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MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA DA INFÂNCIA RAIZ

A Missão Impossível: Pasta de Dente

Dia desses, durante o ritual matinal de higiene, me dei conta de algo gravíssimo: o tubo de pasta de dente estava quase vazio. Na “peinha” de nada. No armário do banheiro, nenhum reserva à vista. Com preguiça de me dirigir até o DDPHP (Departamento Doméstico de Produtos para Higiene Pessoal), me peguei esfregando o cabo da escova no tubo, em busca dos últimos resquícios do precioso produto. Quem nunca, né?

Enquanto realizava essa operação arqueológica, veio-me à mente aqueles tubos de pasta medievais, feitos de uma liga metálica (alumínio + estanho), que, de tanto serem raspados, largavam a pintura. E aquele invólucro bizarro e de alta periculosidade enferrujava! O incauto usuário corria o risco de ingerir ferrugem, arranjar uma grave inflamação no esôfago ou cortar um dedo e ser vitimado pelo tétano. Que vida insalubre! Que maravilha de invenção da humanidade foi o tubo de pasta feito de plástico!

A Pré-História da Higiene Infantil

Viajei no tempo e comecei a me lembrar de algumas coisas que transformavam nossa meninez na antiguidade – nasci em 1961 – em uma verdadeira batalha pela sobrevivência.

Quando criança, piolhos e lêndeas eram tratados com Neocid, um veneno em pó aplicado diretamente no couro cabeludo. Quem nunca ouviu aquele barulhinho “plac, plac, plac” enquanto o pozinho maligno se espalhava por entre os cabelos, não imagina a aventura que era ser criança no final da década de 60 e durante a de 70. Aquele “talquinho” fedorento causava problemas respiratórios e podia provocar o amolecimento do couro cabeludo e o enfraquecimento dos miolos.

Gastronomia de Risco

Se hoje 90% da população adulta brasileira – quiçá mundial – na faixa dos 60 (ou menos), sofre com refluxo gastroesofágico e tem instalada em seu intestino a tal bactéria Helicobacter pylori, é porque, quando pirralho(a), tinha como lanche tradicional Ki-Suco, Q-Refresco, suco de “tamarina”, maracujá e “quetais”, acompanhados de broa, tapioca, orelha de pau, tareco, cuscuz, pão doce etc. Os primeiros sintomas de azia surgem na infância e já está cientificamente comprovado (pesquisa minha) que quem consumiu essa bomba gástrica durante a puerilidade da vida estava seriamente condenado a adquirir uma úlcera antes dos 14.

E o que dizer do almoço de “fussura” de porco acompanhado de pirão de gordura, que os fedelhos comiam de se lambuzar? Os colesteróis e os triglicerídeos fazem a festa até hoje. Sobremesa? Açúcar com farinha. Bem-vindos, glicoses e carboidratos!

— Mãe! Essa comida tá “pia”. Não tem quem coma.

— Besteira, menino. Hoje eu errei a mão. Um pouquinho de sal a mais, não faz mal a ninguém.

Muito prazer, senhoritas sistólica e diastólica.

Treinamento Militar Infantil

As brincadeiras de rua também não eram lá muito salutares. Quando morava na Av. Alberto Maranhão, em frente à praça do Mercado Novo, em Mossoró, rolavam, em dia marcado com antecedência (e não precisava de zap ou Instagram), guerras de pedras entre os bairros do Alto da Conceição e Pereiros.

Dessa “brincadeira”, os mais novos, com idade entre 10 e 11 anos – tipo eu –, não participavam. Nessas noites bélicas, não colocava os pés na rua nem pra ganhar dinheiro. Mamãe perguntava logo se eu estava doente, e papai, quando percebia meu estado “borocoxólico”, já me empurrava goela abaixo duas “lapingochadas” de Emulsão Scott — um instrumento de tortura muito usado pelos pais naqueles tempos. Óleo de fígado de bacalhau! Ô troço ruim da “mulesta”!

Quanto às batalhas campais, menos mal que a distância entre os dois “exércitos” era de uns 300 metros, e os “guerreiros” não eram muito bons de pontaria. Aqui e acolá aparecia um “ferido” com um galo na testa, exibido como um troféu de guerra entre toda a “estupefacta” e orgulhosa tropa.

O Esporte Sangrento

Jogar bola no meio da rua não era para os fracos. Arrancar um “chamboque” do dedão do pé no calçamento era comum entre os destemidos atletas infantis. E nada de abandonar o jogo. Tinha que permanecer até o fim, jogando com o pé apoiado no calcanhar. Pense numa “pereba” horrorosa que se formava quando aquilo inflamava! E ainda tinha que ir para a escola com um pé no “conga” e outro no chinelo. Joelho esfolado? Bobagem. Todo herói carrega pelo resto da vida suas cicatrizes nas articulações sinoviais.

Dentre as brincadeiras de jogo de bola no meio da rua, havia uma de altíssima periculosidade: Resta Um. Nada a ver com aquele joguinho inocente de tentar deixar apenas uma peça sobrando num tabuleiro plástico cheio de furos em formato de cruz. Era o seguinte: o mais velho ia para o gol (a trave era uma das portas do Mercado Novo) e os demais – nunca menos de 20 – tinham que ficar correndo atrás da bola tentando fazer um gol. Quem alcançava a façanha se retirava do jogo, e assim continuava até restar apenas um. Prêmio do infeliz: atravessar um corredor polonês levando cocorote no “cucuruto” de todos os outros jogadores. Apesar de não ser nenhum ás do esporte bretão, nunca tive que encarar o temido corredor. Sorte de perna-de-pau.

A Sombra do Opala Preto

E ainda havia o risco de ter que encarar o temido “Opala Preto”! Em alguns dias, durante a peleja noturna, ele surgia fazendo ronda em nossa região e avançava na direção dos distraídos “peleiadores”, quase atropelando todo mundo.

Depois de muitos sustos, estabeleceu-se que, antes do início de cada jogo, um garoto da turma seria sorteado para exercer a função de “pastorador” do “Opala Preto”. E não adiantava estrebuchar. Regras de turma são regras de turma e existem para serem acatadas. Ao grito de: “Lá vem o carro preto!”, a correria era grande e não sobrava um no meio da rua pra contar a história.

Diz a lenda que, em outra rua próxima à nossa, uma turma desprevenida – que não adotou o “pastorador” – foi atropelada, e alguns dos seus integrantes foram parar no hospital.

Sobreviventes com Cicatrizes e Histórias

Bons tempos, aqueles! Entre guerras de pedra, comida explosiva, óleos de fígado traumáticos e futebol raiz, a gente cresceu. E apesar das sequelas de várias espécies, ainda estou por aqui, firme e forte (eu acho, né?), para contar essas histórias.

PS. Adaptado de texto publicado originalmente na Edição de Junho/2021 da Papangu na Rede.

Escrito por Marco Túlio

Revivendo