Culpa | Capítulo XXII
Por todos os cantos, poeira e silêncio. Licânia, coberta com véu cinza, parecia uma cidade estranha. A pasmaceira imperando, movimento apenas dentro do hospital, em socorro do paciente que ali dera entrada. Além dos plantonistas, acorreram os parentes médicos do cidadão vítima de mais um caso de violência policial.
Momentos depois, como se lentamente a despertar, a província acordou e uma legião se concentrou diante do hospital. De início, calados; em seguida, em orações.
Nunca se viu tanta gente reunida em Licânia.
— Foram mexer logo com seu Zequinha!
— Esses samangos que vieram de fora são uns filhos de uma p…
O padre Araquento e as Filhas de Maria elevaram a voz no primeiro mistério do terço, a fim de tornarem o palavrão inaudível.
Na parte mais ao fundo, os amigos da pinga, lúcidos como nunca, misturavam momentos de raiva com arroubos de vingança.
Companheiro Acácio, percebendo que a energia da multidão é algo que caminha fácil para o protesto sem freios, resolveu comandar o movimento:
— Tal qual Gandhi na Índia, caros licanienses, vamos promover aqui o princípio de Satyagraha, ou seja, a resistência à tirania por meio da desobediência civil massiva não violenta.
— Vá com a sua Índia para a baixa da égua, Acácio. Esses elementos daqui só entenderão a linguagem do cacete de jucá. Bem nos lombos dessa mundiça — devolveu o cabo Jacinto Gamão.
— Calma, seu Jacinto! Lembre-se de que o senhor representa aqui a autoridade constituída. Logo, contenha-se! — contrapôs Acácio.
— Contenha-se um caralho! Eu, diante de todos, renuncio à minha condição de membro desta bosta de guarnição e, de agora em diante, serei apenas um mero cidadão, como qualquer um dos aqui presentes — devolveu. Tirou a farda, ficando de camiseta e ceroulas. — Só não abro mão do meu cacete!
— Ai, ui! — gritaram, em pânico, as Filhas de Maria.
Um dos presentes correu a uma casa vizinha, trazendo de lá calça, camisa e chinelos para o Jacinto Gamão.
Em seguida, entre urros e gritos de guerra, tocaram fogo no fardamento do ex-cabo.
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Doutor Sávio sai do hospital, levanta a mão e, emocionado, pede um minuto de silêncio:
— Amigos e amigas, estou aqui para passar, a pedido da direção do hospital, o quadro do meu pai.
— Silêncio! — gritou Gazumba, o mais barulhento até então.
— Houve uma contusão cerebral forte na região frontal da cabeça. Devido à idade, o quadro é grave. A evolução, caso se dê, será lenta, e…
— Se ele morrer, eu me mato — esbravejou Pelô, um dos mendigos de Licânia. Pelô sempre estivera sob a proteção do bom Zequinha, quer das pedradas e da troça dos meninotes de rua, quer do achincalhe dos malandros da Pedra do Mercado.
Nesse instante o anunciante do quadro foi tomado pela emoção: a voz embargou, as lágrimas lhe invadiram os olhos, e a cabeça se abaixou pelo tormento.
Uma das viúvas lhe repassou um lenço branco de cambraia. Enxutos os olhos, doutor Sávio recomeçou:
— A medicina já fez sua parte. Agora… precisamos da ajuda divina.
O silêncio voltou pesado, instalando-se como uma pedra sobre os ombros de todos.
Padre Araquento e as pias Filhas de Maria entoaram cânticos, como se conclamassem anjos e arcanjos:
— Fica sempre um pouco de perfume/ nas mãos que oferecem rosas/ nas mãos que sabem ser generosas…
O sino da Matriz badalou inesperadamente, e a tarde se fez noite.