Sobre ,

Revivendo

Por Natália Chagas

Eu que te sinto no tambor auditivo quando não fala meu nome. Te sinto a carne trêmula da pele alisada por um dedo que perpassa coluna, ombros, seios. Te sinto pés em pés na hora de dormir. Te sinto o gosto de alho da língua que me roça os dentes. Te sinto os cabelos cada dia mais brancos ao passar dos anos. Lembro como ontem minha mão passando por entre seus cabelos longos e rebeldes, jovens como nossa utopia. Hoje fotos, rugas e o silêncio calmo de quem não precisa dizer nada fazem memória de uma vida inteira.

Me descarto como peça essencial de sua vida ao sentir seu perfume na vizinha logo cedo quando compro seu pão. Paro em um canto invisível para ouvir mais claramente a deslumbrada criança de vinte e sete anos contar a uma amiga sobre sua perspicácia de contar sobre um livro que nunca leu, mas ouviu de mim. Ela termina a conversa de amor com esperanças de que você terminará o casamento.

Eu que ando pelas ruas sem enxergar o caminho, indo de memória para a porta que abre daquela que seria a construção do nosso lar. Paro e observo desmoronar sonhos e lutas que travamos juntos. Preparando seu almoço, recebo seu áudio me dizendo que marcaram na firma em um restaurante lá perto. Sem muitas explicações ou um beijo de despedida como fazia antes.

Eu que sinto meu coração gelar e um pedaço da minha alma se esvair. Deve ser isso que chamam decepção. Junto dela caminham o desamor e a solidão. Perco a fome e o rumo do meu entorno sentada no chão do banheiro sem mais o que fazer.

Eu que me despedaço em lágrimas após você ir dormir sem me dar um beijo sequer de boa noite. Ando pela casa vendo fotos de aniversários, carnavais e natais em família. Me perco nos sonhos de sermos felizes para o resto de nossas vidas como se fosse algo real. Vejo pedaços de nós sendo desconstruídos a cada promessa sendo quebrada.

Eu que me tomo de ódio por você não me querer mais há tanto tempo. Acho culpas dentro de mim mesma, trago à superfície as mágoas daquilo que não fiz e o eterno “e se” que nunca existiu. Me absolvo e começo a pensar que a vida deve continuar apesar de não saber como. Tanto zelo e calma para tratar das pequenas, grandes coisas que acreditei nos unir por tanto tempo.

Eu que me desespero na madrugada adentro não conseguindo enxergar o que fazer de mim mesma. A cada escuridão do céu, me definho entre a amargura e o anseio de ser feliz mais uma vez. Descubro que esse papel já não lhe cabe. Me recrio em situações imaginárias entre outras pessoas e lugares. Eu que nunca esquecerei de você, que foi meu grande amor.

Meu querido, faço, em silêncio, minhas malas sem rumo por não suportar a ideia de ser abandonada. Olho o corredor que nunca conseguimos decorar com as malas no chão. Ele é limpo como o futuro que me aguarda.

Eu que abro minha porta, chamo meu elevador, ligo o meu carro e saio em busca de um lugar verdadeiramente meu.

Natal fotografada durante a Segunda Guerra Mundial

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA DA INFÂNCIA RAIZ