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Memórias de um estômago ferido

Meu estômago tem traumas. Ele não fala — porque é um estômago —, mas se expressa em arroto, azia e uma saudade profunda de quando as coisas eram mais simples: um feijão, um arroz, uma rapadura esfarelada no canto da boca, a melancia natural nos dias de inverno, o caju mastigado, deixando rastros e nódoas, como quem mastiga o próprio sertão.

Na infância, meu estômago não era ferido. Era só faminto. Mas não daquele faminto triste da TV — era faminto de imaginação. O estômago de uma criança pobre no sertão aprende cedo a improvisar: onde o mercado vê carência nutricional, ele vê oportunidade criativa. Não tinha carne? Vai de farinha com banana. Não tinha banana? Vai só de farinha com café. E se acabasse a farinha? Ora, jejum é prática espiritual em tantas religiões…

A primeira vez que vi alguém recusar comida porque “não era frango, era peixe” quase enfartei. Não pela escolha, mas pela liberdade. Isso era luxo de novela, com cenário em São Paulo e trilha da Marisa Monte. Eu, nessa época, era mais devoto do que o padre: comia o que aparecia e ainda agradecia.

A verdade é que fome e orgulho caminham lado a lado no sertão. Recusar comida em casa de vizinho era gesto de honra. Meu estômago aprendeu a engolir seco, mas a alma mantinha a postura. E assim fomos sobrevivendo, eu e ele, sem muita gordura, sem muitos luxos, com a leveza triste de quem sonha com um pastel de feira, mas se contenta com cheiro de óleo no ar.

A vingança veio quando comecei a trabalhar. A carteira assinada me deu algo ainda mais poderoso do que dignidade: acesso ao self-service. Meu estômago, coitado, achou que era o fim da guerra. Mal sabia ele que era só o começo de outra.

Porque aí veio o excesso. Comi o que quis, quando quis, como quis. Em duas décadas, minha barriga já lembrava aquele pastor da infância que desperdiçava comida — só que no meu caso, eu armazenava. Comida virou muleta emocional, prêmio, consolo, meditação. E o estômago, esse velho companheiro, começou a gritar: “assim não, meu filho!”.

Vieram o colesterol, a gordura no fígado, o pré-diabetes. Os exames viraram oráculos e o nutricionista, um padre moderno que proibiu todas as minhas alegrias em nome da salvação. Troquei a feijoada por batata, a coxinha por maçã e a cerveja por água com limão.

Hoje, olho meu prato e quase peço desculpa ao menino de antigamente. Aquele que corria feliz com rapadura no bolso, sem saber que um dia o corpo ia virar esse campo minado. Meu estômago, veterano de guerra, parece suspirar em cada refeição: “Lembra quando a gente só queria um pouco mais de comida?”

Agora, a comida é medida, pesada, orgânica. Mas o gosto… o gosto não é o mesmo. Porque fome é cruel, mas a nostalgia é um tempero que nenhum nutricionista sabe dosar.

Escrito por Paiva Rebouças

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