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O FUTEBOL BRASILEIRO E OS SEUS PSEUDO-HERÓIS DE OCASIÃO

O ex-treinador que recorreu a frases homofóbicas para tentar “levantar a moral” dos seus jogadores na luta contra o rebaixamento nas duas últimas rodadas do Brasileirão de 2025 alcançou o feito.

Pouco importa que, no primeiro desses jogos, o Internacional tenha tomado um “sapeca” de um claudicante São Paulo e que não tenha jogado porcaria nenhuma no segundo — o decisivo confronto em casa contra o Bragantino — no qual contou com a colaboração generosa do goleiro adversário para construir o placar favorável, além das derrotas providenciais dos rivais diretos na briga contra o rebaixamento.

Mas, realmente, isso pouco importa. Para a imensa e sofredora torcida colorada, Abel Braga é o anjo salvador que desceu do Olimpo do “futebol raiz” para impedir um segundo e vergonhoso rebaixamento. É o novo “pseudo-herói” do Internacional e, segundo parte da arquibancada, já merece uma estátua no Beira-Rio — de preferência com uma placa dourada exaltando o “milagre” de duas rodadas.

E assim o futebol brasileiro segue firme em sua devoção a figuras controversas, tratadas como mitos instantâneos por torcidas sedentas por narrativas fáceis. São personagens carregados de falas preconceituosas, discursos ultrapassados, desculpas toscas e um repertório tático que parou nos anos 90, mas que, para alguns, qualquer crítica dirigida a eles não passa de “mimimi” de quem não tem o que fazer: “Ele já pediu desculpas, o resto é bobagem”.

A lógica é sempre a mesma: basta um resultado salvador — às vezes fruto mais do acaso do que de competência — para transformar treinadores ou ex-treinadores comuns em redentores iluminados. É o milagre da rodada final: o passe livre para perpetuar velhos hábitos, velhas ideias e velhos preconceitos sob o verniz de heroísmo de ocasião.

No Santos, outro gigante do futebol brasileiro, o principal representante da atual geração dos “Meninos da Vila” saiu em 2013 — aos 21 anos — rumo ao Barcelona, prometendo que um dia voltaria para transformar o clube do coração em uma potência do futebol mundial. E, de fato, Neymar voltou no início do ano — para delírio da torcida santista — com a promessa de devolver ao Santos as glórias dos tempos de Pelé.

A meta declarada era ambiciosa: brigar por títulos e, no mínimo, garantir vaga direta na fase de grupos da Libertadores, terminando o Brasileirão entre os quatro primeiros colocados. Mas a realidade, como quase sempre no roteiro do eterno “Pré-Adolescente da Vila”, ficou muito distante do discurso. Entre contusões recorrentes, noites viradas no pôquer, carnavais dentro e fora de época, festas nababescas e cruzeiros marítimos devidamente acompanhados de fisioterapeuta e preparador físico (para não ficar tão feio perante os críticos), Neymar pouco jogou: apenas 28 partidas em toda a temporada.

Não atuou na semifinal do Campeonato Paulista — o único título realmente ao alcance do Santos em 2025 — contra o Corinthians, que terminou com vitória alvinegra por 2 a 1. Ficou no banco porque “sentiu um desconforto muscular”. No Brasileirão, a rotina se repetiu: pouquíssimas partidas, sempre envolvido em lesões, enquanto o Santos passava o campeonato inteiro flertando perigosamente com a zona de rebaixamento.

Mas eis que, em um último ato de sacrifício pelo clube do coração, Neymar ressurgiu nas rodadas finais garantindo que jogaria “nem que fosse com uma perna só” para salvar o Santos da queda. E assim foi. A tabela ajudou — Juventude e Sport já rebaixados, um Internacional igualmente desesperado e um Cruzeiro que entrou em campo na última rodada com time reserva por causa das semifinais da Copa do Brasil. Mesmo assim, o final feliz virou narrativa épica: Neymar fez gols, deu assistências e saiu ovacionado da Vila Belmiro como o herói do “não rebaixamento”.

E a torcida santista já sonha com dias melhores em 2026, confiante na renovação do contrato de seu ídolo eterno. Quem sabe no próximo ano, em vez de 28, ele não consiga jogar 30 partidas?

É sempre assim. No Brasil, a régua do “heroísmo” anda tão baixa que poucos minutos em campo, um golzinho salvador e uma frase de efeito bastam para transformar um profissional acomodado em salvador da pátria.

Entre Abel Braga erguido à condição de “anjo colorado” por duas rodadas felizes e Neymar transformado em mito por sobreviver heroicamente aos próprios excessos, o futebol brasileiro segue fiel à sua tradição: fabricar pseudo-heróis de ocasião, canonizá-los ao menor sinal de alívio e fingir que nada aconteceu quando a poeira baixa.

E assim seguimos presos ao mesmo ciclo — resultados casuais, narrativas emocionais e um culto permanente à mediocridade.


A BANALIZAÇÃO DO HERÓI

No longínquo 29 de janeiro de 2002, o então prestigiado jornalista Pedro Bial estreava no desprezível BBB e, poucos programas depois, passou a tratar os participantes do reality como “heróis”. Nunca a palavra “herói” foi tão banalizada, e até hoje esse sujeito asqueroso me provoca engulhos.

Anos depois, em abril de 2021, no Manhattan Connection, o mesmo Bial tentou bancar o humorista sofisticado e afirmou que só entrevistaria Lula em seu programa Conversa com Bial se houvesse um detector de mentiras. A piada de mau gosto soou ainda mais ridícula porque Lula já havia sido entrevistado por ele duas vezes antes — em 17/08/2003 e 01/01/2006 — sem qualquer exigência de polígrafo, sem bravatas moralistas e sem esse exibicionismo pseudo-crítico.

O sacripanta que um dia chamou participantes de reality show de “heróis” perdeu a oportunidade de fazer uma entrevista séria com um personagem central da história brasileira, preferindo apostar no humor ordinário que não revela nada além de seu próprio cinismo. Curiosamente, o detector de mentiras nunca foi solicitado a convidados como Sérgio Moro, Hamilton Mourão, Rodrigo Maia, Janaina Paschoal, Tarcísio de Freitas, Kim Kataguiri, Fernando Collor, entre tantos outros verdadeiros arautos da sinceridade e da honestidade (contém muuuuuuiiita ironia) da política brasileira.


QUEM SÃO SEUS HERÓIS?

A definição clássica de herói — alguém movido por coragem, altruísmo e integridade, capaz de enfrentar riscos reais pelo bem comum — evidencia ainda mais o abismo entre o significado do conceito e a forma como ele é utilizado hoje, especialmente no futebol.

Atualmente, basta um gol de falta, uma vitória suada em clássico ou uma declaração melodramática em coletiva para que certos jogadores sejam proclamados “heróis” por narradores inflamados e torcidas desesperadas por ídolos instantâneos.

Surgem então os salvadores de ocasião: atletas mais preocupados com poses em redes sociais do que com compromisso; jogadores que simulam faltas, distribuem pontapés, discutem escandalosamente com a arbitragem, e se consideram mártires ao menor sinal de crítica; técnicos que se enxergam como líderes messiânicos; dirigentes que se autoproclamam guardiões do futebol, mas cujas ações revelam apenas vaidade, autopromoção, incompetência e desonestidade.

De heróis, não têm nada. São celebridades que acreditam que qualquer gesto corriqueiro — uma bola dividida, um pênalti defendido, um gol chorado — os coloca no mesmo patamar de quem arrisca a própria vida por desconhecidos.

Enquanto isso, os verdadeiros heróis seguem quase sempre invisíveis: profissionais de saúde que enfrentaram a pandemia com coragem diária, muitos pagando com a própria vida; bombeiros que entram em casas em chamas e escombros sem garantia de retorno; voluntários que salvam pessoas e animais em enchentes e outras tragédias ambientais, movidos apenas pela humanidade; gente comum que age diante do perigo sem esperar holofotes, entre tantos outros “heróis” anônimos do nosso dia a dia.

E, enquanto continuarmos confundindo heróis com celebridades ocasionais, seguiremos reduzindo a régua do que realmente importa: reconhecer quem arrisca a própria vida pelo bem coletivo — e não quem arrisca apenas a reputação em um gramado ou em um confessionário televisivo.

Escrito por Marco Túlio

A SEMANA QUE NÃO ACABOU