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PEDAÇO DE MAU CAMINHO

Por Marcos Ferreira

Escritor

— Aqui está bom — disse o garçom Raimundo.

Quase cheia, a Kombi da Boate Planeta parou na esquina do ferro-velho. Madrugada de sexta-feira, mais de três horas. Geralmente ele é o último a ser deixado em casa. Dessa vez, porém, os colegas votaram por desviar da rota habitual e deixá-lo primeiro. “Queremos saber onde você se esconde, Raimundo”, dissera Augusto, o barman. Então, por gentileza e alguma curiosidade, o jovem garçom chegaria menos tarde.

Chovera. O lugar estava desértico, alagadiço.

— Tem certeza, Raimundo? — indagou o motorista Fernando, que se encontrava em sua primeira semana de trabalho, de maneira que ainda não estava muito familiarizado com a rota e os endereços de todos os empregados.

— Sim. Minha casa fica bem ali.

— Até amanhã, Raimundo!

— Até. Obrigado a todos vocês!

Abriu a porta corrediça, desceu com o paletó em cima do ombro. Só então se recordou do volume. Alguém avisou que o celular dele ficara sobre o banco. Deu meia-volta. A senhora Conceição, a boquirrota cozinheira, que estava na parte da frente, pareceu ter notado alguma coisa de suspeito. Pôs o olhar diretamente na linha de cintura do rapaz. Encabulado, Raimundo cuidou logo de cobrir a saliência com o paletó.

— Vivo esquecendo esse telefone…

O veículo foi-se embora com os demais colegas da boate. Entre estes estava Gabriela, operadora de caixa, vinte e poucos anos, responsável por aquele incidente erétil. Raimundo seguiu pela rua sem pavimento. Sua casa estava a uns duzentos metros. O músculo repetia espasmos. Naquela ocasião caía apenas umas gotículas de chuva. O inverno trouxe otimismos. Açudes encheram; a vegetação e a esperança dos agricultores reverdeceram; matou-se a fome e a sede dos bichos; salvaram-se superstições.

“Será que a fofoqueira da Conceição percebeu alguma coisa? Se sim, deve estar falando sobre isso no caminho. Não duvido nada”, pensou.

Um raio fotografou telhados, alumiou quintais. Veio a trovoada. Cães no entorno se puseram a latir, grilos emudeceram nos esconderijos. O vento agredia as árvores e os fios do posteamento, produzindo um assobio intermitente. Raimundo recordou-se da lástima em que se encontra o telhado de sua casa, a esposa a condenar-lhe a falta de ação. Desceu pela rua enlameada. Driblava poças d’água, o paletó dobrado debaixo do braço, as mangas da camisa acima dos cotovelos, a mochila pendurada ao ombro.

Naquele instante lhe sobreveio uma sensação de perigo. Virou a cabeça, olhou o caminho às suas costas, os olhos vermelhos de sono piscando por trás das lentes de grau. Encontrava-se ali um homem desarmado, desprotegido, vulnerável; a mochila podia atrair meliantes. A criminalidade neste município prossegue aterrorizando o povo, enchendo os bolsos de proprietários de casas funerárias e centros de velórios.

Na semana passada, durante um assalto a uma panificadora do bairro, o dono reagiu e foi morto pelo assaltante com dois tiros. O Jarbas leiteiro ficou sem a motocicleta e a carteira com todos os documentos no dia de Nossa Senhora Aparecida. Até o momento, pelo que se sabe, nem a moto nem os documentos apareceram.

Não está fácil para ninguém. Um sargento da Polícia Militar teve a sua jovem e bonita esposa levada por um estranho. A digníssima foi embora com o desconhecido por vontade própria. Mas não tratemos aqui sobre senhoras que se extraviaram sob o nariz dos maridos. A negligência dos homens para com as mulheres é um caso antigo. Muitos se dão conta disso só depois de abandonados. O garçom corre esse risco.

Raimundo começou a se sentir à vontade. A lembrança de Gabriela voltou a mexer com ele. A sensação de perigo se afogou nas poças d’água, as passadas caíram de ritmo. Já não tinha pressa de chegar quanto no instante em que descera da Kombi. Teve a impressão de que o vulto de Gabriela se apresentara diante dele, dissipando-se rapidamente. Buscou retê-la na memória. Recordou-lhe a covinha na ponta do queixo, os olhos verdes e os cabelos negros, a pele morena ainda exalando um perfume amadeirado, além da blusa a exibir um pouco das alças do sutiã. Não é de agora que essa moça o atrai.

Meteu a mão no bolso esquerdo a fim de melhor acomodar o volume. Aí se apercebeu da umidade viscosa que ultrapassara o tecido do forro. Sungou os testículos, passou a mochila de um ombro para o outro. Durante o trajeto, que durou pouco mais de vinte minutos, supôs que a colega lhe pressionava uma das coxas. Isto o atiçou. Aproveitou os solavancos e o balanço do carro para retribuir o hipotético estímulo.

Mas não passou disso. Manteve-se discreto, seguiu a prudência; nenhum gesto ousado. Ateve-se ao plano das hipóteses, ao vaivém das conjecturas. Imaginou-lhe a maciez da pele, o frescor dos lábios, a firmeza das coxas, seios, nádegas.

— Meu Deus! Que pedaço de mau caminho!

Aproximava-se das três e quarenta quando enfim Raimundo pisou a soleira de casa. Coçou a cabeça e olhou o céu. Deu algumas pancadinhas na porta e esperou. Algum tempo depois pôde ouvir o arrastar das sandálias vindo em sua direção. Por hábito, a mulher perguntou quem era. Ele respondeu. Francisca abriu a porta. Bêbada de sono, sem olhar no rosto do marido, deu-lhe as costas e retornou na penumbra.

Raimundo entrou calado. Pôs o paletó e a mochila sobre o sofá. Encaminhou-se para a cozinha, abriu a geladeira e destacou algumas uvas do cacho que restara em uma bandeja de isopor. A chuva recomeçou com raios e trovões. De novo a lembrança de Gabriela invadiu a sua cabeça. Ele foi ao quarto, despiu-se, pegou uma toalha e rumou para o banheiro, a força do vício solitário a lhe inflamar os pensamentos.  

Escrito por Marcos Ferreira

AMENIDADES BADULAQUIANAS

Segredos imorais