Por Natália Chagas
Toda vez que chove, sinto a lama correr entre minhas pernas e lembro de tia Alicinha. Jamais esquecerei o mal dos corações dos homens perversos. Sendo mulheres ainda mais cruéis.
Naquela tarde, quando a vizinha me ligou, eu sabia que ela havia partido. Na última visita ao médico, nem mesmo uma fresta de esperança ele deixou. O câncer havia comido todo corpo. Não havia ciência capaz de compreender sua sobrevivência. Fomos ao cinema depois disso ver os lindos homens e as corajosas mulheres que sempre rodearam sua mente alegre e positiva. Desta vez, tia Alicinha dispensou o café da fofoca pós cinema. “Estava cansada”, dizia em um confuso olhar entre ‘preciso dormir’ e ‘já posso morrer’.
Fui pra casa com coração apertado sem ter o que fazer além de ligar para ela todas as manhãs e esperar a finalização daquela espera.
A vizinha ouviu um barulho, achou estranho e resolveu usar de sua chave extra para ver se estava tudo bem. Tia Alicinha deitada no chão com os olhos vidrados e sem dor.
Desliguei com a vizinha, e comecei a saga inglória de avisar quem devia, mas não merecia, ser notificado: as maldosas tias Marina, Carolina e Viviane. Minha mãe, Luciana, havia morrido há alguns anos e deixou um pedido para eu cuidar de tia Alice.
Minha mãe era a mais velha, tia Alice a mais nova. Cresci com essa doce criatura festejando a vida entre namorados muitas amigas em cafés, viagens e festas. Tia Alicinha era desses seres encantadores que todos queriam estar por perto. Ela havia passado em um concurso federal e vivia bem em seu emprego estável sem dever nada a ninguém. A única da família que nunca quis casar. Sempre foi a mais feliz.
Minhas outras tias eram sempre aborrecidas e invejosas. Mesmo comigo e meus primos, elas sempre tinham algo de negativo para comentar, e com tia Alicinha elas eram cruéis e impiedosas.
Ao ligar para tia Marina ouvi o que as outras depois repetiram: “Ela sempre foi uma desavergonhada. Usava batom e unhas vermelhas. Vê se pode? Por isso Deus deu câncer a ela. Não sai impune nessa vida quem não cria filhos para o Senhor. Está na bíblia. E você está seguindo os mesmos passos. Cuidado, viu?”
Aquilo me revoltou. Resolvi enterrar tia Alicinha sozinha. Cuidei dos trâmites legais, tratei todas as burocracias devidamente, colocamos tia Alicinha em um caixão e subimos o morro do cemitério para cova indicada por ela onde queria ser enterrada. Chovia muito, a lama corria alta morro abaixo e, no meio do caminho, o carro fúnebre quebrou. Nada fazia ele pegar novamente. O jeito era levar na chuva e no braço. Desci até o pé do morro e consegui mais três rapazes que trabalhavam em um terreno para ajudar a levar o caixão. Subíamos eu, o motorista e os rapazes carregando o caixão. De repente o fundo do caixão se abre e tia Alicinha quase é levada pela correnteza. Ela foi salva pelo motorista que ia no final, e conseguiu pegá-la pelo braço. Ajeitamos o corpo dela acima de nossas cabeças e seguimos até chegar no alto do morro. Eu já não sabia se eu chorava de tristeza da perda, do desespero da situação ou de medo da praga das tias.
Quando chegamos no topo do morro onde era indicado sua vaga de descanso, o sol se abriu e a chuva parou. Percebi que sua sepultura era em forma de círculo com outras sepulturas. Ao ler os nomes em volta, minha memória de infância retornou a alguns momentos de alegria vendo que ali estavam Dorinha, Fátima, Carmem e Ana. Na lápide de todas elas, estava escrito: “Amigas até o fim!”
Olhei para o corpo de tia Alicinha, tive a sensação de tranquilidade, e agradeci às minhas tias a praga que me rogaram. Quando for pra ir embora, que seja em boa companhia.