A cada ciclo eleitoral no Brasil, renova-se o debate sobre a força e o futuro da esquerda no país. Ao final de cada eleição, a análise crítica é sempre contundente: a esquerda brasileira parece viver numa corda bamba, oscilando entre o sucesso e o fracasso. Mesmo quando a esquerda vence, como foi o caso da eleição presidencial que trouxe novamente o PT ao poder, há uma sensação constante de incerteza sobre a solidez e as consequências dessa vitória.
Tomemos como exemplo a eleição para prefeito em Natal. Antes disso, vale destacar números da eleição de 2022 para presidente e governador na capital do RN:
Presidente: Lula – 246.881 votos (52,96%); Bolsonaro – 219.306 votos (47,04%).
Governador: Fátima Bezerra (PT) – 205.934 votos (49,93%). Eleita no primeiro turno com 58,31% dos votos no estado.
Entre essas duas votações realizadas simultaneamente houve uma diferença de 40.947 votos entre os candidatos do PT, o que é, no mínimo, intrigante. Um verdadeiro enigma, eu diria. Avancemos agora para a eleição municipal apenas dois anos depois.
Foi surpreendente para muitos, que a candidata do PT, Natália Bonavides, chegasse ao segundo turno contra Paulinho Freire, candidato apoiado pelo prefeito atual e, por extensão, por Bolsonaro. No primeiro turno, Paulinho recebeu 44,08% dos votos, Natália ficou com 28,45% e Carlos Eduardo, ex-prefeito, eleito e reeleito duas vezes e ainda muito paparicado pelos eleitores natalenses, obteve 23,95%. Agora eu lhes pergunto, companheiros e companheiras: como assim surpreendente?! Natália foi a candidata do presidente da República e da governadora do Estado, super bem votados nas eleições de 2022! Surpreende, é ela ter chegado ao segundo turno com apenas 110.483 votos. Menos da metade dos votos de Lula e um pouco mais da metade dos votos de Fátima Bezerra na eleição de 2022. Mas, como dizem os entendidos, segundo turno é outra eleição.
A campanha de Natália no segundo turno foi intensa. O povo foi às ruas, Lula participou de um dos últimos comícios – uma festa maravilhosa! –, criando uma magnífica onda de otimismo. No entanto, Paulinho Freire venceu com absurdos 222.661 votos (55,34%), enquanto Natália somou 179.714 (44,66%). Essa derrota adiciona mais um elemento ao complexo “Decifra-me ou te devoro”, que acompanha a esquerda brasileira desde sempre. Senta, que lá vem história!
A frase “Decifra-me ou te devoro” remete ao desafio lançado pela Esfinge de Tebas aos viajantes que passavam pela cidade. Quem encontrasse a Esfinge deveria decifrar seu enigma ou pagar com a vida. O enigma era: “O que é que de manhã tem quatro patas, de tarde tem duas e de noite tem três”? Édipo decifrou o enigma ao responder que se tratava do ser humano, “que engatinha quando bebê, caminha ereto quando adulto e usa uma bengala na velhice”. A solução do enigma levou a Esfinge de Tebas ao suicídio, pulando de um despenhadeiro.
A esquerda brasileira, por sua vez, é um enigma que ainda não foi completamente decifrado. E, sinceramente, não me sinto à altura de ser o Édipo dessa história. Entretanto, há pontos que merecem reflexão.
Apesar das sucessivas conquistas eleitorais – presidência, governos estaduais e municipais, cargos legislativos – falta a esquerda brasileira uma base sólida e uma conexão estreita com a população mais pobre e vulnerável, que deveria ser seu eleitorado natural. Por que, então, a esquerda, historicamente defensora dos trabalhadores, luta tanto para consolidar uma representação estável e mobilizadora junto a esse eleitorado?
Um fator, é a necessidade de formar coalizões amplas para vencer eleições, como no caso do PT, que muitas vezes precisa negociar com partidos de centro e até grupos conservadores. Essa estratégia, embora pragmática, muitas vezes dilui os princípios fundamentais da esquerda e limita a implementação de uma agenda progressista consistente.
Além disso, há a barreira do Congresso Nacional, dominado por uma maioria conservadora. Isso cria a sensação de “ganhou, mas não levou”, já que muitas pautas progressistas ficam travadas.
Outro ponto central, é o voto da população mais pobre. A esquerda desenvolveu seu discurso em torno da defesa dos direitos dos trabalhadores, da redistribuição de renda e da justiça social. Porém, o apoio dos setores mais vulneráveis, não é tão automático quanto se espera. Muitas vezes, discursos mais simples e diretos sobre ordem, segurança e moralidade, comuns na direita, têm maior apelo. Enquanto isso, temas complexos defendidos pela esquerda não chegam de forma clara às bases populares.
Acrescente-se a essa constatação, a dificuldade da esquerda em se reconectar com um eleitorado que vem se transformando nas últimas décadas: a classe média emergente, que ascendeu economicamente durante os governos petistas e tornou-se uma base volátil, inclinada a votar contra partidos de esquerda em busca da manutenção de conquistas individuais, como o consumo e a estabilidade econômica.
Há, também, uma percepção de que os governos de esquerda, quando no poder, falham em cumprir suas promessas ou não conseguem enfrentar os desafios impostos por uma estrutura política que favorece demasiadamente os interesses das elites.
Os números das últimas eleições municipais, tornam evidente que a esquerda não vem obtendo sucesso em sua luta para renovar o seu discurso e se conectar com essas novas demandas eleitorais. É necessário se reaproximar das bases populares, incorporando suas carências e valorizando suas vozes. Só assim será possível se reafirmar como uma força política que não apenas ganha eleições, mas que transforma a sociedade.
Para Refletir: O Papel da Mídia e a Questão do Poder
Em dezembro de 2019, durante o Curso de Jornalismo da UFRN, participei de uma mesa-redonda intitulada “Veias Ainda Abertas da América Latina – Mídia e Poder”. O debate focou na influência dos grandes grupos midiáticos e no seu papel determinante na disputa de narrativas, quase sempre alinhado aos interesses das elites predatórias e do capital estrangeiro. Um dos pontos discutidos foi a ausência, durante os governos do PT, de um projeto estratégico de poder, especialmente no campo da comunicação, que pudesse minimizar essa influência maléfica.
Entre os palestrantes estava o mestre Arnon de Andrade, professor e pesquisador do Centro de Educação da UFRN, que infelizmente faleceu em setembro passado. Em sua fala inicial, com a serenidade que lhe era característica, Arnon trouxe uma reflexão marcante sobre a posição da esquerda brasileira. Talvez não com as mesmas palavras, mas o sentido era este:
“A esquerda no Brasil nunca teve um projeto permanente ou duradouro de poder. O poder continuará nas mãos da elite conservadora e capitalista, uma realidade secular. A esquerda vive de lutas e conquistas, sejam elas grandes ou pequenas, que precisam ser celebradas enquanto duram”.
Essa visão de Arnon, poderia ser uma chave para compreender o “enigma da esquerda brasileira”?