem se entregou. Voluntariamente.

    A conversa corria solta na pedra do Mercado. Em meio às pingas, o comentário era um só: ele entrara na cadeia ladeado apenas por Creuza.

    — Os meganhas até se assustaram. Nunca tinham visto uma mulher de tamanha coragem.

    — Dizem que ela comunicou aos “homens da lei” que se machucassem ele, veriam o que era bom para tosse.

    No meio desse burburinho, padre Araquento, que comparecera ao Mercado para comprar milho verde, reclamou:

    — Se trabalhassem o quanto fuxicam, Licânia seria uma…

    — … grande merda! — rechaçou um dos presentes.

    — Cambada de pinguços desocupados! O Inferno os espera.

    — E dizem que o porteiro de lá será um padre oriundo destas bandas.

    Antes que o pároco respondesse, o Gazumba cuidou de interceder:

    — Minha gente! Vamos nos concentrar na questão anterior. O homem terá ou não um julgamento justo?

    Padre Araquento, resmungando, se retirou, sem comprar aquilo a que viera.

    E a discussão tomou ares de intensa disputa. Uns, jurando que a lei prevaleceria. Outros, advogando que a justiça era surda e cega para as causas dos desvalidos.

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    Semana seguinte, a notícia galopou pelas ruas:

    — O julgamento foi marcado. O júri popular decidirá pelo futuro do “criminoso”.

    — Que criminoso? — protestou Zequinha ao ouvir tal comentário.

    — Bom dia, compadre. Que bom vê-lo recuperado.

    — Que criminoso? Eu gostaria de saber. Ou vocês não sabem que ninguém pode ser considerado culpado antes de um julgamento justo? Volto a insistir: que criminoso?

    Ninguém respondeu. A presença de Zequinha, refeito e ainda mais íntegro, calara a boca de todos.

    Com pouco Zequinha se retirou, não sem antes anunciar:

    — Pode ser que haja nesta cidade homem tão justo quanto ele, não mais. E saibam todos: eu o defenderei como se fosse um filho meu.

    Deu as costas aos presentes e ganhou o rumo de casa.

    Num piscar de olhos, a novidade correu pelas calçadas:

    — Seu Zequinha fez do julgamento um caso pessoal.

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    — Meu velho, você tem certeza desta sua decisão?

    — Maria, minha filha, se os homens sérios não cuidam de sua cidade, os canalhas vêm e…

    Maria Djanira sabia quando o seu esposo fechava questão. Nunca o vira tão decidido. E como se orgulhava daquela hombridade!

    Creuza entrou, saudou dona Maria Djanira e, inquieta, disse:

    — Tenho tanto medo, tanto medo!

    Zequinha e Djanira a abraçaram afetuosamente.

    Aquele abraço traduzia o quanto a sua causa seria defendida pelo casal.

  • Culpa: Capítulo XXIV

    Por Clauder Arcanjo

    — Seu Zequinha, a casa estava muito triste sem o senhor!

    — Grato, querida Lídia. De coração.

    — Agora, Lídia, o meu marido precisa descansar. Os médicos pediram repouso absoluto nos próximos cinco dias — completou Maria Djanira. Em seguida solicitou ao motorista Marquinhos que conduzisse o seu esposo na cadeira de rodas até o quarto de casal.

    Lá chegando, antes de se deitar, Zequinha disse ao motorista que precisava se encontrar com a Creuza.

    — E quanto à ordem de dona Maria? O senhor sabe…

    Antes de concluir, o recém-chegado interrompeu-o:

    — Só conseguirei repousar, acredite, depois de vê-la. Saia de forma discreta e traga-me Creuza. Sem falta!

    Segurou forte no braço do Marquinhos, como se a demonstrar a importância daquela ordem.

    — Está bem, mas repouse. Logo eu estarei de volta.

    — E acompanhado!

    — Sim, com a senhorita Creuza — declarou Marquinhos, para na sequência se retirar da residência pela porta dos fundos.

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    A pequena casa se fazia iluminada por uma lâmpada incandescente, dependurada no centro do ambiente. Uma luz mortiça dava ao recinto um tom de tristeza, numa penumbra que gerava um quê fúnebre.

    — Sabia que a encontraria aqui!

    — Boa noite, seu Marquinhos. Não me diga que o senhor…

    Marquinhos sentou-se em um dos tamboretes junto à mesa de centro, expondo a que veio:

    — O homem, amiga, é forte. Resistiu à agressão covarde por parte daquele meganha. E, outra coisa: ele já está em casa e me pediu para levá-la até lá, sem perda de tempo.

    Um riso largo enxugou as lágrimas de Creuza, e sua face ganhou um brilho incomum. Tal alegria trouxera iluminação para aquele casebre.

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    Ao chegarem à casa, Marquinhos perguntou se não seria melhor evitar um encontro com dona Maria, guardiã do esposo que vira a morte de tão perto no leito do hospital.

    — Não, seu Marquinhos, nesta residência, acredite, as coisas devem ser feitas com respeito e transparência.

    Ao subirem os primeiros degraus, Marquinhos e Creuza foram recebidos por Lídia:

    — A patroa me disse para não deixar ninguém incomodar, e eu cumprirei com as ordens dela.

    Creuza baixou a face, entendendo os motivos da servidora. Marquinhos se antecipou e pediu que Lídia fosse até o quarto para avisar quem havia chegado.

    — Isso vai sobrar para mim! Vocês não imaginam como dona Maria é zelosa.

    Marquinhos pôs a mão direita sobre o ombro de Creuza e, de olhos postos em Lídia, sinalizou que estavam aguardando.

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    Creuza entrou no quarto. Zequinha, de cabeça enfaixada, parecia dormir. Ela fez o sinal da cruz, agradecendo aos santos pela vida do amigo. Silenciosamente, virou-se para se retirar, quando ouviu:

    — Que bom que você veio, minha querida!

    Creuza, com a emoção até então represada, viu-se em choro convulso.

    — Seu Zequinha, o que fizeram com o senhor? Culpa minha!

    — Não, não. Aproxime-se e me dê um abraço.

    Creuza ajoelhou-se junto à cabeceira, e beijou as mãos do amigo.

    — Eu rezei tanto, tanto, que…

    — Puxe uma cadeira; tenho pressa em lhe falar.

    Creuza obedeceu. Mal ela sentou-se, ficaram a dialogar baixinho. Na verdade, Zequinha falava e Creuza ouvia atentamente.

    Lá fora o passaredo inquieto nas copas dos benjamins da Praça do Poeta.

  • Culpa | Capítulo XXIII

    Por Clauder Arcanjo

    Os sinos da Matriz badalaram, e Licânia amanheceu invadida pelo revoar festivo do passaredo.

    — Seu Zequinha saiu do coma! Seu Zequinha saiu do coma!

    A notícia, a ecoar entre o bulício das ruas, rivalizava com o trinado dos pássaros.

    — Glória a Vós, Senhor!

    — Jesus é grande.

    — E maior ainda a Sua misericórdia.

    — Viva Senhora Sant’Anna!

    — Viva São José!

    — Viva!…

    A frente do hospital passou a reunir um grupo ainda maior do que nos dias anteriores. Feirantes, agricultores, pequenos comerciantes, mendigos… Todos tomados pela alegria devido à boa-nova.

    Licânia parecia em dia de comício.

    — Seu Zequinha, Seu Zequinha! — gritavam alguns.

    — “Segura na mão de Deus, e vai…” — cantavam, em prece, as Filhas de Maria.

    O padre Araquento já puxara vários terços; no entanto, com a informação de que o quadro clínico do paciente melhorava a cada boletim médico, a turba se abraçava, cantava e, com pouco mais, ninguém seguia os mistérios. Logo depois uma garrafa de pinga corria de mão em mão.

    Foram enterrados todos os arroubos de vingança e, desde então, tudo levava a tinta da felicidade.

    Companheiro Acácio, percebendo que o foco da multidão mudara do protesto para o êxtase, resolveu discursar:

    — Licanienses, povo bravio das ribeiras do Acaraú, vamos aproveitar a oportunidade para nos rebelar contra a violência dos poderes constituídos. Temos que iniciar uma campanha de desarmamento em toda a nossa urbe, e…

    — Cale a boca, Acácio! — reclamou o cabo Jacinto.

    — Calma, calma! — resolveu ponderar Acácio, de olho no cacete de jucá que o cabo portava na cintura.

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    A porta principal se abriu.

    — Silêncio! — gritou Gazumba, já com a voz engrolada pela força da pinga.

    Doutor Sávio solicitou um minuto de atenção aos presentes, afirmando em seguida:

    — Estou aqui em nome de toda a equipe médica do hospital para avisá-los quanto ao quadro do meu pai. A situação…

    — Seu Zequinha, Seu Zequinha!…

    — Silêncio! Ordem, ordem! — esbravejou o cabo Jacinto Gamão.

    — A situação… está estável, e o paciente se encontra lúcido. Deve ser liberado para a continuidade do tratamento no seu domicílio no final da tarde de hoje.

    — Seu Zequinha, Seu Zequinha!…

    — Glória a Vós, Senhor!

    — Jesus é grande.

    — E maior ainda a Sua misericórdia.

    — Viva Senhora Sant’Anna!

    — Viva São José!

    — Viva!…

    Nesse momento a emoção trouxe lágrimas de contentamento ao médico, sempre tão acostumado em manter o controle nessas situações:

    — Minha mãe me pediu que eu agradecesse pelas orações de todos. Ela me disse que a medicina fez uma parte, mas que os doze apóstolos do Céu…

    A voz falhou.

    — Muito obrigado, de coração — concluiu.

    O festejo voltou a imperar na frente do hospital. Licânia mergulhou na festa.

    — Fica sempre um pouco de perfume/ nas mãos que oferecem rosas/ nas mãos que sabem ser generosas…

    Os sinos da Matriz repicaram, e a noite demorou a chegar.

  • Culpa | Capítulo XXII

    Por todos os cantos, poeira e silêncio. Licânia, coberta com véu cinza, parecia uma cidade estranha. A pasmaceira imperando, movimento apenas dentro do hospital, em socorro do paciente que ali dera entrada. Além dos plantonistas, acorreram os parentes médicos do cidadão vítima de mais um caso de violência policial.

    Momentos depois, como se lentamente a despertar, a província acordou e uma legião se concentrou diante do hospital. De início, calados; em seguida, em orações.

    Nunca se viu tanta gente reunida em Licânia.

    — Foram mexer logo com seu Zequinha!

    — Esses samangos que vieram de fora são uns filhos de uma p…

    O padre Araquento e as Filhas de Maria elevaram a voz no primeiro mistério do terço, a fim de tornarem o palavrão inaudível.

    Na parte mais ao fundo, os amigos da pinga, lúcidos como nunca, misturavam momentos de raiva com arroubos de vingança.

    Companheiro Acácio, percebendo que a energia da multidão é algo que caminha fácil para o protesto sem freios, resolveu comandar o movimento:

    — Tal qual Gandhi na Índia, caros licanienses, vamos promover aqui o princípio de Satyagraha, ou seja, a resistência à tirania por meio da desobediência civil massiva não violenta.

    — Vá com a sua Índia para a baixa da égua, Acácio. Esses elementos daqui só entenderão a linguagem do cacete de jucá. Bem nos lombos dessa mundiça — devolveu o cabo Jacinto Gamão.

    — Calma, seu Jacinto! Lembre-se de que o senhor representa aqui a autoridade constituída. Logo, contenha-se! — contrapôs Acácio.

    — Contenha-se um caralho! Eu, diante de todos, renuncio à minha condição de membro desta bosta de guarnição e, de agora em diante, serei apenas um mero cidadão, como qualquer um dos aqui presentes — devolveu. Tirou a farda, ficando de camiseta e ceroulas. — Só não abro mão do meu cacete!

    — Ai, ui! — gritaram, em pânico, as Filhas de Maria.

    Um dos presentes correu a uma casa vizinha, trazendo de lá calça, camisa e chinelos para o Jacinto Gamão.

    Em seguida, entre urros e gritos de guerra, tocaram fogo no fardamento do ex-cabo.

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    Doutor Sávio sai do hospital, levanta a mão e, emocionado, pede um minuto de silêncio:

    — Amigos e amigas, estou aqui para passar, a pedido da direção do hospital, o quadro do meu pai.

    — Silêncio! — gritou Gazumba, o mais barulhento até então.

    — Houve uma contusão cerebral forte na região frontal da cabeça. Devido à idade, o quadro é grave. A evolução, caso se dê, será lenta, e…

    — Se ele morrer, eu me mato — esbravejou Pelô, um dos mendigos de Licânia. Pelô sempre estivera sob a proteção do bom Zequinha, quer das pedradas e da troça dos meninotes de rua, quer do achincalhe dos malandros da Pedra do Mercado.

    Nesse instante o anunciante do quadro foi tomado pela emoção: a voz embargou, as lágrimas lhe invadiram os olhos, e a cabeça se abaixou pelo tormento.

    Uma das viúvas lhe repassou um lenço branco de cambraia. Enxutos os olhos, doutor Sávio recomeçou:

    — A medicina já fez sua parte. Agora… precisamos da ajuda divina.

    O silêncio voltou pesado, instalando-se como uma pedra sobre os ombros de todos.

    Padre Araquento e as pias Filhas de Maria entoaram cânticos, como se conclamassem anjos e arcanjos:

    — Fica sempre um pouco de perfume/ nas mãos que oferecem rosas/ nas mãos que sabem ser generosas…

    O sino da Matriz badalou inesperadamente, e a tarde se fez noite.

  • CULPA: Capítulo XX

    O movimento diante da delegacia aumentava, chegando gente de todos os lugares: Sapó, Mutambeiras, Baixa Fria, Serrota, Estreito, Santa Rita. Sem esquecer que até as damas do Caneco Amassado, único cabaré de Licânia, juntaram-se ao protesto contra a prisão do cabo Maguinho.

    Creuza, com franca aprovação do dono da casa, ia e voltava levando café, sucos e caldos para manter a força dos presentes. Gazumba supria o movimento com doses de cachaça da serra com tira-gosto de tripa assada.

    Companheiro Acácio, sem se dar conta, fora nomeado como porta-voz do levante. Depois da segunda pinga, o latim brotava de seus lábios, tornando o seu discurso pleno de uma sapiência divinal. Isso segundo as palavras do João Américo, confesso admirador das epístolas de Paulo.

    O delegado fez uma ligação para o secretário de segurança pública narrando os últimos fatos.

    — Mas… Como?! Isso não, nunca! Não obedecerei. E outra coisa, senhor secretário, saiba que renuncio ao cargo e me junto agora mesmo aos “rebeldes”, como o senhor mesmo os denominou.

    Ao bater o telefone, arrancou o distintivo do peito, jogando-o sobre a mesa.

    — Mais problema? — inquiriu o cabo Jacinto Gamão.

    — De certa forma sim. O secretário exige que eu disperse o movimento com o uso extremo da força.

    — E…

    — E disse-lhe que estou demissionário e, ainda mais, juntando-me, como mais um cidadão, ao movimento de libertação do Maguinho.

    O cabo, de início desorientado, assuntou o bestunto, assanhando os cabelos ralos e pigarreando várias vezes. O estômago queimava em fogo alto. Em seguida suspirou e rápido retirou o revólver do coldre, depositando-o próximo ao distintivo.

    — Vou também! O meu cassetete de jucá vai junto.

    — Sugiro que fique. Alguém precisa cuidar dos detentos, assim como dar notícias às autoridades de como anda o desenrolar das coisas — argumentou o ex-delegado.

    — Vou suprir a cela dos presos com um bom estoque de água e de comida. Quanto ao secretário, senhor, que ele vá para a p…

    — Calma, Jacinto! Resolveremos tudo na paz. Senhora Sant’Anna estará conosco.

    Quando os dois desceram os degraus que separavam o prédio público da multidão, houve um silêncio. Ao perceberem que se juntavam ao protesto, uma salva de palmas anunciou à província que tal causa seria histórica.

    Gordinho trouxe um tamborete, que serviu de palanque para Acácio, o Demóstenes das ribeiras do Acaraú. Seu discurso insuflou fúria nos presentes, quando propagou:

    — Filhos de terra bravia, aqui habita um povo valoroso. Alea jacta est! Licânia não recua diante da injustiça. Se for para viver com ela, caríssimos e caríssimas conterrâneas, é melhor cair nos braços da Indesejada das Gentes.

    Gordinho, boquiaberto, perguntou-lhe:

    — E essa dona, mora onde?

    Antes que caísse do tamborete, Acácio dispara, encerrando o improviso:

    — Salve, Licânia!… Palmas para a justiça! — continuou Acácio.

    Enquanto isso, Maguinho orava a todos os santos, receoso das consequências daquela rebelião popular.

    Na esquina da Matriz, o cego Julião das Queimadas dizia em versos toscos:

    — Licânia, terra de bom caminho,

    Se levanta diante do desatino.

    Reúne forças desconhecidas:

    Cabras, doutores, polícias.

    E o pau pode cantar, amigo,

    Eu não tenho nada com isso.

  • Culpa: Capítulo XIX

    Por Clauder Arcanjo

    Creuza entrou com passo lento. Sentou-se perto do fogão frio, pois a casa estivera fechada por muito tempo. Antes de acender o fogo, resolveu orar. A cabeça confusa, as lembranças a se meterem por entre as orações. Como não conseguia avançar sequer no pai-nosso, abriu os olhos e decidiu interromper as preces. Sua mãe lhe ensinara que Deus conversa melhor com a gente em silêncio.

    — Creuza? Ó, Santa Maria!…

    — Meu Deus!

    Ao virar-se, deu com a presença do amado.

    Abraçaram-se longamente. Os dois em lágrimas.

    — Creuza, minha filha, como você sabia que eu estaria aqui?

    Ela passa a mão pelos olhos lacrimejados, pigarreia e diz:

    — Eu suspeitei de que, antes de você ganhar o mundo novamente, revisitaria o nosso… cantinho.

    Percebendo que algo a afligia, perguntou:

    — Você me parece angustiada. Alguma novidade, Creuza?

    Ela afastou-se em direção à porta de entrada, como se ganhasse tempo. Virou-se para ele, segurou firme em suas mãos e, num jorro só, com receio de lhe faltar coragem, anunciou:

    — O soldado Maguinho, meu filho, foi preso por ser o principal suspeito pela sua fuga.

    & & &

    Creuza voltou à casa do seu Zequinha na madrugada seguinte. A cidade dormia quando ela entrou pelos fundos, enfiando-se direto na cozinha. Sabia que dona Lídia já estava a preparar o café.

    — Bom dia, dona Lídia!

    — Que bom que você voltou, senhorita Creuza. Seu Zequinha e dona Maria estavam muito preocupados com o seu sumiço. Por onde você andou? Este sertão é muito perigoso para quem corre por ele desacompanhado.

    Antes de sentar-se, Creuza ajudou Lídia a pôr a mesa. Com pouco respondeu:

    — Fui cumprir com um compromisso de fé, amiga. Coisa inadiável e que não poderia aguardar. Espero que me entenda?

    Lídia, a coar o café sobre o fogão, manteve-se calada. Há coisas que é melhor respeitá-las na condição de segredo.

    — Sirva-se. Depois vá para o seu quarto, tome um banho e descanse um pouco. Na certa você vai querer conversar com seu Zequinha. Suas coisas estão tudo arrumadas. Há um lençol e uma toalha de banho limpinhos aguardando você.

    Creuza, antes de se recolher, deu um beijo afetuoso na testa da amiga Lídia.

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    — Bom dia, seu Zequinha.

    — Bom dia, Creuza. Já estava aguardando você. Sente-se.

    Seu Zequinha afastou a agenda de anotações, que estava sobre a escrivaninha, sinalizando para Creuza que estava completamente atento à sua narrativa.

    Creuza, um pouco cabisbaixa, não sabia bem por onde começar. Respeitava muito aquele homem e estava em dúvidas se as suas últimas ações seriam aprovadas por ele.

    — Você esteve com ele, Creuza?

    — Sim.

    — Quando ele se apresentará? Temos que evitar a injustiça com a prisão do pobre soldado.

    — Ele concorda, mas teme por sua vida — declarou Creuza.

    Zequinha toma um bloco de notas, que se encontrava na primeira gaveta e escreve um bilhete em letras cursivas.

    — Peça ao Marquinhos para levar este meu pedido ao advogado Mateus. Por enquanto, aguardemos.

    Creuza encheu os olhos de emoção, levantou-se e seguiu em direção à porta do escritório, não sem antes se voltar, dizendo:

    — Muito obrigada, nem sei como nós podemos agradecer tanto zelo que vocês têm conosco. Deus lhes pague.

    — Vá, filha. Quanto mais cedo agirmos, melhor.

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    No dia seguinte, na delegacia de Licânia.

    — Sim, comandante. O homem acabou de se entregar. Veio acompanhado do seu advogado.

    Em frente à mesa, o advogado Mateus acompanhava aquela ligação, pois ainda restava uma missão a cumprir: ordem do seu avô.

    O delegado, ao telefone, inquieto.

    — Mas… Como?! Obedecerei. Bom dia.

    Ao desligar, suspira irritado.

    — Outro problema, delegado?

    — O secretário de Segurança Pública exige que mantenhamos a prisão do Maguinho. Até termos certeza de que não houve, por parte dele, ajuda na fuga do seu cliente.

    — Pois, então, serei também advogado da causa do soldado Maguinho. Posso ter um momento com o meu novo cliente?

    O delegado levanta-se e chama por um dos seus:

    — Sargento Palmiro, leve o doutor até a cela do soldado Maguinho.

    Lá fora, uma multidão se formara diante da entrada do prédio. Parecia que a notícia se espalhara por todas as ruas da cidade. Ao saberem que o soldado Maguinho permanecia recolhido, apesar do fugitivo ter-se entregado, uma onda de protesto cresceu entre os presentes.

    Gazumba e Acácio adiantaram-se e protestaram:

    — Justiça! Justiça!…

  • CULPA | Capítulo XVIII

    — O preso fugiu! O preso fugiu!…

    Licânia acordou com aquele tumulto que brotou da cadeia e, em pouco tempo, tomou as ruas da cidade. Quando chegou ao Mercado, virou domínio público.

    Durante o dia só se falava daquela fuga.

    — Com certeza, minha gente, teve ajuda de alguém lá de dentro da…

    — Feche esta matraca, Acácio! As autoridades, até prova em contrário, estão acima de qualquer suspeita.

    — Você é um inocente, Dederardo! Sempre acredita em tudo.

    — Prefiro ser considerado um tolo do que um precipitado, seu Acácio. Aguardemos a conclusão das investigações.

    Gazumba, com receio de que aquela discussão espantasse os clientes da sua panelada, cuidou de interceder:

    — Só sei que os nossos policiais de plantão estão sempre bem alimentados: todos são fiéis clientes da minha banca. Inclusive, meus senhores, hoje o Maguinho se serviu com gosto e ainda levou meia panela para o plantão — disse, caindo em seguida numa gaitada gostosa.

    — Lá vai o seu Zequinha de volta para casa. Na certa irá levar a novidade para a sua hóspede! — supôs o João Américo.

    — Vai chegar atrasado. A notícia aqui nestas bandas anda a cavalo; o padim Zequinha tem a passada curta — disparou o Gordinho.

    — Hoje em dia, ninguém respeita mais o próprio padrinho. Sei não! Sei não! — cutucou o Batista.

    Gordinho tentou lançar uma resposta nos peitos do Batista do Zé Aguiar, mas a gagueira lhe tomou o fôlego. E ele ficou apenas de rosto em brasa, tomado pela forte emoção:

    — E, e, e…

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    — Seu Zequinha, é verdade?

    Zequinha fecha o portão, silente, e entra, sem responder nada e em passo decidido.

    Ao sentar-se na cadeira de balanço da sala, ele pede água a Lídia.

    Maria Djanira se aproxima com o terço na mão e indaga:

    — O que vamos fazer, meu velho? Ô, Senhora Santana!

    — Em primeiro lugar, manter a calma. E, depois… rezar — diz, enquanto se levanta e segue em direção ao quarto de Creuza. No corredor, para e pergunta:

    — Ela já soube?

    — Por nós, não.

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    Na delegacia.

    — Sim, comandante. Sei, sei… mas, senhor…

    Silêncio em torno da mesa do delegado. Ele, ao telefone, nervoso, a riscar a madeira do birô com a unha do dedo indicador direito.

    — Mas… Sim, obedecerei, são ordens. Agirei. Bom dia.

    Ao desligar, leva as mãos à cabeça, suspirando:

    — Que diacho!

    — Algum problema, seu delegado?

    — O caso ganhou proporções estaduais. O secretário de Segurança Pública pede… melhor, exige…

    Ao perceber que não estava sozinho, cala-se, interrompendo o que dizia.

    Levanta-se e convoca o seu assistente:

    — Tenente, recolha o soldado Maguinho à prisão.

    — Delegado?!

    — Faça isso, são ordens expressas superiores.

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    — Prenderam o soldado Maguinho. Ele é o principal suspeito pela fuga do preso.

    Aquilo leva Licânia a uma disputa de opiniões. Parte da cidade regozijando-se pela pronta resposta da polícia. Outra parte reclamando que o pau sempre quebra no lombo dos mais fracos.

    Na casa do seu Zequinha, a história chega depressa.

    — Aonde você vai, minha filha?

    Creuza sai sem dizer nada.

    — O que vamos fazer, meu velho? Ô, Senhora Santana!

  • CULPA | Capítulo XVII

    — Bom dia, dona — o soldado Maguinho saudou-a.

    — Bom dia. O senhor quer falar com o seu Zequinha?

    — Na realidade, minha senhora, queria dar uma palavrinha com a Creuza, hóspede do casal.

    Lídia, sempre receosa com as coisas da lei, ficou nervosa e logo indagou:

    — Algum problema?

    Maguinho, amassando a boina, titubeou, enganchando-se com as palavras:

    — Não estou aqui representando a polícia. Quero ter um particular com a hóspede. Isso se for possível, claro.

    Lídia enxugou as mãos veiadas no avental e, mais serena, disse-lhe:

    — Sente-se aqui na sala, seu…

    — Pode me chamar de Maguinho, é assim que sou conhecido por todos em Licânia.

    — Muito bem, seu Maguinho. Volto já. Aceita um cafezinho?

    — Não, muito grato. Acabei de sair do plantão e tenho pressa — arrematou ansioso.

    Lídia foi ao quarto da Creuza. Bateu e, sem esperar por resposta, entrou a falar assustada:

    — Tem um guarda aí, Creuza, querendo um particular com você. Ah, meu Deus do Céu, não gosto de polícia. Tome cuidado, minha filha. Não seria melhor avisar ao patrão? Ele acabou de sair para visitar dona Adamir, no São João.

    Creuza, que rezava no pequeno oratório improvisado no canto do quarto, fez o nome do pai, passou a mão na fivela do vestido, como se querendo ajustá-la, e se levantou.

    — Vamos ver o que esse senhor quer falar comigo, Lídia. Não se preocupe. Vou apenas ouvi-lo.

    Chegando à sala, cumprimentou-o:

    — Bom dia.

    Maguinho surpreendeu-se com a altivez daquela mulher: olhos fortes, corpo esbelto, tez morena.

    — Seu homem, senhorita, é melhor do que muitos dos que estão soltos pelas ruas desta cidade. Muito melhor…

    Maguinho, de pé diante de Creuza, não conseguiu continuar sua fala: a emoção embargava-lhe a voz, os olhos marejados, os lábios trêmulos…

    — Vou pegar um copo d’água. Tenha calma.

    Ao retornar, Creuza se deparou com o soldado cabisbaixo, ainda emocionado.

    — Tome. Vai ajudar o senhor a explicar tudo com tranquilidade.

    Pouco mais, Maguinho recomeçou:

    — Tenho muito conhecimento das coisas da prisão e…

    Não conseguia articular os pensamentos. Um choro profundo, tal qual aqueles que brotam de uma pessoa aflita.

    Creuza se aproximou, puxando uma cadeira para junto do visitante. Conversou com ele num tom baixo e brando.

    Lídia, na saleta próxima, não conseguia captar nada daquele diálogo. Era como se ele se desse ao pé do ouvido. Não que Lídia tivesse algum interesse por fuxico ou coisa da vida alheia; postara-se ao lado tão somente com receio de que o samango partisse para os maus modos com Creuza. Ela nunca confiava nesses homens da lei.

    Meia hora depois, a despedida:

    — Vá em paz, senhor Maguinho. Obrigada. Eu lhe serei eternamente grata.

    Quando Lídia retornou para a sala, o soldado já havia saído. Creuza, ainda com o copo na mão, movia os lábios como se em prece silenciosa.

    — O que ele queria, Creuza? O filho da mãe lhe disse alguma ofensa? — perguntou, azogada.

    — Em todo lugar, amiga, existe gente boa. O Maguinho é um homem direito.

    E Creuza retornou para o seu quarto. Lá se ajoelhou diante da imagem de Sant’Anna, orando com mais fervor pelo destino que os esperava.

  • CULPA | Capítulo XVI

    Por Clauder Arcanjo

    A manhã se apresenta em passos lentos. Sol tímido e passaredo em pios baixos, coisa incomum.

    Na cadeia, os dois homens (um preso e outro na parte externa da cela) se olham, mas parece que não se veem. A vista perdida em lonjuras, em coisas que só o pensamento capta.

    Com pouco a chegada dos demais guardas à delegacia.

    — Onde está o Maguinho?

    — Será que saiu antes da hora? Sempre suspeitei que ele anda de chamego para cima da cabocla Adalgisa! Não sabe que aquela mulher é enrabichada com o Abelardão! Mulher assim chama o coveiro antes da hora.

    E riram alto, coçando os bagos e sungando os cintos com os revólveres 38.

    — Maguinho?!… Houve alguma coisa, homem de Deus?

    Nenhuma resposta.

    — Está passando mal? Levante-se desse chão. Rapazes, venham até aqui. Na cela dos fundos.

    Três guardas em pé e um sentado em frente ao prisioneiro. Estes dois extenuados, marcados pelo sereno da noite, abúlicos.

    — Vamos, Maguinho! Tá na hora de você ir para casa, o seu plantão já encerrou.

    Os três guardas recém-chegados pegaram-no pelos braços e cuidaram de arrastá-lo para a parte de fora da carceragem. Sentaram-no na cadeira do delegado, a mais confortável, e lhe ofereceram água.

    — Beba, homem!

    Não quis.

    — O que aquele filho de uma égua fez com você? Aposto que encheu a sua paciência, enfiando no seu juízo as culpas dele… Espere aí que vou acertar logo essas contas! Nada que uma boa surra com o meu cacete de jucá não possa resolver! — vociferou o cabo Jacinto Gamão.

    — Não mexa com o meu amigo! — disparou Maguinho, arregalando os olhos, saindo depressa daquele estado de letargia.

    — E desde quando você, Maguinho, é amigo de assassino? — devolveu Jacinto Gamão, incomodado.

    — Aquele homem, pessoal, é melhor do que todos nós juntos. Mas muito melhor — reforçou Maguinho, já de pé diante dos samangos.

    Nesse momento entra o delegado.

    — O que está havendo? Isto aqui está parecendo mais um boteco de feira livre do que um distrito policial! — esbravejou, enquanto largava seu corpanzil sobre a cadeira antes ocupada por Maguinho.

    — E o senhor, cabo Asdrúbal Santiago, já era para estar no seu descanso.

    Os policiais encerraram a discussão. Sabiam que o pavio do delegado estava mais para espoleta: aquilo poderia desaguar em punição para os quatro. A corda sempre arrebenta no lombo deles: registro de má conduta, ou coisa que o valha, em seus apontamentos funcionais.

    Asdrúbal Santiago, o Maguinho, pediu permissão para retornar para as celas:

    — Acabei me esquecendo de uma coisa, delegado. Volto já!

    Logo depois Maguinho retornava mais animado. Despediu-se de todos sem mirar nenhum deles.

    — Bom dia. E, cabo Jacinto, repare bem no que eu lhe disse.

    Jacinto Gamão quis reagir, mas Severino Pontão, o mais ponderado, fez-lhe um aceno para que ele não respondesse à provocação.

    Maguinho ganhou a rua, já em alvoroço. Não seguiu para a bodega do Gazumba, como era de costume, mas em direção à Praça do Poeta.

    Ninguém na delegacia entendeu aquela sua mudança de rumo, porém com o tempo tudo se explicaria.

  • CULPA | Capítulo XV

    Noite fria. Longa e inquieta.

    Cabeça em tumulto, entre o sono e a vigília:

    — Não, Creuza. Melhor não.

    A cidade dorme. Acordados, somente os bêbados. Mas esses, em Licânia, parece que nunca dormem.

    — Creuza, sou… É perigoso, Creuza. Perigoso, ouviu?

    O soldado de plantão, incomodado com o vozerio, resolve conferir de qual preso procedia. Devagar, caminhou até o conjunto das celas, ao fundo do terreno. Coisa de poucos metros, entre a sala do plantão e o presídio em si.

    — Não!

    O grito forte reteve-lhe os passos.

    — Que desespero, meu Deus! — disse, enquanto, mecanicamente, benzia-se. Em nome do Pai.

    Acende a lanterna, e o facho de luz mancha o chão de amarelo.

    Com pouco, outro lamento. Agora de bem perto:

    — Fuja, fuja de mim. Creuza, fuja. Eu não sirvo… sou…

    As outras celas dormiam, era da mais ao fundo de onde vinham as vozes. Daquele que seria julgado por duplo homicídio. Segundo relato que escutara, do primeiro fora inocentado por legítima defesa. Júri popular. Depois, novo crime e a fuga. Agora, novo julgamento. Tudo marcado para o final do mês. Com certeza, toda a cidade se envolveria.

    — Fuja… fuja!

    Aquilo quase fez com que o samango desse as costas, correndo de volta para a delegacia.

    — Durma, rapaz! — ordena o homem da lei, reunindo coragem para soltar a fala.

    A ordem e o feixe da lanterna despertam o preso. Senta-se, cabisbaixo, os cabelos molhados pelo suor do pesadelo. Levanta o olhar em direção ao guarda. Olhos esbugalhados, como se surgindo de uma luta cruel.

    Sem saber o que dizer a mais, o soldado reforça:

    — Durma, rapaz!

    Ele se encosta na grade, homem forte, corpo rígido. E, segurando-as, declara:

    — Melhor, não. A noite sempre a consumir a minha paz. Se é que tenho paz! Mal entro no sono e já surge um pesadelo dos diabos: machucando os meus miolos, afundando todo o meu juízo num precipício, cenas terríveis de enlouquecer qualquer filho de Deus.

    O guarda, de baixa estatura e magricela, recua, quase sem perceber.

    Então o preso deixa o corpanzil escorregar e, quando sentado, cai num choro convulso.

    — Durma, rapaz!

    Aquele bordão é tudo que o homem da lei consegue recomendar.

    — Não, não… A noite tem sido a minha pior condenação. Minha pior condenação, seu guarda! — reafirma, entre lágrimas.

    O guarda também se senta no chão. Em seguida, desliga a lanterna; e o manto do silêncio, numa quietude estranha, apenas é rasgado de vez em quando pelo choro discreto daqueles dois.