Deu polêmica, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM 2023) deu polêmica. Não por acaso, a proposta tenta fazer uma reparação histórica com as mulheres e aí, já se viu, quando se trata de justiça social no Brasil, parte dos conservadores ficam incomodados. Disseram que foi ideológico, que é mimimi e coisa de feministas. Mas a verdade é outra bem diferente e a desigualdade de sexo no Brasil ainda é drástica e necessita mudanças urgentes. Além de ser infinitamente maior do que a dedicação dos homens, o trabalho doméstico não remunerado no Brasil é subnotificado em até 60%, segundo pesquisa da UFRN e UFMG.
O tema da redação do ENEM foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Esse cuidado trata exatamente do tempo que a mulher gasta fazendo comida, pondo a casa em ordem, cuidando dos filhos, do marido e, muitas vezes, dos pais, dos sogros ou de outros parentes. É uma rotina exaustiva, repetitiva e, além de não remunerada, não é reconhecida pela própria família.
De acordo com as pesquisadoras Luana Myrrha e Jordana Cristina de Jesus, do Programa de Pós-Graduação em Demografia da UFRN, ao colocar uma temática presente no dia a dia da grande maioria das famílias brasileiras para reflexão de milhões de estudantes, seus amigos, familiares e a comunidade de modo mais amplo, o Ministério da Educação, por meio do Enem, realiza um movimento importante, que é o de reconhecer os cuidados. “Reconhecer o trabalho de cuidados executado pelas mulheres é um dos passos iniciais para um caminho de redistribuição dessa carga de trabalho. Para, de fato, redistribuir os trabalhos de cuidados, organizados de maneira injusta na sociedade, eles devem ser transformados em objeto de políticas públicas”, diz Luana.
Jordana Cristina reforça que para essa discussão ser ainda mais relevante, em um primeiro momento, é necessário definir o conceito de cuidados. “O cuidado pode ser definido como um trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e reprodução da vida humana, da força de trabalho, das sociedades e da economia e à garantia do bem-estar de todas as pessoas. São trabalhos, como a preparação de alimentos, a limpeza, a gestão e a organização da casa, como também as atividades de assistência, apoio e auxílio diários para pessoas com diferentes graus de dependência, como bebês e crianças pequenas, pessoas idosas ou pessoas com deficiência quando estas não conseguem, sozinhas, realizar atividades como alimentar-se, caminhar, tomar um transporte, fazer compras, etc. Essa é a definição que foi apresentada na primeira versão do Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil”, explica.
As pesquisadoras ressaltam que o Brasil tem, atualmente, uma organização social dos cuidados desigual, injusta e insustentável. Essa organização, segundo elas, é desigual e injusta na medida em que, embora os cuidados sejam uma necessidade humana, são as mulheres as principais responsáveis por atender a essa demanda em suas famílias. As mulheres mais sobrecarregadas com esse trabalho invisibilizado são as empobrecidas, as mulheres negras e as que estão em territórios com carências profundas na oferta de serviços públicos de cuidado, como as zonas rurais e as periferias urbanas.
Considerando a tendência de envelhecimento populacional, em que cada vez mais se tem a presença de idosos nas famílias, a situação das mulheres ficará cada vez mais insustentável.