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PAUTA DESAGRADÁVEL

Tenho uma porção de roupas esperando ser lavada, casa gritando por uma faxina, entretanto aqui estou procrastinando minhas obrigações domésticas, batendo neste teclado de computador sem ao menos estar certo de qual assunto desejo abordar. E dessa maneira, às cegas, sem rumo nenhum, é possível que isto não resulte em nada, tempo perdido. Sim, há outros afazeres que são prioridade.

Ocorre, porém, que Túlio Ratto me telefona e diz que planeja lançar outra edição eletrônica da Revista Papangu já no próximo final de semana. Meio que em cima da hora, portanto, pois hoje é quinta-feira, precisarei tirar uma crônica da cartola, quiçá da manga, feito um Harry Potter caduco e sem a sua varinha mágica. Fazer o quê? Tenho que me virar, cavar o pênalti, desabar na área e esperar pelo apito do juiz. Sou articulista dessa mensária revista e não pretendo ficar de fora.

Penso em discorrer sobre outro tema que não seja o da falta do que escrever ou de inspiração, no entanto dou uma olhada nos acontecimentos desta semana e tudo me parece fastidioso. Por exemplo, eu poderia falar da passagem do presidente Jair Bolsonaro por Mossoró na manhã de ontem, quarta-feira, mas, por uma questão de higiene mental, arrepio carreira desta pauta desagradável.

Que se dane o abominável e inescrupuloso Bolsonaro. Em pouco mais de um ano, infelizmente, já tivemos o desprazer de receber três visitas do Mercador da Morte. Assim ele foi apresentado, e com extremo merecimento, em capa recente e espetacular da revista IstoÉ. Entre outros detalhes, a capa exibe fotografia do Energúmeno com um corte de cabelo à moda Adolf Hitler e bigodinho característico do Führer composto com a palavra genocida. Um primor essa capa da IstoÉ!

Por higiene mental, como eu já disse, não quero falar sobre esse lixo desumano. Desmotivado, sem inspiração, deixo a escrivaninha e vou à geladeira, bebo um pouco d’água e pego mais um trago de café. São catorze horas e vinte minutos desta tarde ventilada e calorenta. Volto para diante da tela fluorescente do notebook. Beberico a rubiácea com vagar. Sinto uma forte sensação de vazio.

— Olha a cocada! — alarma um pregoeiro.

Pela manhã, à tarde e mesmo à noite, ao longo desta Rua Euclides Deocleciano, trafega toda sorte de vendedores ambulantes, gente humilde e sem trabalho formal que tenta ganhar o pão de cada dia vendendo todo tipo de mercadorias. São comerciantes de peixe, de frutas, verduras e legumes, pamonha e canjica, tapioca, beiju, queijos de coalho e manteiga, além de produtos de limpeza e fitoterápicos. Alguns estão a pé, de porta em porta, outros possuem carroças e bicicletas.

Há também a procissão dos esmoleres, que batem palmas, chamam os moradores, tocam campainhas, suplicam por alguma ajuda financeira ou alimento que corações piedosos lhes queiram oferecer. A Pátria Amada tem quinze milhões de desempregados e dezenove milhões de brasileiros passam fome. Pessoas cercam carros de lixo em busca de comida. As filas do osso vão se multiplicando.

Que país é este, meu caro Renato Russo?! Milhões de indivíduos estão vivendo abaixo da linha de miséria. Enquanto isso, na Sala de Injustiça, o arrivista Paulo Guedes, ministro da Economia, fatura alto investindo em paraíso fiscal nas Ilhas Virgens Britânicas. Aqui, sob a perversa batuta de Guedes, o preço dos combustíveis, sobretudo o da gasolina, está nas alturas. Inúmeras famílias estão cozinhando à lenha ou a carvão porque não conseguem comprar o gás de cozinha.

Isto em se tratando daquelas pessoas que ainda têm em casa, apesar da inflação absurda que enfrentamos, alguma coisa para cozinhar. Pois o valor da cesta básica, como tudo o mais, está pela hora da morte. Energia elétrica cada vez mais cara. Todos os dias os supermercados e as farmácias remarcam os preços. Carestia assombrosa, desleal, que vai asfixiando os brasileiros de baixa renda.

Fica difícil pensar e falar sobre arte, especificamente literatura, quando a gente sabe que a grande maioria do nosso povo não tem sequer o básico, revirando lixeiras de supermercados, cercando carros de lixo para garimpar algum alimento. Esses cidadãos desvalidos, conforme a imprensa brasileira tem mostrado, disputam carcaças de bois em açougues e frigoríficos, colhendo cartilagens e pelancas cujo destino natural seriam as empresas fabricantes de rações para cães e gatos.

Olho à volta e, apesar da vida humilde que levo, dou graças pelo pouco que tenho. Aflige-me, entretanto, saber e ver tantos por aí sem ao menos uma xícara deste café que vou tomando sem açúcar, por opção. Lembro que hoje já comi duas vezes, disponho de água e de um teto, enquanto sei que um gigantesco número de pessoas está a esta hora vivendo em calçadas, sob pontes e viadutos.

— Sorvete e picolé! — anunciam lá fora.

Escrevo com tristeza e revolta. Diante de tanta miséria, prezado leitor e gentil leitora, fica difícil até me regozijar com o prazer da escrita. Nutro a expectativa de editar um livro com uma seleta de crônicas num futuro próximo, todavia, em face da Covid-19 e da esculhambação da economia brasileira, bate um desânimo e uma frustração precoces. Quem afinal de contas, em tempos tão bicudos, terá condições de prestigiar uma noite de autógrafos e adquirir um livro?

Em Mossoró, como em toda parte, os lançamentos literários cada vez mais representam uma temeridade, uma quase certeza de fiasco. Porque isto sempre foi uma barca furada e ultimamente parece ainda mais arriscado. Contudo, por uma obstinação inconsequente ou esperança em tempos melhores, a gente continua escrevendo e, na medida do possível, editando nossas produções.

Talvez porque nos fiamos no Monteiro Lobato, que dizia que um país se faz com homens e livros. A frase é entusiasmante até certo ponto, mas nós sabemos que a realidade é muito mais dura e complexa. Hoje a situação é bem pior, notadamente em virtude do desgoverno que aí está, porém a cultura sempre viveu de pires na mão. Pelo simples fato de que aqui se investe pesado na ignorância do brasileiro em vez da sua ascensão intelectual. Assim mesmo o pulso ainda pulsa.

— Vai passando na sua rua o carro dos ovos!

Segue o pregão da Euclides Deocleciano.

Escrito por Marcos Ferreira

Comentários

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  1. É deste modelo, caro Marcos Ferreira. O da cocada vem acompanhado do slogan “estou amando a Jesus do fundo do meu coração”. E completa: ô cocada boa! O que salva, graças a Deus, é a criatividade do brasileiro, sua persistência, e a fé no amanhã. Como tem-se dito mas redes sociais: nem a NASA explica o povo dessa terra amada. Sua crônica aborda, com ironia e sarcasmo, as peripécias, dificuldades, resiliência, superação e, principalmente, força e esperança de dias melhores. E, de quebra, a própria “desordem” estruturada de seu ambiente familiar. Parabéns. Excelente.

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