Por Marcos Ferreira
São nove e quinze. Agorinha caiu uma garoa. O tempo segue nebuloso. Deve chover novamente. Estou aqui fora do supermercado, à espreita de um cliente que me queira dar umas moedas pela limpeza do para-brisa, pois me vejo sem emprego há quase dois anos. Daqui observo quatro seres desprotegidos. Imagino que a esta hora da noite, se tivessem o que comer, estariam em casa, talvez assistindo a uma telenovela ou vendo a partida do Flamengo contra o Grêmio. Isso mesmo. Hoje tem jogo do Brasileirão, transmitido pela TV aberta. Falo dessa maneira, claro, supondo que aqueles indivíduos possuam um lar e até um modesto televisor.
Ciranda de mosquitos, ratos ocasionais, baratas em polvorosa com suas asas envernizadas. Detalhes! O homem ignora tudo, prende a respiração devido ao odor das embalagens de carne apodrecidas. Tem estômago forte e olhos aguçados de garimpeiro urbano, bateador de refugos. Sempre é possível encontrar algo aproveitável nessas lixeiras de supermercados. Quiçá um pacote de biscoitos avariado, uma fruta machucada, um saco de pães com um tiquinho apenas de mofo.
Estimo que seja uma família: ele, a esposa e duas crianças na faixa dos seis e oito anos, um menino e uma menina. Rostos com máscaras de pano, os quatro reviram as lixeiras desse supermercado onde ora me encontro também na expectativa de conseguir algum para os meus. Pois é, tenho um menino de dez anos e uma mocinha de treze. Desde que os jornais impressos faliram, aniquilados pelo advento da Internet, com seus blogues e portais eletrônicos, enfrento perrengues. Não mais consegui me manter como revisora de textos, eis a minha antiga ocupação.
Perdoem se acaso acham que falo demais de mim e não das pessoas que revolvem as lixeiras. É que me encontro num nível não muito acima deles. Logo, por tabela, sou partícipe desse flagelo social. Tenho intimidade com os percalços por que passam esses brasileiros repelidos e marginalizados pelo sistema econômico desta “pátria amada”. É o que estou dizendo. Enquanto mãe solteira, sou protagonista dessa intolerável e vergonhosa história de exclusão e desigualdade.
Sou autodidata. Um dia aprendi a ler e nunca mais parei. Não possuo curso algum de nível superior. O mais alto que cheguei foi na conclusão do ensino médio, via provões supletivos, quando eu estava prestes a completar quarenta anos de idade. Atualmente estou com quarenta e sete, embora pareça ter bem mais. Sou a primogênita de uma prole de onze filhos de pai e mãe analfabetos. No meu tempo, com tantas bocas para alimentar, meus pais viam nossa educação escolar como uma espécie de luxo, algo não essencial ou prioritário. Não àquela época.
Opa! O garotinho encontrou alguma coisa. Parece uma barra de chocolate estragada. Meu Deus! Ele começou a comer. Agora a irmãzinha se aproxima, e o menino divide o achado com ela. Não há como não me lembrar daquele poema do Manuel Bandeira. Atualíssimo, infelizmente. O pai e a mãe estão debruçados sobre outras lixeiras próximas, compenetrados, e nem se dão conta de que os pequenos comem essa droga de chocolate, que decerto lhes fará algum mal.
Família negra, subnutrida, possivelmente sem nível algum de escolaridade. Os quatro vestem andrajos e parecem sem banho não sei há quanto tempo. Agora creio que sejam sem-teto. Gente assim não tem lugar nem dia certo para tomar um banho. Quantas outras privações não têm passado? A essa hora revirando lixeiras. Que lástima, meu Deus! Ah, Brasil injusto, desigual! São quinze milhões de desempregados e quase vinte milhões de brasileiros curtindo fome nos quatro cantos do País. Por que, Senhor, tão poucos com tanto e tantos com tão pouco?!
Essa pandemia medonha amplificou o drama da fome, não resta dúvida, gerou desemprego em toda parte, colocou a todos nós de joelhos, contudo é o descalabro desse governo que ora nos desgoverna que vem dando o golpe de misericórdia. Caminhamos a passos largos para ultrapassar a triste marca dos seiscentos mil mortos pela Covid-19, enquanto o Nosferatu da Casa de Vidro faz pouco-caso da crise sanitária e zomba das famílias enlutadas olímpica e impunemente.
Ignorar ou omitir a criminosa contribuição que esse governo oferece para agravar a fome no Brasil, em parceria com o vírus e o desemprego, seria uma postura não menos criminosa. Não posso fazer de conta que não estou compreendendo o que se passa nem usar de eufemismos como “insegurança alimentar” ou “famílias vulneráveis”. Não, senhoras e senhores, o que mais agride o povo carente deste país é, sem uso de metáforas, fome! Muita fome! Uma fome nua e crua como essa que hoje à noite revira lixeiras de supermercado à procura de comida.
Fome dói, senhoras e senhores. Não afirmo isso por osmose ou dedução, mas por conhecimento de causa. Sei bem o que é passar necessidades, amanhecer o dia sem ter o que comer. E, ao contrário da famosa Amélia, com todo o respeito aos mestres Mário Lago e Ataulfo Alves, eu não achava isso nem um pouco bonito, por mais poético que essa tragédia possa parecer na letra e melodia de uma bela canção. A fome é uma coisa triste e feia; arrasa as pessoas, sepulta sonhos.
A mulher também encontrou alguma coisa entre os mosquitos e as baratas vermelhas. Parece que se trata de uma bandeja de iogurte. Está pingando. Ela mostra a mercadoria ao marido com um sorriso vitorioso. A menina e o menino se aproximam da mãe, na expectativa de que a genitora lhes ofereça um pouco. Quem sabe os produtos estejam em condições razoáveis, com o revestimento de um ou outro potinho furado. Às vezes alguns clientes mal-educados violam esses laticínios nas seções refrigeradas e aí o supermercado descarta o produto sumariamente.
Como era de se esperar, a mulher divide os potinhos com as crianças. Ela própria experimenta um. Que perigo, meu Deus: ambos usam o dedo indicador como colher. A jovem senhora oferece um potinho ao marido, porém este meneia a cabeça com uma negativa, e continua a garimpagem famélica. Ainda não encontrou nada, mas é provável que também ache alguma joia dessas, a exemplo da bandejinha de iogurte e da barra de chocolate descobertas por sua família.
Um funcionário do supermercado se aproxima com um carrinho cheio de coisas para jogar nas lixeiras. O garimpeiro sorri confiante.
Escreve-se a tragédia esses novos tempos quase como uma súplica para que passe logo. Fora Nosferatu!
Nobre escritor!
A fome dói, assim como dói os sonhos interrompidos e a esperança lacrada em embalagens de políticas públicas inexistentes. Dói a lágrima que cai, ao ler seu texto tão realista, de um cenário sempre presente nos nossos dias. Choro pela pátria “idolatrada”, entre máquinas e homens destituídos de humanidade. Um tapa na cara dos detentores do poder e da ganância de muitos, cegos e incompetentes em suprirem as necessidades de uma nação já tão sofrida, desde os tempos idos da nossa história. Parabéns, Marcos Ferreira! Abraço dolorido das bandas do Norte!
Triste realidade, caro poeta!
Cenário presente em nosso derredor que nos consome porque nos sentimos de mãos e pés atados! A inoperância dos detentores do poder é pura incompetência e descaso. É como dizia Manuel Bandeira: O Bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato, o Bicho, meu Deus, era um homem! A fome desqualifica o homem racional e o transforma em um bicho sedento por saciar um desejo vital e essencial para a sua existência.
Crônica realista e reflexiva!
Grande abraço, Marcos Ferreira!