Por Natália Chagas
Durante a pandemia, fiquei sabendo da morte de Norma. Senti, mas não o bastante. Não dei muita importância para não endoidar. Afinal a gente ficava sabendo de tanta morte que, de alguma forma eu tentava ficar distante para não ser pego no buraco negro que envolvia aqueles dias.
Os anos se passaram e a rotina se estabeleceu presencial novamente. Pessoas, naturalmente, querendo sair de seus casulos, encontrar outros seres para confirmar que estavam vivos, que o pesadelo havia passado.
Eu não estava tão contagiada pelo sentimento aglutinador, continuava com medo e a morte cheirando meu cangote. Medo cria expectativas reversas muitas vezes. Mesmo morando sozinha e com duas vacinas, temia encontros com negacionistas, mantinha minha distância e minha máscara. Mas meus amigos de infância insistiam em encontrar
E lá fui eu na celebração de estarmos vivos. Conversas sobre o terrível período foram o eixo de conexão. Parentes, amigos, conhecidos mortos e horripilantes estórias foram contadas e recontadas entre brindes e choros. Até que em determinado momento, mencionaram a morte de Norma. Pessoa querida, ousada e livre, ela distribuía coragem por onde passava. É bom esclarecer que entre os que viveram em uma escola de elite como a nossa, havia muitos que seguiam a linha conservadora social e achavam a ousadia de Norma vulgar. As amarras sociais nunca a raptaram e isso incomodava as pessoas, principalmente as infelizes. A mim era sempre um alívio ter Norma por perto por ampliar as possibilidades de felicidade. Nunca fomos próximas, mas sempre conectadas. Ela sempre foi um respiro entre os moralistas de plantão. Perto de Norma, pessoas podiam ser alternativas e irreverentes. Esta era a pessoa que quis ser, mas perdi minha força por conta das responsabilidades dos boletos e raízes conservadoras que nunca consegui me desatar.
Voltei para casa pensando naquelas pessoas que ali respiravam oxigênio e sem vida, celebravam sua continuidade nesta terra como zumbis da rotina e conveniência social. Fiz um chá, sentei sozinha na cozinha no escuro. Uma frase soou na minha mente: “Tá viva por quê?”. Como uma alucinação, a imagem de Norma apareceu em pontos de luzes na minha frente. Um frio subiu pela espinha e eu não conseguia me mover. “Porque tem que tá.” Ela deu uma risada alta e me disse: “Ninguém tem que ‘tá’ nada. Temos que ter propósitos, razões para viver. Ninguém honra os mortos apenas pagando boleto diariamente, mas vivendo profundamente aquilo que ama, criando momentos inesquecíveis, fazendo valer a pena a sobrevivência”. Assim como veio, sua imagem se foi no ar.
Não consegui dormi, não por medo pois não acreditava que aquilo havia acontecido e que era apenas uma projeção minha, mas pensando no que significava tudo aquilo, no que havia sobrado dos meus sonhos, o que eu havia feito da minha vida.
Fui trabalhar. Cheguei no escritório, bati o ponto sentei na minha mesa. Trabalho burocrático de secretaria da fazenda, onde as pessoas mal sabem meu nome, não se interessam por mim. Será que eu me interesso por mim mesma? Comecei a ir para casa me indagando o que eu tinha feito de mim mesma.
Chegava na casa vazia, na vida vazia que me esperava. Comia sem fome, bebia sem sede, deitava sem sono e cheia de preocupações. Nesses piores momentos, Norma aparecia e ficávamos horas a conversar e rir como se ainda fôssemos adolescentes. Eu contava dos meus dias, ela caçoava cada momento. Para ela, o que eu vivia era uma grande piada. Comecei a achar graça das minhas preocupações e ansiedades. Comecei a resolvê-los.
Um dia, Norma me perguntou: “O que te prende neste mundo? Obrigação de viver, justificativa de comportamento social?”. Eu pensei por um minuto tentando achar uma razão e, com um pouco de raiva, respondi: “O que quer que eu faça? Me mate?”. Ela riu e me devolveu: “Querida, não é um mundo ou outros. São vários mundos que estão por aí. O isolamento pandêmico acabou. Quando você vai acabar seu isolamento pessoal?” Como mágica, neste momento, Norma se foi. Por noites a fio, fiquei esperando sua volta para discutirmos melhor aquilo. Achava que precisava esmiuçar as questões que circundava todo o assunto. Mas não. Ela não voltou mais.
Caminhei durante dias vendo as pessoas nas ruas alegres por poderem dar abraços e beijos. Em casa, me olhei nua ao espelho. Há quanto tempo não dava um abraço, não sentia um beijo. Havia blindado meu corpo por conta da Covid, mas pior foi ter blindado minha alma por conta do medo. São regras da vida evitar o sofrimento. Ter dor é perder um pedaço de si e apostar nas relações é ponto de partida da perda. Porém, cansei de não ter mais minha alma.
Hoje pedi exoneração, vendi meus móveis, doei roupas que não usava mais. Com uma pequena mochila, me encontro no aeroporto sem rumo em busca de um novo mundo onde eu possa estar. Até porque solidão é caso de isolamento, não de rejeição.