Últimas histórias

  • Trocando de biquini sem parar

    Nos últimos tempos vinha circulando nas redes e grupos de zap um meme divertido com uma vagem, o fruto verde de vários cultivos de feijão, cantando e a legenda “seu vagem”, fazendo alusão ao verso “selvagem”, repetido por Renato Russo na bela canção “Tempo perdido”, da Legião Urbana”. Trata-se de uma brincadeira, obviamente, mas que me remeteu a equívocos e mal entendidos em letras de músicas do vasto repertório brasileiro, da MPB ou rock.

    Talvez o mais famoso deles é o verso que toda uma geração cantou como “trocando de biquini sem parar”, da canção “Noite do Prazer”, de Cláudio Zoli. Quantas vezes eu e amigos imaginamos porque razão a moça da música trocava de biquíni na tal noite. Por prazer? Tara? Vontade de ir à praia? Nada disso, anos depois descobrimos que o verso é “tocando B.B King sem parar,” referência ao gênio estadunidense do blues.

    Há alguns anos escrevi crônica, publicada no meu livro “Minha mãe e o rato” (Editora Penalux, 2020) sobre essas músicas que são cantadas de forma errada, seja por nós, pobres mortais ouvintes, ou mesmo por artistas da noite em barzinhos. Como em uma oportunidade em que a cantora atacou “Como eu quero”, do Kid Abelha e de repente mandou um: “Jogos de guitarra não vão me conquistar”. Não sei o que seria isso, mas creio que seria mais fácil conquistar a bela Paula Toller com solos  e não jogos. Em uma outra vez, na inevitável hora da Legião Urbana, o cantor reformulou “Tempo perdido”: “Fomos são jovens”, bradou (e Renato Russo, iludido, coitado, escreveu a música no presente: Somos tão jovens).

    Recordo de “Regra três”, de Toquinho, em que o autor disserta sobre os vacilos do protagonista da música e explica porque a amada vai embora: “Porque o perdão também cansa de perdoar”. Mas, certa vez o cantor do barzinho resolver subverter a letra e mandou: “Porque o perdão não se cansa de perdoar”.

    Uma noite, desbravando bares em Parnamirim, eu e os amigos descobrimos  um cantor que era uma figuraça, de chapelão tipo Waldick Soriano, não com violão, mas com teclado com bateria eletrônica. Como o cidadão estava interpretando clássicos de Zé Ramalho, começamos a curtir. Contudo, na hora de Kriptônia, o artista atacou: “Não admiro que me fale assim” … Enquanto ainda refletíamos sobre isso ele continuou: “Sou primo gênio do seu avô, primeiro curandeiro…” O primeiro engano (trocar admito por admiro), até passaria, mas cantar primo gênio em vez de primogênito é dose até para os habitantes de Kriptônia.

    Das lembranças mais antigas desses pequenos enganos musicais,  nos idos anos 90, em um barzinho na Ponta do Morcego, em Natal, uma amiga pediu o microfone para cantar e resolveu mandar “Mulher nova, bonita e carinhosa”, de Zé Ramalho, imortalizada por Amelinha, atraindo a atenção dos marmanjos. Até que, empolgada, cantou: “Quem não ama o sorriso feminino, desconhece a poesia dos Cervantes”. Ou seja, a querida transformou o escritor espanhol Miguel de Cervantes, criador do ilustre fidalgo Dom Quixote de La Mancha, em um povo, uma tribo, sabe-se lá, talvez em moradores de mais uma região espanhola, lá entre a Catalunha e Valência.

    Não saber ao certo a letra da música acontece também em inglês. Reza a lenda que Bob Dylan ofereceu maconha aos Beatles quando estes aportaram em solo norte americano o porque ouviu em “I wanna hold your hand” o verso “I get high” (eu fico doidão) e deduziu que eram usuários contumazes da erva. No entanto a canção dizia “I can’t hide” (Não consigo esconder). E foi a primeira vez que Paul, John, George e Ringo fumaram cannabis. Por causa de alguém não entender a letra da música.

  • Sommelier de indignações

    Há certo tipo de internauta que faz questão de deixar comentários ácidos nos matérias de portais registrando, por exemplo, que tais artistas fazem campanha contra a fome na África ou que tal ONG está cuidando de pessoas sem teto ou ainda que a reportagem mostra preocupação com o assassinato de pessoas trans. No primeiro caso, a grita é “por que na África, e no resto do mundo não tem gente também passando fome?”. No segundo caso, o fel é mais ou menos assim: “Por que a ONG também não se preocupa com as pessoas que tem teto mas não tem dinheiro nem comida?”. No terceiro, o mantra é: “pessoas que não são trans também são assassinadas, por que a reportagem não mostra isso?”

    Enfim, são pessoas que veem uma indignação e querem impor, com base em sua ideologia e suas cismas e neuras, a sua própria indignação. Como diz o amigo jornalista de verve ácida Alex de Souza, é o “sommelier de indignações”. Da mesma forma que o sommelier original, o de vinhos e bebidas, tem o dever de, meticulosamente, selecionar o produto que deve ser degustado, o “sommelier de indignação”, chamemo-lo assim, se coloca no dever de indicar qual causa deve nos indignar naquele momento que ele, na sua superioridade, julga necessário.

    Matança de crianças em Gaza? Ah, mas também morrem crianças nas favelas brasileiras. Tragédia ambiental e enchentes no Rio Grande do Sul? Oh, mas esse assunto já deu, na Índia e Tailândia também tem gente morrendo com enchentes! Para os “sommeliers de indignação” só é válido se lamentar, chorar, lutar por uma causa, se abraçarmos todas as demais, o que obviamente é impossível. Lembrando ainda do nonsense dos “sommeliers de vacina” que tivemos na época da pandemia. “Ah, esse é Coronavac? Desculpe, só quero se for Pfizer!”. Deus nos livre disso. 

    Para esse pessoal não existe isso de “uma coisa de cada vez” ou “trabalho de formiguinha”. Ou é tudo ou nada, ou resolvemos o mundo de uma vez ou deixamos tudo para lá. Sempre na hora e da forma que eles querem, afinal, sabem tudo sobre indignação e causas justas e lutas. Só que não, como diz o meme atual.

    Porque militância de teclado de notebook no ar condicionado é fácil. Reclamar da luta alheia num iphone enquanto bebe um café no Starbucks é fácil.

    Cada qual tem suas causas, suas pautas, suas bandeiras e suas lutas. Cada um fazendo o seu dentro de suas limitações já está bom para fazermos este mundo menos pior, menos injusto do que está. Se os censores de causas, “sommeliers de indignação” não atrapalharem com comentários toscos, já que não ajudam, já é grande coisa.

  • Ah, esses católicos e evangélicos ‘praticantes’ e ‘não-praticantes’…

    Desde criança ouvia, seja de pais, tios, tias que fulano e beltrana eram católicos, mas ´não-praticante`. Era algo que me intrigava. O que diabos (ops) viria a ser uma pessoa que se define como algo mas não a pratica? Eu pensava no que seria um médico  não-praticante`, aquele que se recusava a atender pessoas e tinha horror a sangue ou consultórios. Ou um flamenguista não-praticante`, aquele que não gostava de futebol, nem de camisa rubro-negra e jamais assistira a uma partida de futebol.

    Mistérios da infância e brincadeiras à parte, o fato é que ainda jovem descobri que quase nenhum católico era realmente ´praticante`. Mesmo os, digamos, praticantes, o faziam na medida dos rituais (comunhão, crisma, batismo dos filhos, ir à missa todo domingo) e não da postura apregoada por Cristo (amor ao próximo, dividir o que tem, caridade, perdoar).

    Se antes existiam esses católicos ´praticantes` e ´não-praticantes`, de um tempo para cá os evangélicos adentraram essa seara comportamental. Na minha juventude, evangélicos (o termo usado era ´crentes`) eram rigorosos em relação aos preceitos bíblicos e à doutrina. chatos, sim, mas coerentes, já que faziam da teoria a prática. E falo de cátedra, filhos de mãe e tias evangélicas, posso relatar situações diversas do dia a dia. 

    Porém, a ascensão das igrejas pentecostais e da famigerada ´teologia da prosperidade`apreghoada por criaturas como Silas Malafaia, Valdomiro Santiago e Edir Macedo, construiu uma classe de evangélicos bem parecidos com os católicos usuais: q2ue podem ou não praticar o que apregoam. Que defendem um tipo de vida na teoria mas que vivem de outra maneira na prática. Não causa surpresa, portanto, a imensidão de casos registrados pela mídia de pastores estupradores e/ou estelionatários, de pornô gospel, traições, drogas etc. Isso para nem detalhar casos famosos como o da pastora Flordelis, a que matou o marido e fazia orgias com os filhos adotivos, ou André Valadão, da Igreja da Lagoinha que acolheu o famigerado Alexandre Pádua, o assassino de Daniela Perez.

    Por que lembrar e registrar tanta coisa neste momento/ Talvez pela chegada na Semana Santa, quando os cristãos se abstem de comer carne para não desagradar a Deus mas não se abstém de muitos outros pecados, incluindo o da carne, em outros aspectos. Uma pena que a crença tenha virado uma mera teoria e conjuntura social para arrotar na mesa que é ´católico’ ou ´evangélico,` ou seja, um cidadão de bem.

    Cidadão de bem/cristão, por sinal, que prega o casamento como união indissolúvel de homem e mulher e mulher com as bênçãos do Senhor e apoia e vota em quem tem três casamentos nas costas com cinco filhos de três mulheres diferentes e de quebra idolatra torturador (lembram que Jesus foi torturado, né?). Como cereja do bolo da desfaçatez ainda fazem arminha com a mão em plena igreja. Podem ser praticantes, digamos, mas Deus – se existir, está olhando – viu?

  • Beijo no coração

    Sou fascinado com arroubos e explosões de felicidade, até porque não sou muito dado a elas. Mas compreendo que para gente mais passional expressar sentimentos e sensações é algo natural, quase uma necessidade, o que torna a comunicação dessas pessoas algo visceral, por vezes exagerado. Faz parte do jogo da vida.

    O que me surpreende e até me fascina é a expansividade no trato em universos coletivos e, teoricamente, mais formais como universo de trabalho, e também os famigerados grupos de zap.

    Portanto, acho estranho quando em um grupo de zap formal envolvendo um tema específico a pessoa saúda com um “bom diaaaaaaa” assim mesmo com muitos “a” que é para o grupo ter certeza que ela abordou bem e deseja que todos e todas tenham um dia especial e produtivo.  Geralmente esse tipo de mensagem é cedo, antes das 7h30, que deve ser para mostrar que a pessoa também é madrugadora, ou seja, trabalhadora e esforçada, já que, como sabemos, deus ajuda a quem cedo madruga.

    Mas tenho meu pé atrás com tanta efusividade. E se num grupo de cem pessoas todas resolverem dar bom dia? Passaremos a manhã respondendo aos bons dias uns dos outros. Enfim, coisa de ranzinza, acho que passar dos cinquenta me deixou mais chato do que eu já era.

    Por falar em ranzinzice, também venho pegando ar, como dizem, com outras coisas.  E expressões. Como “namastê” e “muito axé”, saudações bacanas que originalmente saiam do lugar comum mas hoje, pelo excesso  de uso, inclusive de maneira indevida,  entrou no meu index pessoal de rejeição.  E que nem se pense em restrição por viés religioso.  Também por excessos de “fiquem com deus” e “deus te abençoe” sou capaz de sair do grupo ou bloquear o cristão, digo, a pessoa.  Preferências religiosas sim, grupos de zap e comunicação interpessoal pelas redes à parte.

    Enfim, minha chatice final nesse desabafo de Dom Casmurro que se tornou essas mal traçadas linhas, fica com a expressão multi utilizada há um tempo, “beijo no coração”. Se beijo, algo externo e corpóreo, o estalar dos lábios na pele, é dado justamente por isso em lugares externos – lábios, bochechas, mão, pescoço – como idealizar um beijo em um órgão externo. Um beijo no seu fígado, então. Valeu, beijo na traqueia. Mas, chatice à parte, aceito de bom grado beijos no coração quando de gente querida e com boa intenção. Mas podem me mandar bom dia com apenas um “a” no final que vou apreciar.

  • Cavaleiro andante

    Por Cefas Carvalho

    Sou um cavaleiro andante. Por Deus que, com minha arma e meu escudo, honrarei o brasão de minha família e não perecerei nas mãos destes malditos que me perseguem! Se me escondo neste aposento escuro deste castelo amaldiçoado é porque os infiéis são em grande número e preciso permanecer vivo para defender meu rei e meu castelo. Os malditos querem me capturar e me submeter a incontáveis torturas. Ouço ruídos e percebo que os vilões estão atrás de mim. Preciso fugir deste calabouço e partir para minhas nobres epopéias, matando dragões e salvando donzelas. Sou um cavaleiro andante, repito, e com minha armadura e minhas armas, levo a justiça até os confins do Reino, com a benção do meu rei, imperador destas terras, e de Deus Nosso Senhor. Empunho minha espada sagrada e aguardo os ímpios adentrarem o aposento. Gritos de guerra e urros quase bestiais. Percebo que a legião de feiticeiros, todos de branco, começa a me cercar. Dois dos mandriões carregam consigo um pano mágico, com o qual querem me aprisionar. Outro feiticeiro tem entre os dedos a agulha do demônio… Não se aproximem de mim, seres infernais, afastem-se de um cavaleiro ungido pelo rei, larguem-me cães do inferno…

                                                                 *

    – João, onde coloco essa vassoura?

    – Lá no almoxarifado. Rapaz, hoje o homem estava brabo. Ele segurava a vassoura como se fosse uma espada…

    – Esse aí está cada vez mais doido. Trabalhar em hospício é assim mesmo, meu caro…

    – Mas com a injeção que tomou, vai dormir até amanhã. Ei, hoje tem jogo lá no caminho do bairro?

    – Rapaz, acho que sim. Bater uma bola é bom depois de um dia desses. E o cara gritando que ia salvar princesas, hein?…

  • Cachorro quente ou hot dog?

    Dia desses conversava com uma pessoa querida sobre as muitas diferenças culturais gastronômicas nesse Brasil continental. Afinal de contas, cada estado, cada região, cada capital tem uma maneira própria não apenas de fazer comida como de se alimentar e ainda mais de denominar os pratos e guloseimas. O que é Bauru em São Paulo é outra coisa em Recife, São Luís ou Goiânia. O X-tudo de Fortaleza é completamente distinto do X-tudo do Rio de Janeiro.  Na capital paulista se come cachorro quente com purê de batata, algo impensável em Natal, onde se prepara a iguaria com ovo de codorna. E por aí vai.

    Neste papo acabei recordando de uma experiência minha em um país culturalmente autônomo dentro do próprio território nacional, assim como o Vaticano para a Itália e Mônaco para a França. Falo do país de Mossoró, claro, local onde morei nos anos 90. Mais que da experiência, recordei de um texto bem humorado que escrevi em agosto de 2006 (olha só que já se passaram 17 anos!!!) para a brava revista Papangu, do amigo Túlio Ratto, a sensação editorial do RN naqueles tempos em que a internet ainda engatinhava. Como muita gente não chegou a ler ou mal lembra do causo, peço licença a Túlio  e à querida Ana Cadengue para republicar aqui neste espaço. Lá vai:

    *

    Receoso de ferir os brios patrióticos dos amigos e amigas do país de Mossoró, resisti bravamente a escrever o texto que se seguirá. Temia que ele colocasse mais lenha na centenária rixa entre natalenses e mossoroenses, com os primeiros geralmente tecendo piadas ferinas e comentários maldosos a respeito do comportamento das gentes de Mossoró.

    Contudo, durante recente confraternização cultural (e etílica) na 1ª Feirinha de Livros de Currais Novos, o comandante em chefe da Revista Papangu, Tulio Ratto, garantiu não somente a publicação de tal texto sem censuras como minha integridade física (tendo em vista a pouco hercúlea compleição física de Tulio, não estou certo que sua garantia de segurança me valerá de muita coisa…). Ainda assim ganhei coragem para escrever sobre uma aventura gastronômica que vivi na terra de Santa Luzia. Que os amigos Cid Augusto e Kydelmir Dantas, pacatos e bons companheiros, que viram gladiadores na hora de defender Mossoró, me perdoem.

    Bem, vamos à história. O episódio aconteceu nos idos de 1992, quando eu acabava de ter o prazer de entrar na redação da Gazeta do Oeste, nos bons tempos em que Canindé Queiroz comandava uma equipe de até hoje bons amigos como Carlos Santos, Cesar Santos, Gutemberg Moura, Augusto Paiva, Emerson Linhares, e outros. Mas, deixemos de nostalgia. O fato é que eu acabava de chegar a Mossoró, cidade que conhecia apenas superficialmente, e ainda não havia me detido na vida cotidiana e nas particularidades mossoroenses.

    Na minha primeira semana, lanchava (e almoçava, diga-se) baurus no trailer de Titi, ao lado da Gazeta. Em uma bela tarde, o trailer se encontrava fechado e resolvi sair a esmo pelo centro à procura de uma lanchonete. Numa rua, cujo nome não recordo, lá perto do lendário Restaurante do Mathu, descobri uma lanchonetezinha. Estava vazia e parecia agradável, apesar de simples. Senti ao balcão caçando o cardápio ou coisa que o valasse. Inútil.

    Por fim, surgiu da cozinha um rapaz resmungando um boa noite que mais parecia um convite para me retirar. Resolvi ficar, e perguntei se tinha algum salgado, tipo pastel ou empada. Secamente, ele respondeu que não. Perguntei então se tinha cachorro quente… O cidadão coçou a barba por fazer e disparou: “Amigo, você quer cachorro quente ou hot dog?”. Senti no momento um vazio mental, tal a irrealidade da pergunta.

    “Mas, qual a diferença entre um e outro?”, perguntei, inocentemente. O cara me olhou como se eu fosse imbecil – talvez o fosse, naquele instante – e respondeu, todo senhor de sua secura: “Cachorro quente é com carne moída, hot dog é com salsicha!”. “Ah, é claro…”, concordei, como se respaldando uma verdade absoluta. Acostumado que era a comer os tradicionais cachorros-quentes com salsicha, à moda americana, lá no jurássico Passport, na Praça Cívica, em Natal, desde a mais tenra infância, deveria ter optado pelo que conhecia. Mas, a vontade de desbravar culinárias estrangeiras falou mais alto. “Me veja um cachorro quente aí”, pedi.

    O camarada foi para a cozinha. Retornou logo trazendo em um prato azul, um pão cheio de carne e verduras, fumegante e cheiroso. Contudo, um detalhe: no prato, garfo e faca! Educadamente, peguei os talheres e coloquei-os no balcão. “Obrigado, mas não vou precisar”. O rapaz nada falou. Empolgado, com o aroma, puxei dois guardanapos de papel e avancei as mãos para o prato, dando início à minha tragédia. Mal levantei o pão à boca, o bicho começou a se liquefazer. Nervoso, inclinei o pão, derramando um caldo marrom em minha calça jeans. Ainda mais nervoso, coloquei o pão no prato e ele – já mais líquido do que sólido – praticamente se desmanchou. Olhei para a calça e parte da camisa, todas sujas e pensei em protestar, quando reparei na expressão impassível do cidadão, me olhando com a superioridade natural que um nativo de Mossoró encara forasteiros de culturas primitivas. Concluí que era inútil reclamar. O culpado, afinal de contas, era eu. Olhei para o cachorro quente que havia pedido, na verdade quase uma sopa, e não um sanduíche. Não havia como resistir àquele caldo onde boiavam pão molhado, carne, cebola, tomate e pimentão. Recolhido à minha insignificância, olhei com humildade para o sujeito, que esboçava um sutil sorriso nos cantos da boca e pedi: “Amigo, por favor, me veja garfo, faca e uma colher…”

  • Grandes e admiráveis são as tuas obras, ó Senhor!

    Ao atravessar a rua, percebeu ao lado, a Igreja e quase involuntariamente fez com a mão direita o sinal da cruz no peito. Já na calçada, o coração aos pulos, arriscou um olhar atento para a igreja, discreta, toda em branco e recordou o dia de sua ordenação trinta anos atrás.

    Era tão somente um rapaz, cheio de sonhos e ilusões. Acreditava na Graça, no Espírito Santo e no Sagrado, mas, ao contrário de colegas de seminário, nunca tinha sentido a presença de Deus. Questionava-se quanto a ter, ou não, vocação.

    Mas, enfim, foi ordenado padre e enviado imediatamente para uma paróquia na região litorânea. Casa paroquial das mais simples, município pobre, mais vila de pescadores que cidade. A juventude e simpatia fez com que ganhasse a confiança da comunidade, das famílias. Durante as missas que celebrava a igreja estava sempre cheia. Em contrapartida, ele pescava, barco ao mar, com os homens. E ajudava as mulheres a cuidar das crianças.

    Sentia-se útil e querido, em paz com os homens e, talvez com Deus, mas consigo próprio enfrentava suas tentações, como Jesus no deserto, ainda que não apreciasse a comparação. Jejum e trabalho eram as maneiras com que lidava com as provações do inimigo, e em vez de deserto, tinha o mar, que curava suas férias espirituais e o alimentava literal e metaforicamente.

    Passados cinco anos, a Arquidiocese o transferiu para outra região do Estado. Com choro e palavras carinhosas de ambos os lados, despediu-se da comunidade e subiu à serra. Uma cidade diferente, com pessoas menos calorosas, mas, igualmente necessitadas de conforto espiritual.

    Enquanto lembrava-se disso tudo, olhou para trás, observando os vitrais da Igreja, mesmo á noite, belos, refletindo discretamente a luz dos postes na calçada. E recordou da primeira missa que celebrou na nova paróquia: Salmos 92, versículo 5:

    Grandes e admiráveis são as tuas obras, ó Senhor…

    Emocionou-se. Chorou e chegou muito próximo de sentir a presença de Deus.

    E lembrou da comoção que causou nos fiéis, que, depois relataram da frieza do padre anterior, mais afeiçoado à reforma da casa paroquial e à quermesse da festa anual da padroeira do que às coisas do espírito.

    O distanciamento dos paroquianos foi aos poucos sendo quebrado e no transcorrer de dez anos, tornou-se um padre querido e respeitado. Tanto se dedicava à labuta – necessária – da paróquia, a reforma da Igreja, as barracas da festa, as burocracias de batizados, crismas e casamentos, quanto com a alma dos fiéis.

    Mas, havia a sua própria alma, esta, às voltas com as tentações e sempre com a lembrança de Cristo do deserto, na presença do Demônio – sempre ele, e que se apresentava de diversas maneiras – e em Cristo encontrava forças para admoestar seus espírito rebelde e ajustá-lo às coisas do Senhor e ao carinho e estima que recebia dos paroquianos.

    No décimo ano como padre na cidade serrana, foi enviado, com mais três padres, para um curso em Roma. Conheceria então o vaticano! Teria oportunidade de ver de perto o Papa e a História do Cristianismo. Lamentou que sua mãe não estivesse viva. Morrera quando ele se encontrava no segundo ano no Seminário, sonho de infância de Dona Vera ver o filho padre, servindo ao Senhor!

    E em Roma, encontrou bênçãos e, como sempre, tentações. Foi dos mais elogiados no curso, aperfeiçoou o latim, conhecer cidades italianas, viajou à Suíça e Espanha. Mas, também foi onde encontrou o Inimigo mais próximo, sempre a olhar para ele, sorrir sugerindo que cedesse à tentação. Foram dois anos de delícias e de fustigações, de alma e de carne. Voltou se sentindo mais sábio, mais experiente, mas, em compensação, menos próximo de Deus.

    A arquidiocese, então, enviou-o para uma cidade-pólo de uma região de grande comércio. Paróquia grande e com recursos, muita gente chegando à cidade, muito trabalho a fazer. Foram anos de trabalho duro nas coisas do Senhor. E também de ter de lidar com o profano, almoços com empresários, mais burocracias, anexos da igreja a construir, festas da paróquia a cada trimestre. Os anos se passaram de maneira rápida e de maneira que ele nem sentiu. Como não sentiu, como pensava agora, o chamado do Demônio, seu canto insinuante, suas propostas a ferir corpo e alma e a afastar os servos de deus do caminho das palavras sagradas, do que deve ser o propósito de todo cristão, uma vida honrada e em busca do Paraíso Eterno.

    E a escuridão, e o Inimigo se fazendo presente. 

    De repente, o barulho de uma buzina o acordou do torpor. Um grupo de jovens gritando ou cantando o fez olhar para a frente. E sorrir. Apreciava jovens se divertindo.

    Alegra-te, jovem, na tua mocidade, e recreie-se o teu coração nos dias da tua mocidade. Eclesiastes, 11. Durante anos, antes de tudo acontecer, celebrava este versículo com alegria na alma.

    Atravessou, então, mais uma rua. E chegou à casa, sempre na penumbra, na parte mais escura da rua. Olhou para a porta, coração quase saindo pela boca, sempre a mesma coisa. Sempre a mesma sensação de quando celebrou a primeira missa.

    À sua frente, o home imenso, cumprimentou-o de maneira seca, mas, respeitosa. Desceu as escadas e aproximou-se do balcão.

     – Boa noite, Padre, vai querer o de sempre?

                   – Não, Júlio, hoje quero um gin tônica. É meu aniversário.

     – Parabéns, padre. E o senhor chegou bem na hora, o show vai começar

    Bebeu o gim tônica e pediu outro. Homens começaram a se aproximar do balcão e a sentar às mesas próximas ao palco. O mestre de cerimônias então anunciou ao microfone a entrada de Paulo.

    Olhou para o palco e observou o rapaz. Cabelos compridos, como um Davi, um Sansão.  Belo como um modelo de Michelangelo. A música começou e o rapaz celebrava  toda sua juventude e sensualidade. Até que, por fim, retirou a sunga e mostrou o esplendor de sua nudez. Que tudo que Deus criou seja abençoado, pensou o padre: Grandes e admiráveis são as tuas obras, ó Senhor… enquanto bebia mais um gole do gin e pensava se, mais uma vez, convidaria o rapaz para dormir em sua casa.

  • A lambida que tirou a máscara do armamentismo como ´defesa da família`

    O agora ilustre José Sabatini, empresário bolsonarista, que gravou um vídeo lambendo o cano de uma escopeta enquanto dizia o nome do presidente, acabou fazendo muito mais pelas campanhas de desarmamento do que os discursos progressistas.

    Nós, que somos contra a compra e porte de armas pela população civil, passamos anos mostrando números de aumento de assassinatos e mortes acidentais por armas de fogo. Mostrando também que parte das armas compradas legalmente pelos CACs (Caçadores, atiradores e colecionadores) vai mesmo é parar nas mãos do tráfico e da milícia.

    Ainda assim era difícil convencer parte da população, de natureza mais bélica e agressiva (evidentemente eleitora da extrema direta) disso.

    Contudo, a inusitada imagem de Sabatini lambendo o cano da arma tirou a máscara de alguns argumentos. Pois quem quer defender a família de bandidos não sai pelas ruas lambendo arma e sim a guarda em lugar estratégico (porta luvas, gaveta do quarto, esconderijo na cozinha) justamente para a eventualidade d reação. Uma reação que quase sempre acaba em tragédia e não evita a dor da família.
    Mas vimos todos com o vídeo de Sabatini que não se trata disso. O idoso golpista nem pensa em defender a família. Ela tem fetiche pela arma. Erótico inclusive e quase explícito. A imagem da sua língua escorregando pelo cano da escopeta é quase pornográfica. E não é por acaso que ao lamber o cilindro ele solta um: “Aí, Bolsonaro!”. Freud explicaria. O fetiche erótico dele pela arma tem que se dividido com outros “parças”, no caso o despresidente que cultua as armas.

    Da mesma forma que não podemos ver senão como fetiche o fato do deputado federal Eduardo Bolsonaro, conhecido em Brasília e no Twitter como Dudu Bananinha, ter feito o aniversário da filha pequena com decoração de… armas. Quem celebra uma festa de criança com tema bélico? Mesmo policiais, profissional que usam diariamente revólveres, fazem festas infantis com temas de super heróis, Barbie, futebol, Pequena Sereia etc.

    Todas as máscaras do bolsonarismo vem caindo nos últimos tempos (corrupção, moralismo, lisura, capacidade etc) e o senhor Sabatini com sua língua longa e aparentemente experiente na lambida de canos, revelou o que armas significam para o bolsonarismo: fetiche, fantasia. Compulsão erótica, talvez. Compensação por pau pequeno e frustração sexual, diriam os mais maliciosos. Que Lula eleito retome, com apoio do Congresso e do STF, as políticas de desarmamento no país e que esse pessoal que gosta de lamber armas e seja mais o que for o faça entre quatro paredes e não como expressão política.

  • Pai

    Quem me conhece sabe que não sou saudosista, acredito em ciclos cumpridos e nas leis naturais da vida. E quem me conhece também sabe que não acredito em vida após a morte e nem em nada não-terreno. Mas quem me conhece também sabe da minha relação com meu pai, conhecido como Padre Zéluiz. Pai amoroso, generoso, não-convencional e improvável (teve os filhos a partir dos 42 anos, já que deixou de ser padre aos 40), Zéluiz era uma figuraça, quase um personagem, com sua alegria, humor ferino, expansão e gargalhada ruidosa. Como pai, repetindo, era carinhoso, leal, surpreendentemente liberal e progressista para os anos 1980/1990, certamente herança que carregou como padre ligado à Teologia da Libertação e as causas sociais (o que faz ser enviado para “reciclagem” para Europa e Israel, eufemismo para o regime militar se livrar por uns anos dos padres “comunistas” que “davam trabalho”). Revendo os álbuns de fotos, percebi que as tenho com ele remetem à infância, quase todas da vida nômade que ele e mamãe escolheram (nasci em São Paulo e até os 10 anos já havíamos morado também em Santos, Rio de Janeiro, Campo Mourão e Natal). Essa foto que ilustra o post é dos passeios que papai fazia comigo a esmo pelo Centro de São Paulo e bairro Santana, onde morávamos à época, bem perto do antigo presídio do Carandiru. Também percebi que não tenho fotos com papai quando eu era adolescente. Talvez por focarmos mais em sair bebendo chope pelos bares do Rio e garimpar livros e revistas em sebos. Percebo também que nos últimos vinte anos postei pouco ou nada sobre papai porque para além do papel de filho eu focava no papel de pai, aí sim, haja fotos com os filhotes nos invariáveis almoços e jantares de Dia dos Pais. Com os filhos já adultos (e o almoço de hoje está marcado, claro!) me permiti retomar ao papel de filho e celebrar o velho Zéluiz, que partiu tão cedo (aos 62 anos, em 1991). Obrigado por tudo, pai.

    Cefas Carvalho é jornalista

  • O CARNAVAL DA MINHA DOR

    O carnaval da minha dor começou em uma sexta-feira ensolarada como têm início os carnavais – sejam dolorosos ou não – em um ano qualquer e em uma cidade igualmente qualquer (o carnaval é igual em qualquer cidade quando o objetivo é sofrer, e não se alegrar. parafraseando Tolstói, todos os carnavais infelizes se parecem, os carnavais alegres é que são diferentes…)

    Mas, voltemos à minha dor… toda ela gerada pela Colombina, posto que eu era, novamente, o Pierrô. Há quantos carnavais vivíamos esta história insana, excitante, mal contada?… Havia uma década, suponho. Eu não sabia nada sobre ela, apenas seu nome – Miriam – que ela revelou por um deslize enquanto fazíamos amor embaixo do palco das autoridades que assistiam ao desfile das escolas de samba na cidade de… deixemos para lá. E chamemos minha amada de Colombina, que é como sempre a chamei e como ela gosta de ser chamada (isso a excita, presumo).

    O fato era que o que havia começado como uma fantasia (em todos os sentidos) passara a ser –pelo menos para mim – uma obsessão. Primeiro nos conhecemos, entre o confete, a serpentina, o álcool e o loló, como todos se conhecem durante a folia, entre a superficialidade e o desejo… depois o beijo, o desencontro e por fim o reencontro na noite de terça-feira e terminar a noite – e aquele carnaval – entre lençóis no meu quarto de hotel. Trocamos telefone, mas, para quê? Jamais nos telefonamos. A não ser na véspera do carnaval do ano seguinte, quando ela avisou que novamente se fantasiaria de Colombina e que queria me ver outra vez de Pierrô. Passamos o carnaval entre encontros e desencontros, ela com Arlequins, eu com Odaliscas… tentei brigar, mas ela só queria se divertir. Jurei que no carnaval seguinte não passaria mais por aquilo. Tolice. Uma semana antes da festa momesca, a Colombina me ligou dizendo em que cidade passaria o carnaval lá fui eu atrás dela, rumo a prazeres carnais rápidos e uma dose considerável de sofrimento. Identifiquei-me com a música… “Um pierrô apaixonado, que vivia só chorando, por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando…” (Pierrô Apaixonado, de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres)

    Lá pelo quatro ou quinto carnaval que passávamos da mesma maneira, encontrando e desencontrando entre ladeiras, becos e multidões, tomei coragem e a pedi em casamento. Ela riu, argumentando que eu sequer a conhecia e continuou sua caminhada de Colombina desvairada, à procura de outras bocas, outros braços, outros pierrôs… Mas, na quarta-feira de cinzas lá estava ela em meus braços… E eu tentando fazer com que nos víssemos em outro período que não no carnaval. Inútil. “Eu gosto das coisas assim…”, enfatizou, despindo suas roupas de Colombina. Enquanto ela pegava um táxi rumo ao aeroporto (já morávamos em cidades diferentes) “O pierrô apaixonado chora pelo amor da colombina…” (Pierrot, de Marcelo Camelo, da banda Los Hermanos).

    Passam os meses e fevereiro se aproximou, como sempre, trazendo consigo o Carnaval. Não telefonei para a Colombina e tampouco ela me ligou. Fiquei em minha cidade, e vesti-me de Pierrô – pela última vez – para pular sozinho meu carnaval. Eis que então que, entre lágrimas e cerveja, vi a Colombina – sim, só podia ser ela, era seu andar, seu jeito de mover os braços, de balançar os cabelos, de rir ao vento… – aos beijos com um Arlequim. Olhei fixamente para ela. Ela me viu e não esboçou qualquer reação. Era uma Colombina, mas, seria a minha Colombina? Que importava? Que mais havia a fazer? Comprei outra latinha de Skol e me entreguei à multidão que entoava uma marchinha qualquer, que aos meus ouvidos soava como a marcha fúnebre: eu estava condenado a ficar apaixonado pela imagem (literal e simbólica) da Colombina até o fim dos carnavais, ainda que toda Colombina que cruzasse meu infeliz caminho não fosse a minha… “Quanto riso, ó, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão… O pierrô está chorando pelo amor da Colombina no meio da multidão…”