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CULPA: Capítulo XX

O movimento diante da delegacia aumentava, chegando gente de todos os lugares: Sapó, Mutambeiras, Baixa Fria, Serrota, Estreito, Santa Rita. Sem esquecer que até as damas do Caneco Amassado, único cabaré de Licânia, juntaram-se ao protesto contra a prisão do cabo Maguinho.

Creuza, com franca aprovação do dono da casa, ia e voltava levando café, sucos e caldos para manter a força dos presentes. Gazumba supria o movimento com doses de cachaça da serra com tira-gosto de tripa assada.

Companheiro Acácio, sem se dar conta, fora nomeado como porta-voz do levante. Depois da segunda pinga, o latim brotava de seus lábios, tornando o seu discurso pleno de uma sapiência divinal. Isso segundo as palavras do João Américo, confesso admirador das epístolas de Paulo.

O delegado fez uma ligação para o secretário de segurança pública narrando os últimos fatos.

— Mas… Como?! Isso não, nunca! Não obedecerei. E outra coisa, senhor secretário, saiba que renuncio ao cargo e me junto agora mesmo aos “rebeldes”, como o senhor mesmo os denominou.

Ao bater o telefone, arrancou o distintivo do peito, jogando-o sobre a mesa.

— Mais problema? — inquiriu o cabo Jacinto Gamão.

— De certa forma sim. O secretário exige que eu disperse o movimento com o uso extremo da força.

— E…

— E disse-lhe que estou demissionário e, ainda mais, juntando-me, como mais um cidadão, ao movimento de libertação do Maguinho.

O cabo, de início desorientado, assuntou o bestunto, assanhando os cabelos ralos e pigarreando várias vezes. O estômago queimava em fogo alto. Em seguida suspirou e rápido retirou o revólver do coldre, depositando-o próximo ao distintivo.

— Vou também! O meu cassetete de jucá vai junto.

— Sugiro que fique. Alguém precisa cuidar dos detentos, assim como dar notícias às autoridades de como anda o desenrolar das coisas — argumentou o ex-delegado.

— Vou suprir a cela dos presos com um bom estoque de água e de comida. Quanto ao secretário, senhor, que ele vá para a p…

— Calma, Jacinto! Resolveremos tudo na paz. Senhora Sant’Anna estará conosco.

Quando os dois desceram os degraus que separavam o prédio público da multidão, houve um silêncio. Ao perceberem que se juntavam ao protesto, uma salva de palmas anunciou à província que tal causa seria histórica.

Gordinho trouxe um tamborete, que serviu de palanque para Acácio, o Demóstenes das ribeiras do Acaraú. Seu discurso insuflou fúria nos presentes, quando propagou:

— Filhos de terra bravia, aqui habita um povo valoroso. Alea jacta est! Licânia não recua diante da injustiça. Se for para viver com ela, caríssimos e caríssimas conterrâneas, é melhor cair nos braços da Indesejada das Gentes.

Gordinho, boquiaberto, perguntou-lhe:

— E essa dona, mora onde?

Antes que caísse do tamborete, Acácio dispara, encerrando o improviso:

— Salve, Licânia!… Palmas para a justiça! — continuou Acácio.

Enquanto isso, Maguinho orava a todos os santos, receoso das consequências daquela rebelião popular.

Na esquina da Matriz, o cego Julião das Queimadas dizia em versos toscos:

— Licânia, terra de bom caminho,

Se levanta diante do desatino.

Reúne forças desconhecidas:

Cabras, doutores, polícias.

E o pau pode cantar, amigo,

Eu não tenho nada com isso.

Escrito por Clauder Arcanjo

Em Cartaz: Linhas Opostas

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