Nasci numa casa onde a comida não era um direito, era um acontecimento. Tipo chuva no sertão do Apodi: imprevisível, desejada, comemorada com romaria. A dieta era ditada por três fatores: a estação, a sorte e o feijão. Leite só o da mãe, depois o da vaca do curral de meus avós. Nada de danone, biscoito recheado ou pastel de feira. Aquilo era ficção científica. A gente mastigava rapadura como quem se agarra à última doçura do mundo. E melancia, no inverno, era banquete de rei.
Hoje o papo é outro. A pauta da mesa virou gourmet: low carb, glúten free, proteína de origem controlada. Na época, o debate era se tinha comida ou não. A proteína era um milagre de Natal. Quem tinha carne no prato uma vez por semana já era classe média emocional. Só que, naquele tempo, tinha uma coisa que a gente guardava mais que comida: o orgulho. O orgulho é o tempero da fome. Preferia estômago roncando a aceitar o arroz dos outros.
Cresci com esse orgulho, e quando o dinheiro chegou, não comprei só comida: comprei revanche. Botei proteína em tudo, até no café com leite. Resultado: sobrepeso, colesterol, pré-diabetes e uma sensação constante de que meu corpo está escrevendo uma carta de demissão. O curioso é que a biologia, essa senhora tão exigente, funciona igual à tia da igreja: se você não fizer tudo certo, vai morrer e ainda por cima vai pro inferno. Mas se fizer tudo certo também… bom, você talvez morra com um leve gosto de couve na boca.
Entrei numa fase zen-nutricionista. Diminuí o açúcar, enfrentei as folhas, o tubérculo e cortei o delicioso pãozinho. E mesmo assim, o corpo me olha com desconfiança no espelho: “Você pode fazer melhor”, ele diz. E eu respondo, cansado: “Amigo, eu vim do nada, o que você quer de mim, sofrimento?”
Talvez o mais cruel nisso tudo seja entender que, depois de vencer a fome, a comida continua sendo um problema. Como se a infância pobre deixasse em nós uma memória que não engorda, mas pesa. O corpo, ingrato, não entende que cada garfada hoje é também um acerto de contas com o menino que via, na casa de amigos, baldes e baldes de boa comida jogados no lixo.
No fim das contas, parece que o organismo da gente é uma espécie de religioso fundamentalista: vigia, cobra, julga. E o pior: prega jejum até quando a gente só quer um pão com manteiga em paz.