Sobre

POETICIDADE

Por Marcos Ferreira

Busco nas cerdas invisíveis do vento uma suave escova que deslize sobre meus cabelos despenteados. Hoje estou carente desses afagos imateriais. Quero o beijo da aragem. Deixo-me estar à janela de minha alma, com vista para a rua de pedras e areia trazida pelas chuvas. Há estrelas cintilando no céu, grilos e sapos executam suas típicas sinfonias nos escaninhos da noite. Alguns audazes morcegos, como pequenos aviões de caça furtivos, cortam os ares arrojadamente.

O rock metálico do trânsito indica que as pessoas têm pressa de viver. Sim, a vida pulsa sobre o paralelepípedo e nos corações, apesar desse desgoverno nefasto que atua em desfavor dos pobres, da maldade de sua política contra a mesa e o prato dos brasileiros. Meu povo, neste Brasil e cidade, come lagartos, carcaças, cartilagens, e cerca caminhões de lixo à procura de comida.

Estou sempre sujeito (quem não está?) às influências do meio. Ou, para ser mais preciso, às influências do inteiro, do completo, do geral. Da vida, do mundo, enfim. Exatamente. Sou, como todos somos, influenciável. Embora algumas vezes eu também exerça alguma influência sobre terceiros. Basta uma lua obesa no céu, como aquela que ora contemplo, para a minha alma de poeta suburbano pensar num verso estratosférico, numa estrofe e rimas de brilho emprestado.

A vegetação nos campos, como em toda parte, após muito tempo trajando o grave cinza da estiagem, cobriu-se de verde. O útero do solo voltou a ser fecundado e a procriar com o milagre da água que o céu tem vertido sobre nós. Que importa que os enxames de muriçocas estejam de volta com redobrado apetite por sangue? Isso, diante do benefício do inverno, é café pequeno.

Entretanto, por característica desta região semiárida, o astro-rei continua dando as cartas. Predomina na maior parte do tempo. Em Mossoró ninguém morre de hipotermia. Não há qualquer dificuldade, por exemplo, para secagem de roupas expostas nos varais. Desde os tecidos mais leves aos mais pesados, tudo fica sequinho em minutos. Mofo?! Nada de mofo! A umidade relativa do ar está quase ao nível dos nossos pés. Aqui se frita, como se diz, ovo no asfalto.

A máquina fotográfica de um relâmpago iluminou momentaneamente o quintal. Esperei por um trovão, mas ele não veio. Talvez tenha preferido não interromper a cantoria dos sapos e grilos. Sem pudor, um gato e uma gata se amam em algum terreno ou telhado próximo. Discrição nunca foi o ponto forte desses adoráveis seres de patinhas acolchoadas. Circula um vento úmido.

Apesar das chuvas, ainda não há fartura. Nem sei se haverá. Não para as pessoas humildes. Muitas continuam nos semáforos exibindo cartazes pungentes, pedidos de socorro. São indivíduos que não têm o que comer. Outros não têm o que vestir nem onde morar. Fala-se muito na fartura dos grandes empresários agrícolas, porém essa riqueza toda é somente para eles próprios. Vai tudo para os bolsos deles, cuja maioria parece incapaz de oferecer um pão a um doido.

Bom, hoje não quero me alongar. Vim apenas dizer, entre outras coisas, que uma orquestra de sapos e grilos cantadores, além de uma constelação intermitente de vaga-lumes, trouxe um pouco mais de poesia para estas minhas horas de ócio criativo. Deixo à margem, em prol do lirismo, a horrenda metáfora da fome representada por tanta gente podre de rica, mas miserável de espírito.

Nós até resistimos, damos voltas no corpo, suportamos uma vida sem pão, sem teto e sem outras dignidades que nos negam e furtam, entretanto creio que a gota d’água de nossa existência será o dia em que nos faltar poesia. Porque poesia é a chama, é a força que nos faz resistir e lutar por dias melhores, é o nosso talento e pendor para a superação, mesmo perseguidos por inúmeras adversidades e privações. Poesia é a nossa coragem para sorrir na cara da tristeza.

Portanto, que nunca nos falte poesia. Coisa esta que não representa meramente uma composição em versos, mas a graça, o encantamento que estar vivo deve significar. Daí advém a poesia escrita, que é o retrato literal da humanidade e do mundo. Se esses sapos e grilos cantantes, além dos morcegos nos seus voos acrobáticos, se tudo isso não for poesia, então não sei o que é poesia.

Escrito por Marcos Ferreira

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