Últimas histórias

  • A mão invisível (e golpista) do ‘mercado’

    Todo dia somos bombardeados com notícias sobre o tal mercado ado’. Que o mercado está tenso, que o mercado não concorda com a política do governo, que o mercado está agitado, que o mercado está isso e aquilo, assim e assado. Sabemos que o mercado é instável e volúvel, que se assanha fácil e que é cheio de vontades e chiliques. Mas o que diabos é esse tal de mercado sobre o qual quase nada sabemos?

    Na verdade, o ‘mercado’ que tanto ocupa as manchetes da grande mídia nada mais é que a soma dos interesses especulativos de um pequeno número de pessoas e de corporações. Uma turma que lida com quantias imensas de dinheiro, uma grana alta sempre ‘invisível’, representada por juros, ações da bolsa e dólar. Um dinheiro que jamais aparece, jamais traduzido em cédulas ou operações bancárias triviais, e que jamais aparecerá para nós, pobres mortais, Zés Ninguéns que estamos “aqui embaixo onde as leis são diferentes”, como diz a canção da banda Biquini Cavadão.

    Para esse micro universo de gente rica (investidores e especuladores) o povão não existe, muito menos seus interesses. Preço da cesta básica? Aumento de aluguel? Transporte público para chegar no trabalho? Comprar ventilador para aguentar o calor? Material escolar dos filhos? Nada disso importa para o pessoal da Faria Lima e dos oásis onde mora o dinheiro. Ne verdade sempre foi assim, o Brasil derna seu descobrimento/invasão em 1500 vive um sistema de castas não muito diferente do da Índia.

    A questão é que na sua obsessão por juros, dólar e lucro, esse ‘mercado’ decidiu bombardear o Governo Lula no momento em que ele tenta passar no Congresso (conservador e pró-mercado, lembremos) uma Reforma Tributária que justamente alivia o bolso dos mais pobres. Mas mexe com a especulção financeira. Desta forma, sem pudor esse deus-mercado, invisível e abstrato, com seus braços políticos e midiáticos, declarou guerra a Lula e Haddad, fazendo como o bolsonarismo, sonhando com um golpe que tire o PT do poder.

    Li em uma entrevista com a professora e economista Juliane Furno, no UOL News, frases que me chamaram a atenção.

    “O famoso terrorismo fiscal é você atuar sobre aqueles capitais especulativos de curto prazo, apreciando e depreciando a moeda conforme falas que agradam, desagradam ou mais os operadores do mercado. Mas isso é muito circunstancial, onde o mercado quer sinalizar para o Presidente da República e para a sociedade que ele tem formas de fazer pressão”, afirmou. Ou seja, o ‘mercado’ assume essa pressão pública. Torcendo e agindo para que os juros continuem altos e que o dólar suba com a intenção única de desgastar o Governo”.

    Ela não para: “Acho que o mercado tem agido propositadamente contra o governo Lula, sim. Embora seja algo mais fluido do que uma instituição monolítica, com uma orientação muito clara, o mercado tem uma posição com relação aos seus ganhos financeiros, os detentores da riqueza financeira têm opções políticas, tanto é que costumam se orientar por uma candidatura ou outra durante o eleitoral do período eleitoral e eles procuram domesticar quem senta na cadeira presidencial, seja de esquerda ou direita”.

    Domesticado, digamos, o Governo priorizaria os interesses do capital em detrimento às classes trabalhadoras. Justamente uma bandeira da esquerda, a atenção para os segmentos historicamente menos favorecidos. Lula fala em picanha e cerveja para todos os brasileiros. O ‘mercado’ quer manter seus privilégios especulativos. Flertando com golpe, atualmente. Um horror.

  • Café coado, por favor!

    Por Cefas Carvalho

    Tarde dessas, parei, entre uma demanda e outra, em uma cafeteria de shopping de bairro para olhar mensagens de zap e fazer agenda. Pedi à moça um café coado, no que ela respondeu imediatamente que era impossível, só trabalhavam com café expresso ou de cápsula. Migrei para o bistrô ao lado, e a situação era a mesma. Desisti do café e pedi um suco de graviola.

    Na verdade, nada de novo no front. Já me habituei a não encontrar em Natal o bom e velho café coado em pano ou mesmo em papel tipo Melitta. Pelo menos não em cafeterias ou similares. Na verdade estes lugares parecem ter se especializado em cafés e guloseimas extremamente sofisticadas (ou seja, caras) mas sem dar opção para o cliente, tanto pelo sabor como pelo preço.

    Sim, porque da mesma forma que acho estranho pagar quase vinte reais por um quiche e um café médio, também entendo que os produtos são de qualidade e isso também não vai me levar à falência. Mas quase sempre é a questão mesma do sabor. Prefiro mil vezes café coado, feito no pano e mexido com colher, daqueles que o aroma sobe e se espalha pela casa, do que os cafés expressos extraídos na máquina, por mais que o grão seja moído na hora e etcetera a tal.

    Mas não foi sempre assim. Já tive minha fase, digamos, gourmet, de garimpar restaurantes com pratos sofisticados devidamente harmonizados com vinho e de caçar cafeterias com cafés “chiques” estudos de misturas exóticas. A maturidade me levou a retornar para o simples. Mais é menos. Hoje me dedico à gastronomia de pratos tradicionais e fartos, principalmente em restaurantes tradicionais e antigos. Sabe aquele Parmeggiana de carne gigante que dá para um time de futsal ou um polvo com arroz que parece saído de “Vinte mil léguas submarinas? É sobre isso.

    Não lembro exatamente quando se deu cada processo. Recordo apenas que após desbastar cafés com grãos da Guiana torrados na hora e misturados com pistache (custando cada xícara o preço de um Carbonara numa cantina de São Paulo) eu chegava em casa e sentia vontade de passar um café. Aos poucos fui percebendo que o sabor que eu queria era esse, o café simples feito à moda antiga, com cheiro de mãe e de casa de avó.

    Esse cheiro e esse sabor, a gente encontra na simplicidade e no básico. O melhor café que tomei nos últimos anos foi em Angicos, num restaurante de beira de estrada, numa viagem recente entre Natal e Mossoró. Café na garrafa térmica preta com tampa de rosca, mas passado havia poucos minutos. Fumegante e grosso, como deve ser, servido naquelas xícaras laranjas estilo duralex. Aposto uma cocada de côco que é o melhor café de todos.

  • Diga-me o que relês e te direi quem és

    Por Cefas Carvalho

    Dia desses passou pelo meu feed de imagens do Instagram uma frase de François Mauriac (1885 1970), genial escritor francês, Nobel de Literatura de 1952, que me encantou: “Diga-me o que lês e te direi quem és – isto é verdade. Mas eu te conhecerei melhor se me disserem o que relês”.

    Subvertendo duplamente o ditado popular, Mauriac tocou com a sentença em um ponto sensível meu: reler livros. Como leitor compulsivo e obsessivo tenho minhas releituras obrigatórias, quase fanáticas, por vezes mais importantes que a leitura de um novo livro, ainda que fundamental, premiado ou clássico.

    Ler novamente um livro já lido é uma sensação ambígua e complexa. Já entramos na história sabendo o que vai acontecer, o suspense,a  expectativa são abolidas, portanto. Mas como explicar aquele sobressalto no coração ao chegar no final da história (já conhecido) e ter a sensação de que o fim será diferente? Como se a magia da literatura fosse capaz de alterar o epílogo do livro ou entre uma leitura e outra, o fantasma do escritor se embrenhasse entre as páginas para modificar as linhas.

    Nesse clima, lá fui eu para a biblioteca, ou deveria dizer para as modestas estantes de livros em casa, garimpar os livros que mais vezes reli. Dei de cara com “1934”, do italiano Alberto Moravia, que li pela primeira aos dezessete e desde então releio ano sim, ano não. 2024 é ano sim, devo pegá-lo em dezembro, com a vida menos caótica. Para conferir se Lúcio, jovem intelectual desiludido com a vida, vai novamente se apaixonar pelas irmãs alemãs Trude e Beate, num veraneio na Ilha de Capri.

    Encontro também “Sobre heróis e tumbas”, que descobri num sebo em São Paulo em 1990 e desde a primeira leitura nos metrôs e bares no inverno paulistano vivo um perpétuo fascínio com a história da jovem Alexandra Olmos em uma Buenos Aires fria, em meio ao próprio desespero e à loucura do pai, Fernando Vidal Olmos, cujo trágico destino sempre espero que mude a cada releitura. E cada releitura é como se fosse a primeira vez.

    Entre os brasileiros, lá está Dom Casmurro, que li uma dezena de vezes, sempre sob um prisma diferente. Já li a obra prima de Machado de Assis para investigar que Capitu realmente traiu Bentinho e já li para ter certeza que ela justamente não traiu e o homem era paranóico. Já li para adaptar para uma peça teatral amadora, já li o livro para estudar Escobar. Enfim, a cada nova leitura descubro coisas novas. Como em outro clássico machadiano que releito sem cansar: “Memórias póstumas de Brás Cubas”.

    Há os escritores que releio sempre. Henry Miller, Anais Nin, Vargas Llosa. E há Ernest Hemingway, meu mestre e escritor preferido. Curiosamente há livros do cidadão que só li uma única vez e não pretendo reler, sei lá porque, pois amei as obras, como “Adeus às armas” e “Por quem os sinos dobram”. Em compensação, “O sol também se levanta” li tantas vezes que decorei alguns diálogos. “Paris é uma festa” foi meu manual e guia durante as duas viagens à capital francesa. Sem falar de “O jardim do Éden”, livro póstumo do gênio que apesar de mal recebido pelos críticos, me encanta e me obseda. Numa fase da vida a cada livro novo que eu pensava em escrever relia “O jardim do Éden”. Coisa de doido. Ou de escritor. Que são a mesma coisa, talvez, como escrevi um dia desses em um artigo. Sim, estou me repetindo, mas quem nunca? Coisa de quem relê livros sem cansar.

  • Sobre o torcedor de Olimpíadas (ou do patriotismo sazonal)

    Já gostei mais de Jogos Olímpicos. Quando criança e adolescente era daqueles que varava madrugadas assistindo partidas e competições e anotava resultados e quadro de medalhas em cadernos. O tempo tratou de arrefecer essa paixão de maneira que há tempos assisto en passant as Olimpíadas.

    O que não me impede de me emocionar com alegrias ou choros de atletas. Ou de torcer para atletas brasileiros como as meninas da ginástica olímpica ou a carismática e vitoriosa Rayssa Leal. Ou de me encantar com resultados de atletas de outros países, que esporte não é, ou não deveria ser, um bastião inconmdicioonal de um patriotismo até artificial.

    Aliás, em tempos de redes sociais, isso é até algo que me aborrece. O torcedor “pacheco” que torce tanto para os atletas do Brasil que deseja a queda, tombo, fracasso do adversário. Não contem comigo para isso. Quero torcer para os atletas brasileiros que admiro sem “destorcer” para seus rivais.

    Sem falar que o torcedor de Olimpíadas é aquele que gosta mais de brasileiro do pódio e quadro de medalhas do que de esporte. Tem brasileiro no badminton? Vamos torcer, que venha a medalha! Mas o que é badminton mesmo? Eita, vai Brasil no handebol. Mas quais são as regras mesmo?

    O que nos leva a outro raciocínio: o mesmo breasileiro que em tempos olímpicos curte de tudo, nos restantes três anos e onze meses que separam uma Olimpíada de outra mostra uma indiferença quase total por esportes. Quantos pais, que torcem ardentemente nos jogos olímpicos, acompanham filhos nos treinos de judô e nado sincronizado? Quantos colégios e pais de alunos incentivam atletismo e natação?

    Vimos a fadinha Rayssa ganhar mais uma medalha no skate. Mas percebi, entre os amigos que celebraram a menina, gente que sempre considerou skate como “coisa de vagabundo e maconheiro” e que jamais comprariam um skate para os filhos. Na internet até lembraram que em 1988, o prefeito Jânio Quadros proibiu sua prática em São Paulo. No ano seguinte, Luiza Erundina derrubou o veto.

    Por falar em prefeitos, quantos deles (que na hora das medalhas celebram os atletas e querem recebê-los de volta para casa) investem em complexos poliesportivos, quadras de basquete e vôlei, formação de atletas?

    Essa cultura bem brasileira da torcida de ocasião e falta de investimento real faz com que nosso esporte olímpico viva de gente aguerrida, talentos lutadores e espasmos, enquanto países territorialmente menores e com menos população que o Brasil ficam no topo do quadro de medalhas. Mas o brasileiro médio não quer projeto esportivo a longo prazo, quer só torcer e gritar “vai Brasil-il-il” mesmo.

  • Trocando de biquini sem parar

    Nos últimos tempos vinha circulando nas redes e grupos de zap um meme divertido com uma vagem, o fruto verde de vários cultivos de feijão, cantando e a legenda “seu vagem”, fazendo alusão ao verso “selvagem”, repetido por Renato Russo na bela canção “Tempo perdido”, da Legião Urbana”. Trata-se de uma brincadeira, obviamente, mas que me remeteu a equívocos e mal entendidos em letras de músicas do vasto repertório brasileiro, da MPB ou rock.

    Talvez o mais famoso deles é o verso que toda uma geração cantou como “trocando de biquini sem parar”, da canção “Noite do Prazer”, de Cláudio Zoli. Quantas vezes eu e amigos imaginamos porque razão a moça da música trocava de biquíni na tal noite. Por prazer? Tara? Vontade de ir à praia? Nada disso, anos depois descobrimos que o verso é “tocando B.B King sem parar,” referência ao gênio estadunidense do blues.

    Há alguns anos escrevi crônica, publicada no meu livro “Minha mãe e o rato” (Editora Penalux, 2020) sobre essas músicas que são cantadas de forma errada, seja por nós, pobres mortais ouvintes, ou mesmo por artistas da noite em barzinhos. Como em uma oportunidade em que a cantora atacou “Como eu quero”, do Kid Abelha e de repente mandou um: “Jogos de guitarra não vão me conquistar”. Não sei o que seria isso, mas creio que seria mais fácil conquistar a bela Paula Toller com solos  e não jogos. Em uma outra vez, na inevitável hora da Legião Urbana, o cantor reformulou “Tempo perdido”: “Fomos são jovens”, bradou (e Renato Russo, iludido, coitado, escreveu a música no presente: Somos tão jovens).

    Recordo de “Regra três”, de Toquinho, em que o autor disserta sobre os vacilos do protagonista da música e explica porque a amada vai embora: “Porque o perdão também cansa de perdoar”. Mas, certa vez o cantor do barzinho resolver subverter a letra e mandou: “Porque o perdão não se cansa de perdoar”.

    Uma noite, desbravando bares em Parnamirim, eu e os amigos descobrimos  um cantor que era uma figuraça, de chapelão tipo Waldick Soriano, não com violão, mas com teclado com bateria eletrônica. Como o cidadão estava interpretando clássicos de Zé Ramalho, começamos a curtir. Contudo, na hora de Kriptônia, o artista atacou: “Não admiro que me fale assim” … Enquanto ainda refletíamos sobre isso ele continuou: “Sou primo gênio do seu avô, primeiro curandeiro…” O primeiro engano (trocar admito por admiro), até passaria, mas cantar primo gênio em vez de primogênito é dose até para os habitantes de Kriptônia.

    Das lembranças mais antigas desses pequenos enganos musicais,  nos idos anos 90, em um barzinho na Ponta do Morcego, em Natal, uma amiga pediu o microfone para cantar e resolveu mandar “Mulher nova, bonita e carinhosa”, de Zé Ramalho, imortalizada por Amelinha, atraindo a atenção dos marmanjos. Até que, empolgada, cantou: “Quem não ama o sorriso feminino, desconhece a poesia dos Cervantes”. Ou seja, a querida transformou o escritor espanhol Miguel de Cervantes, criador do ilustre fidalgo Dom Quixote de La Mancha, em um povo, uma tribo, sabe-se lá, talvez em moradores de mais uma região espanhola, lá entre a Catalunha e Valência.

    Não saber ao certo a letra da música acontece também em inglês. Reza a lenda que Bob Dylan ofereceu maconha aos Beatles quando estes aportaram em solo norte americano o porque ouviu em “I wanna hold your hand” o verso “I get high” (eu fico doidão) e deduziu que eram usuários contumazes da erva. No entanto a canção dizia “I can’t hide” (Não consigo esconder). E foi a primeira vez que Paul, John, George e Ringo fumaram cannabis. Por causa de alguém não entender a letra da música.

  • Sommelier de indignações

    Há certo tipo de internauta que faz questão de deixar comentários ácidos nos matérias de portais registrando, por exemplo, que tais artistas fazem campanha contra a fome na África ou que tal ONG está cuidando de pessoas sem teto ou ainda que a reportagem mostra preocupação com o assassinato de pessoas trans. No primeiro caso, a grita é “por que na África, e no resto do mundo não tem gente também passando fome?”. No segundo caso, o fel é mais ou menos assim: “Por que a ONG também não se preocupa com as pessoas que tem teto mas não tem dinheiro nem comida?”. No terceiro, o mantra é: “pessoas que não são trans também são assassinadas, por que a reportagem não mostra isso?”

    Enfim, são pessoas que veem uma indignação e querem impor, com base em sua ideologia e suas cismas e neuras, a sua própria indignação. Como diz o amigo jornalista de verve ácida Alex de Souza, é o “sommelier de indignações”. Da mesma forma que o sommelier original, o de vinhos e bebidas, tem o dever de, meticulosamente, selecionar o produto que deve ser degustado, o “sommelier de indignação”, chamemo-lo assim, se coloca no dever de indicar qual causa deve nos indignar naquele momento que ele, na sua superioridade, julga necessário.

    Matança de crianças em Gaza? Ah, mas também morrem crianças nas favelas brasileiras. Tragédia ambiental e enchentes no Rio Grande do Sul? Oh, mas esse assunto já deu, na Índia e Tailândia também tem gente morrendo com enchentes! Para os “sommeliers de indignação” só é válido se lamentar, chorar, lutar por uma causa, se abraçarmos todas as demais, o que obviamente é impossível. Lembrando ainda do nonsense dos “sommeliers de vacina” que tivemos na época da pandemia. “Ah, esse é Coronavac? Desculpe, só quero se for Pfizer!”. Deus nos livre disso. 

    Para esse pessoal não existe isso de “uma coisa de cada vez” ou “trabalho de formiguinha”. Ou é tudo ou nada, ou resolvemos o mundo de uma vez ou deixamos tudo para lá. Sempre na hora e da forma que eles querem, afinal, sabem tudo sobre indignação e causas justas e lutas. Só que não, como diz o meme atual.

    Porque militância de teclado de notebook no ar condicionado é fácil. Reclamar da luta alheia num iphone enquanto bebe um café no Starbucks é fácil.

    Cada qual tem suas causas, suas pautas, suas bandeiras e suas lutas. Cada um fazendo o seu dentro de suas limitações já está bom para fazermos este mundo menos pior, menos injusto do que está. Se os censores de causas, “sommeliers de indignação” não atrapalharem com comentários toscos, já que não ajudam, já é grande coisa.

  • Ah, esses católicos e evangélicos ‘praticantes’ e ‘não-praticantes’…

    Desde criança ouvia, seja de pais, tios, tias que fulano e beltrana eram católicos, mas ´não-praticante`. Era algo que me intrigava. O que diabos (ops) viria a ser uma pessoa que se define como algo mas não a pratica? Eu pensava no que seria um médico  não-praticante`, aquele que se recusava a atender pessoas e tinha horror a sangue ou consultórios. Ou um flamenguista não-praticante`, aquele que não gostava de futebol, nem de camisa rubro-negra e jamais assistira a uma partida de futebol.

    Mistérios da infância e brincadeiras à parte, o fato é que ainda jovem descobri que quase nenhum católico era realmente ´praticante`. Mesmo os, digamos, praticantes, o faziam na medida dos rituais (comunhão, crisma, batismo dos filhos, ir à missa todo domingo) e não da postura apregoada por Cristo (amor ao próximo, dividir o que tem, caridade, perdoar).

    Se antes existiam esses católicos ´praticantes` e ´não-praticantes`, de um tempo para cá os evangélicos adentraram essa seara comportamental. Na minha juventude, evangélicos (o termo usado era ´crentes`) eram rigorosos em relação aos preceitos bíblicos e à doutrina. chatos, sim, mas coerentes, já que faziam da teoria a prática. E falo de cátedra, filhos de mãe e tias evangélicas, posso relatar situações diversas do dia a dia. 

    Porém, a ascensão das igrejas pentecostais e da famigerada ´teologia da prosperidade`apreghoada por criaturas como Silas Malafaia, Valdomiro Santiago e Edir Macedo, construiu uma classe de evangélicos bem parecidos com os católicos usuais: q2ue podem ou não praticar o que apregoam. Que defendem um tipo de vida na teoria mas que vivem de outra maneira na prática. Não causa surpresa, portanto, a imensidão de casos registrados pela mídia de pastores estupradores e/ou estelionatários, de pornô gospel, traições, drogas etc. Isso para nem detalhar casos famosos como o da pastora Flordelis, a que matou o marido e fazia orgias com os filhos adotivos, ou André Valadão, da Igreja da Lagoinha que acolheu o famigerado Alexandre Pádua, o assassino de Daniela Perez.

    Por que lembrar e registrar tanta coisa neste momento/ Talvez pela chegada na Semana Santa, quando os cristãos se abstem de comer carne para não desagradar a Deus mas não se abstém de muitos outros pecados, incluindo o da carne, em outros aspectos. Uma pena que a crença tenha virado uma mera teoria e conjuntura social para arrotar na mesa que é ´católico’ ou ´evangélico,` ou seja, um cidadão de bem.

    Cidadão de bem/cristão, por sinal, que prega o casamento como união indissolúvel de homem e mulher e mulher com as bênçãos do Senhor e apoia e vota em quem tem três casamentos nas costas com cinco filhos de três mulheres diferentes e de quebra idolatra torturador (lembram que Jesus foi torturado, né?). Como cereja do bolo da desfaçatez ainda fazem arminha com a mão em plena igreja. Podem ser praticantes, digamos, mas Deus – se existir, está olhando – viu?

  • Beijo no coração

    Sou fascinado com arroubos e explosões de felicidade, até porque não sou muito dado a elas. Mas compreendo que para gente mais passional expressar sentimentos e sensações é algo natural, quase uma necessidade, o que torna a comunicação dessas pessoas algo visceral, por vezes exagerado. Faz parte do jogo da vida.

    O que me surpreende e até me fascina é a expansividade no trato em universos coletivos e, teoricamente, mais formais como universo de trabalho, e também os famigerados grupos de zap.

    Portanto, acho estranho quando em um grupo de zap formal envolvendo um tema específico a pessoa saúda com um “bom diaaaaaaa” assim mesmo com muitos “a” que é para o grupo ter certeza que ela abordou bem e deseja que todos e todas tenham um dia especial e produtivo.  Geralmente esse tipo de mensagem é cedo, antes das 7h30, que deve ser para mostrar que a pessoa também é madrugadora, ou seja, trabalhadora e esforçada, já que, como sabemos, deus ajuda a quem cedo madruga.

    Mas tenho meu pé atrás com tanta efusividade. E se num grupo de cem pessoas todas resolverem dar bom dia? Passaremos a manhã respondendo aos bons dias uns dos outros. Enfim, coisa de ranzinza, acho que passar dos cinquenta me deixou mais chato do que eu já era.

    Por falar em ranzinzice, também venho pegando ar, como dizem, com outras coisas.  E expressões. Como “namastê” e “muito axé”, saudações bacanas que originalmente saiam do lugar comum mas hoje, pelo excesso  de uso, inclusive de maneira indevida,  entrou no meu index pessoal de rejeição.  E que nem se pense em restrição por viés religioso.  Também por excessos de “fiquem com deus” e “deus te abençoe” sou capaz de sair do grupo ou bloquear o cristão, digo, a pessoa.  Preferências religiosas sim, grupos de zap e comunicação interpessoal pelas redes à parte.

    Enfim, minha chatice final nesse desabafo de Dom Casmurro que se tornou essas mal traçadas linhas, fica com a expressão multi utilizada há um tempo, “beijo no coração”. Se beijo, algo externo e corpóreo, o estalar dos lábios na pele, é dado justamente por isso em lugares externos – lábios, bochechas, mão, pescoço – como idealizar um beijo em um órgão externo. Um beijo no seu fígado, então. Valeu, beijo na traqueia. Mas, chatice à parte, aceito de bom grado beijos no coração quando de gente querida e com boa intenção. Mas podem me mandar bom dia com apenas um “a” no final que vou apreciar.

  • Cavaleiro andante

    Por Cefas Carvalho

    Sou um cavaleiro andante. Por Deus que, com minha arma e meu escudo, honrarei o brasão de minha família e não perecerei nas mãos destes malditos que me perseguem! Se me escondo neste aposento escuro deste castelo amaldiçoado é porque os infiéis são em grande número e preciso permanecer vivo para defender meu rei e meu castelo. Os malditos querem me capturar e me submeter a incontáveis torturas. Ouço ruídos e percebo que os vilões estão atrás de mim. Preciso fugir deste calabouço e partir para minhas nobres epopéias, matando dragões e salvando donzelas. Sou um cavaleiro andante, repito, e com minha armadura e minhas armas, levo a justiça até os confins do Reino, com a benção do meu rei, imperador destas terras, e de Deus Nosso Senhor. Empunho minha espada sagrada e aguardo os ímpios adentrarem o aposento. Gritos de guerra e urros quase bestiais. Percebo que a legião de feiticeiros, todos de branco, começa a me cercar. Dois dos mandriões carregam consigo um pano mágico, com o qual querem me aprisionar. Outro feiticeiro tem entre os dedos a agulha do demônio… Não se aproximem de mim, seres infernais, afastem-se de um cavaleiro ungido pelo rei, larguem-me cães do inferno…

                                                                 *

    – João, onde coloco essa vassoura?

    – Lá no almoxarifado. Rapaz, hoje o homem estava brabo. Ele segurava a vassoura como se fosse uma espada…

    – Esse aí está cada vez mais doido. Trabalhar em hospício é assim mesmo, meu caro…

    – Mas com a injeção que tomou, vai dormir até amanhã. Ei, hoje tem jogo lá no caminho do bairro?

    – Rapaz, acho que sim. Bater uma bola é bom depois de um dia desses. E o cara gritando que ia salvar princesas, hein?…

  • Cachorro quente ou hot dog?

    Dia desses conversava com uma pessoa querida sobre as muitas diferenças culturais gastronômicas nesse Brasil continental. Afinal de contas, cada estado, cada região, cada capital tem uma maneira própria não apenas de fazer comida como de se alimentar e ainda mais de denominar os pratos e guloseimas. O que é Bauru em São Paulo é outra coisa em Recife, São Luís ou Goiânia. O X-tudo de Fortaleza é completamente distinto do X-tudo do Rio de Janeiro.  Na capital paulista se come cachorro quente com purê de batata, algo impensável em Natal, onde se prepara a iguaria com ovo de codorna. E por aí vai.

    Neste papo acabei recordando de uma experiência minha em um país culturalmente autônomo dentro do próprio território nacional, assim como o Vaticano para a Itália e Mônaco para a França. Falo do país de Mossoró, claro, local onde morei nos anos 90. Mais que da experiência, recordei de um texto bem humorado que escrevi em agosto de 2006 (olha só que já se passaram 17 anos!!!) para a brava revista Papangu, do amigo Túlio Ratto, a sensação editorial do RN naqueles tempos em que a internet ainda engatinhava. Como muita gente não chegou a ler ou mal lembra do causo, peço licença a Túlio  e à querida Ana Cadengue para republicar aqui neste espaço. Lá vai:

    *

    Receoso de ferir os brios patrióticos dos amigos e amigas do país de Mossoró, resisti bravamente a escrever o texto que se seguirá. Temia que ele colocasse mais lenha na centenária rixa entre natalenses e mossoroenses, com os primeiros geralmente tecendo piadas ferinas e comentários maldosos a respeito do comportamento das gentes de Mossoró.

    Contudo, durante recente confraternização cultural (e etílica) na 1ª Feirinha de Livros de Currais Novos, o comandante em chefe da Revista Papangu, Tulio Ratto, garantiu não somente a publicação de tal texto sem censuras como minha integridade física (tendo em vista a pouco hercúlea compleição física de Tulio, não estou certo que sua garantia de segurança me valerá de muita coisa…). Ainda assim ganhei coragem para escrever sobre uma aventura gastronômica que vivi na terra de Santa Luzia. Que os amigos Cid Augusto e Kydelmir Dantas, pacatos e bons companheiros, que viram gladiadores na hora de defender Mossoró, me perdoem.

    Bem, vamos à história. O episódio aconteceu nos idos de 1992, quando eu acabava de ter o prazer de entrar na redação da Gazeta do Oeste, nos bons tempos em que Canindé Queiroz comandava uma equipe de até hoje bons amigos como Carlos Santos, Cesar Santos, Gutemberg Moura, Augusto Paiva, Emerson Linhares, e outros. Mas, deixemos de nostalgia. O fato é que eu acabava de chegar a Mossoró, cidade que conhecia apenas superficialmente, e ainda não havia me detido na vida cotidiana e nas particularidades mossoroenses.

    Na minha primeira semana, lanchava (e almoçava, diga-se) baurus no trailer de Titi, ao lado da Gazeta. Em uma bela tarde, o trailer se encontrava fechado e resolvi sair a esmo pelo centro à procura de uma lanchonete. Numa rua, cujo nome não recordo, lá perto do lendário Restaurante do Mathu, descobri uma lanchonetezinha. Estava vazia e parecia agradável, apesar de simples. Senti ao balcão caçando o cardápio ou coisa que o valasse. Inútil.

    Por fim, surgiu da cozinha um rapaz resmungando um boa noite que mais parecia um convite para me retirar. Resolvi ficar, e perguntei se tinha algum salgado, tipo pastel ou empada. Secamente, ele respondeu que não. Perguntei então se tinha cachorro quente… O cidadão coçou a barba por fazer e disparou: “Amigo, você quer cachorro quente ou hot dog?”. Senti no momento um vazio mental, tal a irrealidade da pergunta.

    “Mas, qual a diferença entre um e outro?”, perguntei, inocentemente. O cara me olhou como se eu fosse imbecil – talvez o fosse, naquele instante – e respondeu, todo senhor de sua secura: “Cachorro quente é com carne moída, hot dog é com salsicha!”. “Ah, é claro…”, concordei, como se respaldando uma verdade absoluta. Acostumado que era a comer os tradicionais cachorros-quentes com salsicha, à moda americana, lá no jurássico Passport, na Praça Cívica, em Natal, desde a mais tenra infância, deveria ter optado pelo que conhecia. Mas, a vontade de desbravar culinárias estrangeiras falou mais alto. “Me veja um cachorro quente aí”, pedi.

    O camarada foi para a cozinha. Retornou logo trazendo em um prato azul, um pão cheio de carne e verduras, fumegante e cheiroso. Contudo, um detalhe: no prato, garfo e faca! Educadamente, peguei os talheres e coloquei-os no balcão. “Obrigado, mas não vou precisar”. O rapaz nada falou. Empolgado, com o aroma, puxei dois guardanapos de papel e avancei as mãos para o prato, dando início à minha tragédia. Mal levantei o pão à boca, o bicho começou a se liquefazer. Nervoso, inclinei o pão, derramando um caldo marrom em minha calça jeans. Ainda mais nervoso, coloquei o pão no prato e ele – já mais líquido do que sólido – praticamente se desmanchou. Olhei para a calça e parte da camisa, todas sujas e pensei em protestar, quando reparei na expressão impassível do cidadão, me olhando com a superioridade natural que um nativo de Mossoró encara forasteiros de culturas primitivas. Concluí que era inútil reclamar. O culpado, afinal de contas, era eu. Olhei para o cachorro quente que havia pedido, na verdade quase uma sopa, e não um sanduíche. Não havia como resistir àquele caldo onde boiavam pão molhado, carne, cebola, tomate e pimentão. Recolhido à minha insignificância, olhei com humildade para o sujeito, que esboçava um sutil sorriso nos cantos da boca e pedi: “Amigo, por favor, me veja garfo, faca e uma colher…”