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Morte que se vive

Por Natália Chagas

Cada um escolhe a morte que quer viver. Eu não tive esse privilégio. Tenho que viver a morte de meu irmão, que não vive nem morre. Atrelado a uma cama no meio da sala, ele aguarda todos os dias pelos meus cuidados de banho, alimentação e conversa que ele responde ao virar e piscar de olhos. Ele não emite uma palavra, mas fica estático dentro de sua ansiedade, pavor e tristeza. Vejo ele chorar de tempos em tempos, tento acamá-lo e mais nada posso fazer. Imagino sua tristeza ao lembrar do acidente em que ele dirigia bêbado trazendo mamãe para casa, também bêbada, voltando de uma festa que eu não quis ir, e que levou mamãe à morte e ele à cama eterna. Isso deve ser o inferno dele, sei que é o meu também. Vivo todos os dias sem coragem de desligar os aparelhos.

Hoje é meu aniversário de 19 anos. Há um ano vivo isso. Saio para meus dois empregos, um de faxineira e outro de caixa em supermercado, volto cansada para cuidar do meu irmão. Entre um emprego e outro, garanto seu almoço, e saio comendo alguma bobagem. Sem tempo. Cada emprego assegura uma necessidade, comida e remédios. Graças ao vereador Detinho, a nossa casa se tornou própria. Quando se deu o acidente, ele foi uma das raras pessoas que ajudou. Mas ele também sumiu, assim como meu pai quando eu tinha 3 anos e Davi tinha 2. “Seu” Detinho ainda vinha visitar nos primeiros meses, mas agora parece que sumiu de vez. Quando ele vinha, sentava ao lado de Davi, calado. Eu fazia um café, oferecia e quando voltava para a sala, “seu” Detinho estava olhando para Davi com olhos marejados. Acho que não aguentou ver a dor. Muito me impressionava como os olhos de “seu” Detinho e Davi eram parecidos, principalmente quando choram. Mas agora não o vemos mais. Nem notícia.

Os dias vão passando eu continuo a me abater em tristeza e desesperança que nada irá mudar. Não tenho o privilégio do desespero. Para o pobre, não cabe o desespero. Também não me dou o direito da cabeça que pensa, senão fico louca. Vou vivendo e vendo o que a vida me traz. E a vida traz muito pouco. Daíne, minha vizinha, estudou comigo. Enquanto eu pude estudar, éramos da mesma turma. Hoje ela teve a notícia de que entrou para a faculdade. Não terei essa chance. Fico feliz por ela, desesperançosa por mim.

Alguns podem pensar que espero um milagre, uma ajuda, mas não. Espero a morte. Quando saio de casa, atravesso 3 ruas para chegar ao ponto de ônibus rezando para um carro me atropelar e acabar com tudo de vez. Penso que vivo a morte de meu irmão, acelero o passo para evitar o acidente e continuar meu martírio. Gostaria que acontecesse sem que fosse culpa minha. Se existisse um deus, aconteceria. Nenhum ser de bondade ou piedade deixa um filho passar pelo que estou passando. Ele não existe.

Volto para casa de passo a passo entre a expectativa da morte ou o barulho do respirador. Barulhinho chato que incha e desincha o pulmão de Davi. Um estalinho agudo avisa que tudo continua na mesma. Incha. Desincha. Estalinho. Incha. Desincha. Estalinho. Minhas pernas cansadas caminham no ritmo do estalinho. Eu durmo contando o estalinho. Acordo com o estalinho. Compro uma garrafa de cana, dou um gole a cada dois estalinhos. É domingo, limpo a casa, recupero da ressaca ao som do estalinho. A música não abafa o estalinho. Ele bate no meu corpo ao pulsar do sangue em minhas veias e as de meu irmão. A morte que corre nas nossas veias é igual ao sangue que nos une. Bip. Bip. Bip. Soar insistente que me aprisionei. Nem sei se consigo viver sem isso na cabeça.

Segunda-feira, 5 da manhã, hora do banho. Um ressoar na minha cabeça me deixa meio surda como se algum barulho mais forte sobressaltava. Abro a porta do meu quarto e percebo que não é na minha cabeça. Há um constante agudo pela casa como um alarme. Não mais estalinhos.

ZooN: A Resistência da Fotografia Cultural Potiguar

Café coado, por favor!