Antes de me recolher, seu Zequinha me chamou:
— Filha, precisamos conversar.
Pressenti que a conversa seria decisiva para mim. De início, tive vontade de evitá-la; no entanto, antes que pudesse dizer algo, sua voz terna me aquietou:
— O que você sabe da história de…
Antecipei-me, a fim de evitar mal-entendido:
— Nem sei o verdadeiro nome dele, seu Zequinha.
Abalada, senti uma nova carga de emoção e chorei.
Aquilo pôs um silêncio entre nós, interrompido pela entrada de dona Maria Djanira.
— Quando existe amor, Creuza, a coisa se resolve. Sempre acreditei que Deus é um guardião dos que amam! — declarou, enquanto se sentava ao meu lado, pondo uma caixa de lenços de papel em minhas mãos.
— Mas o mundo…
— O mundo não vale um naco de paixão, quanto mais uma lágrima de amor! Acho que estou ficando cada vez mais romântica, meu velho!
Dona Maria foi dizendo isso, enquanto riam, tornando o ambiente um pouco menos tenso.
Então seu Zequinha se levantou, fez um leve carinho no ombro da esposa e se postou à minha frente. Em seguida, de forma paternal, aconselhou-me:
— Esse homem é mais vítima do que culpado. Claro que o peso das duas mortes é algo que o persegue, porém a lei reconheceu que, no primeiro caso, o crime se deu por legítima defesa. No segundo, se ele não houvesse fugido, também a justiça da terra não o condenaria. Sei que ele correu… Quem somos nós para julgá-lo? Para longe, percebo, ele tentou fugir dos seus fantasmas. Como, se os fantasmas estão dentro dele? Ele vai ser julgado novamente, da forma mais justa possível, pois já constituí advogado para ficar encarregado da defesa. No mais, Creuza, somente você pode decidir.
— Por que ele me escondeu tanta coisa? Eu…
Antes que eu completasse, dona Lídia entrou com a bandeja de café. Dona Maria serviu-nos, enquanto declarava:
— E o medo de perdê-la? Esse pobre viveu aqui em Licânia como um moribundo. Isolado, num casebre na ilha do rio. Do primeiro amor dele, poucos se lembram. Ela o traiu com o sujeito que, tempos depois, quando viúvo, ainda veio, naquele domingo, fazer troça do seu destino. Jogando ditos cretinos sobre o coitado. Ele calado estava, calado ficou. Até que o desgraçado, ainda não satisfeito, puxou a peixeira e começou a ameaçá-lo. Os presentes, testemunhas do fato, depuseram e relataram como o ocorrido se deu. Até que houve a facada, em defesa, e… Bem, o resto você, Creuza, pode supor.
Lídia observava, sem nada dizer, como se o fato de presenciar aquele relato tirasse-lhe as forças para voltar à cozinha.
& & &
Tentei dormir, porém várias vozes invadiam o meu sono: “Assassino!”, “Matou pai e filho!”, “Creuza, Creuza, me perdoe!”…
Saí do quarto em busca de ar. Quando entrei na cozinha, dei pela presença de Lídia.
— O sono não veio? — perguntou-me.
A mão trêmula segurando o copo com água denunciava o meu estado de nervos.
— A insônia não é o pior dos meus males, dona Lídia.
— Não julgue, dona Creuza. Pelo menos por ora, fique apenas junto dele. Passando esse redemoinho todo, ou seja, cadeia, julgamento… Conversem e, com Deus e Nossa Senhora, decidam o melhor para cada um.
& & &
O sol alto me encontrou ainda dormindo.
Dona Lídia entrou no quarto e, com cuidado, chamou-me:
— O advogado está aí e quer conversar com você.
— Eu…
A boa Lídia não me deixou completar:
— Se me permite: tome um banho, troque de roupa, enquanto eu preparo um café fresquinho. Não tenha pressa, o compadre Zequinha está dando as primeiras orientações ao doutor Mateus.
No chuveiro, senti como se a água fria me restabelecesse a energia. Ao me enxugar, já levava a certeza de que lutaria por ele. Contra todos, caso fosse necessário.
— Bom dia, seu Zequinha. Bom dia, senhor Mateus. Vamos conversar.
O dia em Licânia nascera ensolarado.