Marieta acordou diferente. A casa era a mesma, e o silêncio das moscas das manhãs seguintes ainda figurava no ambiente. A cama estava vazia. Marido e filhos já perambulavam. Ela os olhou desatenta, parecia cansada quando entrou no banheiro e demorou mais do que o de costume. O tempo demonstrava atraso no café e nas tarefas diárias. O filho mais velho aguardava a torrada para se deslocar ao trabalho. A filha menor esperava as ordens para ir à escola. O marido não esperava nada.
Marieta mexeu as panelas e ligou a cafeteira. Seus olhos pareciam fechados, assim como seus ouvidos. Aprontou uma mesa feia e pães aguados. O café sem açúcar torceu as caras nos primeiros goles. À mesa, a sobrinha agregada ainda perguntou algo, mas não obteve resposta. O filho puxou conversa, mas Marieta ficou calada e não lhe deu sequer um gesto.
Sentou-se com todo mundo, tomou café como de costume, abriu o jornal que era do marido. Leu as notícias de polícia, passou pelas colunas, viu a política, passou pelos classificados, viu os preços; folheou os anúncios, as mesmas festas. No cinema, os mesmos filmes, e o signo era repetido da semana passada. Marieta soluçou expelindo gases.
Notava-se aí que a mulher poderia estar doente. Talvez um chá de boldo para acalmar o estômago, foi o que alguém pensou, mas só ela sabia como fazê-lo. Ofereceram-lhe um antiácido. Não obtiveram resposta. As pessoas já se acostumaram a não obter respostas. Marieta cuspiria essa filosofia se quisesse falar.
Voltou para seu quarto em busca de um livro e esqueceu a cozinha por um instante. Mas os livros são feitos por dois motivos: ou sem propósito algum, para deixar as pessoas extasiadas com o nada, empreitando uma tentativa torpe de entender o que não foi dito, ou puramente para fazer lucro e fama. Marieta lançou gases pela boca e se sentiu como se estivesse inflando. Pensou no que tinha comido nos últimos dias e na noite anterior. Sua cabeça, como ela, não dizia nada. Lembrava apenas dos rótulos garantidos pelos estudos científicos e pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária. Estava segura.
Entre a sala e a cozinha, existia muito barulho. As meninas carregavam conversas sobre as palavras alheias. O marido perguntava coisas a elas, que respondiam monossilabicamente. Um retrato diferente do que se expunha na estante, onde todos se abraçavam com sorrisos largos. Marieta expulsou os gases do medo de já passar dos 40 com uma família comum demais para os padrões das novelas. Havia desistido de tudo em que acreditava e quase não tinha sonhos. Aparecia sempre alguém para lhe dizer que não possuía talento ou sorte, e ela foi abrindo mão dessas coisas e se entregando à tranquilidade de não ter ambição, para ser apenas um nome com o sobrenome do marido, mais velho e aposentado com um salário de fome. Nunca deixou de fazer nada de comum aos outros, mas sempre se achou à margem da vontade alheia. Não que se sentisse infeliz, nunca se sentiu; só não queria comprometer-se e deixar de ser a única coisa que conseguira ser.
Acostou-se na cama como quem não pensa em nada e cochilou tranquilamente sonhos dos quais não se lembraria. Acordou algum tempo depois ouvindo gargalhadas que vinham da sala. Lembrou-se das antigas reuniões familiares. Dos filhos pequenos. O filme da locadora, o marido lendo a sinopse. O livro infantil, lido e relido a pedido dos pequenos, enquanto ela preparava os quitutes. A palavra “mãe” soava a cada minuto com uma sonoridade infantil e inocente. O sorriso do marido, que ainda era forte e vigoroso como o próprio corpo, a abraçava com força pela cintura. O telefone tocava como por coincidência, apenas para ouvir aquela algazarra farta de pão.
Marieta sorriu no canto da boca e esforçou-se para levantar, mas estava pesada demais para se mexer com pressa. Os gases saiam agora por todos os orifícios. Quando atravessou a casa, lembrou-se das mãos enrugadas. Os pés, nas pantufas, arrastavam toneladas pelos cômodos sujos. Ninguém saíra de casa, como se fosse domingo e como se não houvesse contas a pagar. Marieta chegou à sala e encontrou a família indiferente, esparramada em frente à televisão. Olharam-na com espanto e medo. Ela estava enorme, inchada, parecia duas. Os lábios não se fechavam e os olhos saltavam esbugalhados. Iria explodir.
Sob a agonia dos seus, recolhidos no imenso sofá azul, Marieta levantou a cabeça para o teto, escancarou a imensa boca que agora possuía e abriu-se num arroto interminável. Aí foi desinchando, desinchando, desinchando e ficando magra, magra e magra, até que seu corpo caiu feito um saco de pele e osso no chão.