Durante encontro de líderes sul-americanos organizado pelo governo brasileiro no dia 29 de maio, Lula afirmou que “a Venezuela é vítima de uma narrativa de antidemocracia e autoritarismo”. Ao lado do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, que visitava o Brasil após quase oito anos de isolamento, prosseguiu: “Cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa para que as pessoas possam mudar de opinião. Está nas suas mãos, companheiro, construir a sua narrativa e virar esse jogo para que a gente possa vencer definitivamente e a Venezuela volte a ser um país soberano, onde somente o seu povo, através de votação livre, diga quem é que vai governar aquele país. É só isso que precisa ser feito e aí os nossos adversários vão ter que pedir desculpas pelo estrago que fizeram na Venezuela”.
A repercussão negativa foi imediata. Os presidentes do Chile, Gabriel Boric, e do Uruguai, Luis Lacalle Pou, condenaram as falas do presidente alegando que a crise venezuelana não é “apenas uma narrativa”.
A oposição ensandecida foi rápida no gatilho. Dentre os – até esse momento – oito pedidos de impeachment propostos contra o presidente, existe um que alega que Lula cometeu crime de responsabilidade ao receber o presidente venezuelano Nicolás Maduro no país e ao declarar que a Venezuela é vítima de “narrativas” construídas por opositores. É muita falta do que fazer.
A imprensa conservadora não poupou críticas ao intempestivo discurso do anfitrião do encontro e não faltaram jornalistas de esquerda recriminando a inconveniência do discurso lulista naquela oportunidade. Muita calma nessa hora, meus caros! Lula está coberto de razão e tem autoridade suficiente para externar a sua opinião onde e quando quiser.
É indiscutível que os grandes grupos de comunicação adotam uma narrativa integralmente desfavorável ao poder estabelecido democraticamente na Venezuela e que não têm o mínimo pudor em difundir notícias sem qualquer análise crítica, potencializadas criminosamente nos últimos anos pela propagação de fake news.
O maniqueísmo da cobertura jornalística conduzida pela imprensa hegemônica, evidencia que existem interesses ideológicos por trás dessas concepções midiáticas que apresentam a Venezuela como uma nação governada por um ditador, dilacerada economicamente, sem eleições livres e respeito aos direitos humanos, onde toda a população se encontra faminta e que a única solução para o seu drama é a tomada do poder pela elite oposicionista com o apoio dos EUA.
O “chavismo” é representado como a origem de todo o mal, ao passo que golpistas como Pedro Carmona e Juan Guaidó são apresentados – cada um à sua época – como defensores da democracia, salvadores da pátria e símbolos da modernidade. Pedro Carmona assumiu a presidência durante dois dias na tentativa de golpe contra o governo de Hugo Chávez em 2002 e Juan Guaidó, se autoproclamou presidente venezuelano na tresloucada e malsucedida empreitada de derrubar o presidente eleito Nicolás Maduro, no início de 2019.
Para entendermos melhor a geopolítica do país vizinho, é necessário retornarmos à 1998, ano da primeira eleição de Hugo Chávez que governou a Venezuela de 1999 até 2013, ano de sua morte. No contexto da eleição de Chávez, o “chavismo” se transformou no maior movimento político da América Latina e a Venezuela em mais um dos grandes inimigos dos Estados Unidos.
A Revolução Bolivariana promovida pelo presidente venezuelano foi responsável pela grande guinada à esquerda de algumas nações no continente. Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador e Brasil adotaram mudanças políticas, econômicas e sociais, que foram pessimamente recebidas pelos governos americanos (democratas ou republicanos), pelos setores mais conservadores das sociedades latino-americanas e, por conseguinte, pelos poderosos e conservadores conglomerados midiáticos mundiais.
O bloqueio econômico e financeiro que persiste até hoje, surgiu com o compromisso de Hugo Chávez de redistribuir a renda gerada pelo petróleo, transformando-a em recursos para as reformas sociais sonhadas pelo povo venezuelano, a partir da nacionalização da Petróleos de Venezuela (PDVSA). A estatização do petróleo venezuelano promovida pelo governo Chávez, atingiu profundamente os interesses das elites. Não custa lembrar que a Venezuela tem a maior reserva de petróleo do mundo e esse produto é a base de sua sobrevivência econômica.
Foram esses interesses contrariados que promoveram a união entre o imperialismo ianque e as classes mais altas da Venezuela, com o intuito de fazer uma oposição sistemática ao governo. Nessa conjuntura, o papel da mídia privada revelou-se fundamental. Os protestos inconsequentemente convocados pela imprensa oposicionista culminaram nas violentas manifestações de abril de 2002, quando opositores e chavistas se enfrentaram em frente ao Palácio Miraflores, sede da Presidência na Venezuela.
Hugo Chávez foi sequestrado e Pedro Carmona tomou o poder. Porém, dois dias depois, contando com o apoio da população e da guarda presidencial que se manteve fiel ao presidente eleito democraticamente, Chávez retornou à presidência.
Esse episódio é retratado no filme “A Revolução Não Será Televisionada (2003)” dos cineastas irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain, que se encontravam na Venezuela para produzir um documentário sobre Hugo Chavez para a TV irlandesa Rádio Telefis Éireann, e que ao perceberem a movimentação política do país registraram as manifestações prós e contras, que findaram na tentativa de golpe. Recomendo.
No Brasil, os gigantes da comunicação (Grupo Folha, Globo, Veja, SBT, Record, Bandeirantes, CNN, Rede JP), apesar de divergências pontuais e de pouca relevância, mantém alguns acordos implícitos: apoiaram a reforma da previdência, são contra os direitos trabalhistas, abominam governos de esquerda e incentivam e justificam todo e qualquer ataque ao governo de Nicolás Maduro, sob o argumento de que ele é um ditador e um bandido corrupto e sanguinário.
O simples fato de Lula receber oficialmente o presidente venezuelano e na ocasião mencionar uma manifesta narrativa anti-Venezuela e criticar com veemência as sanções econômicas impostas à Venezuela pelos Estados Unidos e seus aliados de ocasião, provocou um faniquito mundial. O vaticínio fatal era que o Lula 3 havia acabado antes de começar.
E enquanto acompanhávamos esse indignado e tempestuoso chilique coletivo, o ex-presidente americano, Donald Trump – durante uma convenção do Partido Republicano na Carolina do Norte no dia 10 de junho –, esbravejava que se tivesse sido reeleito teria tomado a Venezuela e pegado todo o petróleo: “Quando eu saí, a Venezuela estava prestes a colapsar. Nós teríamos tomado o país e pegado todo aquele petróleo. Seria ótimo”.
Essa fala, não é uma narrativa criada ou fomentada pela mídia. É um discurso oficial no qual são escancaradas ao mundo as ideias imperialistas e intervencionistas de um insano que governou a maior nação do planeta por quatro anos e que ameaça voltar nas eleições de 2024.
São obscenidades ideológicas como essas, vomitadas da cavidade oral articulável de aberrações humanas da espécie de Donald Trump e seus seguidores, que alimentam a narrativa anti-Venezuela difundida com tanta naturalidade pelos meios de comunicação hegemônicos.
E Lula, dentre os grandes líderes mundiais, é o único que tem coragem de apontar, afrontar e confrontar essa narrativa.
E Lula tá certo! Para desgosto de muitos.