Sobre ,

Crendices

Por Natália Chagas

Não acredito mais nas crenças. Na verdade, as repudio. Todas as crenças são mentirosas. Trago em mim as certezas científicas e a verdade das observações. Nunca uma mulher chegou em minha casa ao cair de uma colher no chão, ou um homem após derrubar um garfo. Jamais uma visita foi embora após a vassoura ser posta atrás da porta. Ninguém na minha família encontrou um grande amor ao colocar Santo Antônio de cabeça para baixo. Crenças ancestrais se tornaram motivos de risos para mim.

Dia após dia, na especialização de enfermagem com ênfase em tratamentos de pacientes com câncer, acompanhei diversas pessoas que se sustentavam na fé e na confiança dos chás de avós, e sempre respeitei, mas nunca acreditei. Trabalhei nas pesquisas intensamente para que tudo que a ciência pudesse fazer por aquelas pessoas acontecesse.

Em meio de um plantão na madrugada, minha irmã me liga avisando que estava levando minha mãe para o hospital porque havia sofrido um AVC. Impus que ela a trouxesse para o hospital em que eu estava. Ali poderia acompanhar de perto a evolução do quadro. Minha irmã chegou de terço na mão balbuciando o credo. Sem ouvir seus lamentos, providenciei a melhor assistência com o médico da minha confiança. Procedimento de urgência e exames feitos, veio a notícia da paralisia total após o AVC hemorrágico.

Na sala de espera, esperavam por notícias minha irmã, meu irmão, duas tias e um primo, que ao contar sobre o estado de minha mãe, caíram no choro e na reza. Eu olhava aquela cena de pessoas aos prantos, algumas ajoelhadas, com mãos para cima numa ladainha repetitiva e sem fim que me causava pena e uma certa vergonha. Acalmados todos, consegui que fossem para casa e eu os manteria informados.

Passando os dias, o quadro não melhorava. Os médicos respeitosamente me informavam de todos os procedimentos feitos, e eu seguia concordando com cada passo. Até que em um determinado momento, veio a confirmação de que nada mais havia a ser feito, e que deveríamos aguardar a evolução do quadro.

Fui até seu quarto. Vi aquele corpo inerte tão pequeno quanto uma criança. Veio a minha mente a sensação de conforto e segurança que eu sentia quando minha mãe escovava meus cabelos quase fio a fio. Me lembrei que no abandono de meu pai, ela sempre repetia que não ia depender rigorosamente de ninguém nessa vida, me fazendo crer que eu também podia ser dona de mim, e depois confirmando suas expectativas dando ainda mais força a meu empoderamento. Ainda passou pela minha memória os tempos de faculdade em que ela sempre fazia um lanchinho para mim, sem nem eu ter pedido, o que me salvou em tantos momentos.  Olhava aquela mulher que tanto fez por mim, e eu nada podia fazer por ela. Neste momento, uma lágrima involuntária desceu do meu olho. Entrei no quarto, tive a sensação inebriante de inutilidade. Cheguei próxima da cama, vi sua mão que tanto me carregou subindo e descendo o morro, mostrando com cuidado como atravessar a rua, como ser respeitoso ao cumprimentar as pessoas, ficar atenta com quem se deve. Eu nada podia fazer. Peguei na mão dela e vi seus olhos abrirem. Chamei-a, e ela olhou para mim. Perguntei:

– Mamãe, pode me ouvir?

Ela piscou e chorou. Seu rosto se transformou em tristeza. Ela respirava com ajuda de tubos e não se mexia.

Por meses, revezávamos entre parentes para a acompanhar lendo livros, fazendo exercícios em seu corpo frágil, conversando com ela, e ela apenas mexia seus olhos. Quando alguém resolvia rezar na beira de sua cama, seus olhos se tornavam frios e fixos no teto demonstrando desdém e incredulidade. Minha mãe, sempre tão religiosa, parecia ter brigado com Deus.

Eu gostava de sentar ao lado dela e contar como havia sido meu dia, o que eu imaginava das coisas, filosofias de vida e outras bobagens. Ela mexia os olhos quase freneticamente como se interessasse por aquilo tudo. Um dia contei a ela sobre uma paciente minha que estava em estado terminal de câncer. A família queria mantê-la viva, mas a mulher insistia que queria morrer. Neste exato minuto, minha mãe se encheu de lágrimas como criança e chorou seu desespero. Eu perguntei:

– Mãe, a senhora quer partir?

Um som saiu de dentro dela como um gemido agoniado e ela fixou o olhar em mim. Aquilo me impactou absurdamente. Era um pedido de socorro. E devido seu estágio tão frágil não era tão difícil aquilo acontecer.

Após muito refletir, levei com cuidado esta possibilidade à minha irmã. Ela se levantou em revolta, me xingando de ingrata, demoníaca entre outras coisas. Ela disseminou por toda a família fazendo com que todos pedissem a remoção dela para outro hospital onde eu não teria um acesso tão direto a ela. Felizmente, os médicos não permitiram devido sua fragilidade. Mas toda família aumentou o tempo de vigília com medo que eu tomasse alguma atitude.

O tempo que eu conseguia ficar com ela, via seu estado de tristeza profunda e desesperança. Os médicos haviam me pedido para que eu tratasse a paciente como parte da família, e não como responsabilidade laboral. Me afastei do caso, garantindo que Marcela, enfermeira competente e amiga, estivesse por perto.

A cada banho e aplicação de medicamentos, Marcela percebia a tristeza de minha mãe, e me disse um dia:

– Não farei nada sem seu consentimento, mas a lidocaína está pronta. – Mostrou-me a injeção apropriadamente guardada.

Fui para o quarto do plantão. Tranquei-me sozinha nas sombras. Olhei para o chão e vi meu chinelo virado. Pensei em quantas vezes minha mãe havia me dito que chinelo virado chama a morte de mãe. Desta vez, e apenas desta vez, pensei que podia realmente existir algo do além que tivesse mais força do que a ciência para livrar minha mãe daquela situação desesperadora. Marcela abre a porta. Em um misto de solidariedade e alívio, ela me conta que minha mãe sofrera um novo AVC e partiu.

Entrei no quarto e vi um corpo em paz e uma expressão facial quase feliz. Que ela tenha ido em paz seja qual força que for.

Em Cartaz: Onde os Fracos Não Tem Vez

Clipe na Kombi inicia votação para escolha de melhor videoclipe