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OU O BRASIL ACABA COM AS BETS OU AS BETS ACABAM COM O BRASIL

Entre 1816 e 1822, o naturalista e botânico francês Auguste de Saint-Hilaire viajou pelo Brasil para estudar a fauna e flora locais. Durante suas explorações, ele se deparou com as formigas gigantes conhecidas como saúvas. Assombrado com o poder destrutivo desses insetos que facilmente devastavam árvores frondosas, arbustos, pastagens e gramados, terras e lavouras, dificultando assim, o plantio e o progresso da agricultura nacional, ele proclamou: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.

Duzentos anos se passaram, e a “nostradâmica” previsão de Saint-Hilaire, não se confirmou. As saúvas não destruíram o Brasil, o seu impacto foi controlado e, apesar de seus efeitos negativos sobre as plantações, elas desempenham um papel vital na ciclagem de nutrientes e na aeração do solo através do corte de folhas.

No entanto, a célebre frase do francês, que chegou a ser atribuída equivocadamente ao escritor Monteiro Lobato, notabilizou-se. Continua atual e serve como uma poderosa analogia para os diversos males que assolam o Brasil, dependendo do viés ideológico de cada um.

Se o assustador inseto da família Formicidae, ordem Hymenoptera e gênero Atta está sob controle, outras “saúvas” devastadoras e depredadoras do meio ambiente, continuam a contribuir, sem dó e nem piedade, para a destruição de nossas florestas e lavouras naturais: o garimpo ilegal, a urbanização desordenada, o contrabando de madeira, a grilagem de terras, a poluição do ar e das águas, os desastres ambientais causados pelo homem e o agronegócio. Este último, uma “saúva” colossal, que domina a política e a economia nacional à custa do desmatamento desenfreado, do trabalho escravo, da corrupção, e, diga-se de passagem, de muita música ruim.

Atualmente, diante do vasto noticiário sobre tragédias sociais e econômicas envolvendo as apostas online ou as bets, podemos afirmar que enfrentamos uma nova e ameaçadora “saúva”, completamente fora de controle. Desde a regulamentação das apostas online em 2018, durante o governo do então presidente Michel Temer, a prática de jogos de azar cresceu exponencialmente no Brasil.  Hoje, o país é o terceiro maior mercado de apostas do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da Inglaterra, segundo dados da Comscore, empresa especializada em análise de dados.

Em entrevista ao site Pauta Pública no dia 3 de setembro, o psicólogo e pesquisador Altay de Souza, que atua no Departamento de Psicobiologia da UNIFESP, Centro de Comunicações e Ciências Cognitivas da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECAUSP) e no Núcleo de Estudos sobre Violência da USP, alertou para os perigos de “uma epidemia ainda silenciosa, oculta nas telas de celulares”. Ao falar sobre as consequências psicológicas e financeiras do crescente fenômeno de apostas no Brasil, ele enfatizou: “O vício em apostas online pode ser comparado a uma epidemia de saúde pública.”

Um relatório do Banco Central, divulgado no dia 24 de setembro, aponta que, nos primeiros oito meses deste ano, o fluxo de dinheiro no setor de apostas online atingiu R$ 160 bilhões, envolvendo mais de 24 milhões de apostadores em todo o país. O relatório revela também que R$ 3 bilhões foram movimentados por cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família, com um gasto médio de R$ 147 por pessoa. Esses números são alarmantes.

A repercussão desses dados incomodou o presidente Lula, que se mostrou favorável à restrição de apostas para beneficiários do Bolsa Família e solicitou que a Casa Civil e à Fazenda incluam na regulamentação das apostas online, um controle específico para contemplados pelo programa social.

A questão central do problema, envolve a publicidade excessiva e desregulamentada das bets. Em matéria do Jornal de Brasília do dia 15 de outubro, o professor Bruno Pompeu, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que estuda o tema, afirma que “as pessoas acham que a questão das apostas é mais importante do que a publicidade das apostas, mas elas são inseparáveis. Só existe o mercado das apostas porque, antes, existe a publicidade delas”.

Em entrevista à rádio CBN, no dia 30 de setembro, o ministro da Fazendo Fernando Haddad, reiterou a proibição do uso de cartão de crédito e do cartão do Bolsa Família para apostas. Ele também afirmou que a publicidade em torno das bets está “fora de controle”.

Por que, então, a publicidade das casas de apostas online não recebe o mesmo tratamento dado à dos cigarros anos atrás? No Brasil, a propaganda de cigarros nos meios de comunicação de massa, como rádios, tevês e jornais, está proibida desde 2000, assim como o patrocínio de eventos culturais e esportivos.

Infelizmente, o que vemos hoje no Brasil é um bombardeio midiático das casas de apostas, que tentam, a todo custo, vender a imagem de “jogo responsável”, “entretenimento saudável” e “diversão segura”.

A BetNacional, uma das mais poderosas empresas do setor de apostas, patrocinadora e parceira da Rede Globo em diversos eventos esportivos e de entretenimento, lançou, em meados de setembro, uma nova campanha publicitária com Galvão Bueno como seu embaixador-mor. Personagem midiático de grande sucesso, super bem-sucedido e multimilionário, Galvão agora é o rosto da BetNacional.

Essa casa de apostas online, que se autodenomina “a bet que você confia”, “a bet dos brasileiros” e “uma bet diferente”, promove-se como fornecedora de “entretenimento de qualidade”, sem qualquer constrangimento. E para fortalecer ainda mais sua imagem, conta com um elenco de peso em suas campanhas, incluindo personalidades como Vinícius Júnior, Thiaguinho, Ludmilla e Seu Jorge.

É lamentável e profundamente preocupante ver figuras públicas tão influentes, ídolos de milhões, com grande poder de persuasão e engajamento, associando suas imagens a esse tipo de atividade. Além de controversa, essa situação levanta um sério dilema ético: como essas personalidades podem conciliar a responsabilidade social, tantas vezes destacada em seus discursos e trajetórias de vida, com os ganhos pessoais e financeiros oriundos de parcerias que são, no mínimo, questionáveis, ou por que não, esdrúxulas?

O vínculo financeiro entre celebridades do meio artístico e esportivo e as casas de apostas online – e a publicidade da BetNacional é apenas um exemplo entre milhares – é alarmante e reforça a urgência da regulamentação da publicidade dessa atividade, que se revela extremamente prejudicial à população.

E é paradoxal que o futebol, principal esporte que alimenta as bets, também seja alimentado por elas. Dos 20 clubes da Série A do Brasileirão, 15 são patrocinados por casa de apostas, e na Série B, todos os clubes recebem esse tipo de patrocínio. As duas principais competições promovidas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), levam o nome de uma bet: o Campeonato Brasileiro, virou o Brasileirão Betano (Séries A e B) e a Copa do Brasil, agora é Copa Betano do Brasil.

A bet Casa de Apostas não patrocina clubes diretamente, mas está associada à Copa do Nordeste, competição da qual é patrocinadora master, e dá nome a dois estádios no Brasil: a Casa de Apostas Arena Fonte Nova, em Salvador, e aCasa de ApostasArena das Dunas, em Natal.

Os casos de jogadores envolvidos em manipulação de apostas online estão se multiplicando em todo o mundo. Um exemplo notório é o de Lucas Paquetá, jogador do West Ham da Inglaterra e da Seleção Brasileira, que está sob investigação da justiça inglesa por suspeita de fraudes em apostas realizadas por parentes e amigos de sua cidade natal (Paquetá/RJ) em jogos nos quais recebeu cartões amarelos suspeitos. Se for considerado culpado, poderá ser banido do futebol.

Em fevereiro de 2023, a Operação Penalidade Máxima, liderada pelo Ministério Público de Goiás, revelou um esquema de manipulação de resultados envolvendo jogadores e apostadores que lucravam com apostas em partidas de futebol no Brasil. No total, 22 jogadores foram punidos pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD): 5 foram banidos permanentemente do futebol, 1 foi liberado após pagar uma multa, 7 foram suspensos por 360 dias, 4 por 600 dias, e 5 por 720 dias.

Esses casos evidenciam um mercado obscuro que movimenta bilhões de reais anualmente, favorecido pela falta de controle governamental e sustentado pela cumplicidade de diversos setores da economia, como o mercado publicitário, grandes conglomerados midiáticos, empresários, políticos, atletas e ex-atletas, artistas e influenciadores digitais.

Em meio a essa “picaretagem” digital, as principais vítimas são os apostadores, conscientes ou não, que, seduzidos pela promessa de lucro fácil, acabam acumulando dívidas impagáveis. Isso compromete não apenas suas finanças, mas também seu bem-estar emocional, levando a problemas como depressão, ansiedade, e até a perda de empregos e o fim de relacionamentos.

Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em 26 de setembro, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, destacou a necessidade de uma “avaliação crítica” sobre a situação atual do mercado de apostas on-line: “Subestimamos os efeitos nocivos e devastadores sobre o que isso causa à população brasileira. É como se a gente tivesse aberto as portas do inferno. Não tínhamos noção do que isso poderia causar, principalmente essa ação muito ofensiva das casas de jogos e o uso de publicidade extrema”.

Gleisi poderia ter encerrado suas considerações recorrendo ao poder analógico da célebre e bicentenária frase de Saint-Hilaire. Como não o fez, faço eu: “Ou o Brasil acaba com as bets ou as bets acabam com o Brasil”.

Escrito por Marco Túlio

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