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Gol de placa

Por Natália Chagas

Domingo de jogo era sempre igual em Buraquinhos. Logo cedo, o resto de grama do campo era aparado e a terra era molhada para ser batida e nivelar perfeitamente com o verde que disputava espaço dentro das quatro linhas desenhadas em giz meticulosamente por Astrogildo. Ele era um senhor nos seus quase sessenta anos que, assim como o restante da cidade, era apaixonado pelo time Asa Vermelha, e fazia aquele trabalho com cuidado, amor e de graça.

Enquanto isso, pela cidade afora, os bares já lotavam de homens, mulheres, crianças e idosos, gente de todo formato bebendo e apostando de quem seria o gol daquela vitória certa, como haveria de ser, do Asão, como era popular e carinhosamente chamado na região. Era o único time da cidade, e o então campeonato era regional, disputado por times de cidades próximas como o Liberdade de Formosa, Autêntico de São Domingos de Piraí e Flamingos de Itacaraí. Os quatro times foram para o mata-mata das semifinais, e restou a disputa final para o time buraquinense e Liberdade em dois jogos. O primeiro jogo se deu em Formosa, cidade a trinta quilômetros dali com o placar de dois zeros, um para cada lado. O torcedor rubro se encheu de certezas da vitória do orgulho da cidade porque, como diz o lema da casa: “contra Asão, nada pode.”

A rádio local, única transmissora dos jogos, tinha feito um sorteio em promoção daquele jogo, em que um torcedor sortudo teria o privilégio de assistir da cabine de transmissão os últimos trinta minutos do jogo junto com sua estrela maior que era o locutor Waldir Correia, a voz trovão do Asão. Com o seu bordão, “O gol do Asão sai da voz Trovão de Waldir Correia”. Este quase personagem fazia grande sucesso entre os moradores da cidade. Ele era adorado por crianças, admirado por adultos e respeitado pelos idosos. Houve, então, uma quantidade absurda de inscrições na igreja, que ao doar material para a reforma paroquial, ganhava um cupom que disputaria o prêmio. Evandro de Souza, um assistente de eletricista, levou a honraria cobiçada. Era um rapaz calado, quase sisudo, de quem as pessoas não tinham muita informação. Mas como foi legítimo o sorteio e ele apresentou seu comprovante em vinte e quatro horas, aceitaram o vencedor.

O jogo estava marcado para as quatro da tarde. A produção começava às duas da tarde. A cervejada da população já havia começado desde as dez da manhã. Como exigido, Evandro chegou ao estádio Barrancos da Asa Vermelha às duas da tarde em ponto. Um estagiário o recebeu e falou para esperar na sala de entrevistas. Era estranho o comportamento silencioso e carrancudo do premiado, mas acreditavam que era timidez e não falaram mais nisso.

Quando Waldir Correia chegou, por volta das duas e trinta. O estagiário os apresentou:

– Senhor Evandro, este é o nosso locutor Waldir Correia e seu assistente, Liégio.

– Prazer, Senhor Evandro. Como está o senhor hoje?

– Estou bem. O senhor é quem fala os gols do Asão?

– Sim. “O gol do Asão sai sempre da voz do Trovão” – acompanhava com risadas de Waldir e Liégio e um sorriso leve, quase imperceptível de Evandro. Os dois mostraram ao rapaz toda a área de acesso da imprensa, e principalmente a cabine de transmissão onde seria o local do grande prêmio. Explicaram a ele como tudo funcionava, as chamadas, as propagandas, o microfone, as entrevistas.

Por volta das três e quarenta, todos os preparativos estavam em sua reta final, o grande premiado foi levado a uma cadeira no corredor em frente a porta da cabine. Deram a instrução de que ele teria que ficar ali até o seu chamado que seria aos trinta minutos do segundo tempo, mas lhe garantiram que dali ele poderia ouvir toda a narração de Waldir. Ele se sentou e pacientemente aguardou.

O jogo começou, e logo aos quinze minutos do primeiro tempo, Asão fez o primeiro gol com seu artilheiro Toreba em uma corrida pelo meio, desfazendo de toda a zaga com um pulo mais alto para alcançar o cruzamento e cabeceando de cima para baixo tirando do goleiro totalmente. Naquela tarde, o time estava com controle da partida, criando das laterais, pelo meio, triangulando quase à perfeição de todos os ângulos. Com muita vontade de ganhar, e muita sede ao pote, o time todo avançou. Zequinha, um meio-de-campo rápido do Liberdade, conseguiu roubar a bola após uma bobeada de Zé Firula, lateral do time da casa, depois correu com liberdade até entregar para Joenilson, artilheiro visitante, encher o pé e quase furar a rede empatando o jogo. Primeiro tempo terminou com um gol para cada lado.

Todos nervosos durante os quinze minutos de intervalo, exceto Evandro que quase não mexia.

Começou o segundo tempo, com a troca de Zé Firula, que havia ido para o intervalo vaiado, por Dedeco, uma jovem promessa do Asa que diziam fazer um pivô como ninguém. Esperanças renovadas, e o time da casa disparou em ataques com a ordem de sempre voltar fazendo marcação homem-a-homem. Ninguém nem pisca. Do pipoqueiro a Waldir Correa, a ansiedade dá as mãos à paixão futebolística. Unhas roídas, copos de plásticos amassados, cigarros quase engolidos eram sintomas de um quase desespero.

Ao chegar aos trinta minutos, Evandro entrou na cabine levado por Liégio. Waldir, entre um lance e outro, anunciou:

– Senhoras e senhores, temos em nosso estúdio a presença ilustre do vencedor da nossa campanha “Um dia na vida de um campeão”, que vai participar dos últimos minutos da partida aqui do meu lado. Qual é seu nome?

– Evandro de Souza.

– E o que você espera do final desta partida, meu filho?

– Que você fale que é gol do Asa.

– É isso aí, ouvinte! Porque o gol do Asão sai sempre da voz do Trovão, que sou eu, Waldir Correa.

Nos dez minutos seguintes, chances de gols foram distribuídos para os dois lados, dando a impressão de que o campeonato fosse resolver em pênaltis, já que não havia prorrogação nas duas partidas finais. Dentro da cabine, Evandro não olhava para o campo, mantinha seus olhos e ouvidos grudados em Waldir, o que enchia o locutor de vaidade.

Aos quarenta minutos passados, Evandro levantou da cadeira, foi até a porta, passou a chave trancando os dois naquele espaço minúsculo, tirou a chave, pôs no bolso, e calmamente tirou um revólver da bermuda pelas costas, apontou para a cabeça de Waldir, tirou o som do microfone e disse:

– Não acontecerá nada se tu me obedecer. Não avise ninguém, não mande recado, continua sua falação sobre o jogo e fale o gol do Asa. Isso acontecendo, tudo fica bem.

– Mas e se não tiver gol?

– Não quero saber. Faz sua falação aí até o gol do Asa. Não vacila.

Passaram quarenta e um minutos, quase gol do Liberdade, Waldir suava. Evandro não tirava os olhos do jornalista. Quarenta e três, Dedeco rouba a bola, leva sozinho ao ataque, mas para no goleiro. Aos quarenta e quatro, com o clique do gatilho armado do revólver no ouvido, Waldir narrou que na saída errada do goleiro pela lateral, Vilmar roubou a bola, cruzou para a marca do pênalti e Toreba chutou, a bola bateu na trave e entrou. Gol do Asa Vermelha, sem acréscimos do árbitro, já que ele, nem ninguém, queria sair morto do jogo pela multidão que já invadia o campo. Ou da cabine.

Sombra e carne

Malha viária potiguar