Na minha casa, a leitura sempre foi algo estimulado por meu pai, e uma prática sem nenhuma censura. A gente podia ler o que quisesse, sem interferência ou proibição, mesmo que o conteúdo não fosse lá tão adequado à faixa etária. Hoje, creio ser prudente respeitar a idade do leitor, mas sem perder de vista a ideia de que, se a magia do ato de ler está nas revoluções do pensamento, a cabeça adapta a concepção que se consegue ter a cada momento, diante do texto.
Aos 12 ou 13 anos, por exemplo, li Onze Minutos, de Paulo Coelho, que trata de relações carnais. À época, entretanto, imaginei qualquer coisa, menos sexo. Aliás, nem lembro se àquela altura da vida, sabia direito o que significava isso. O que sobressaía em minha mente era a busca incessante da protagonista para superar infortúnios e ser feliz.
Naquele período, não lembro por que, Paulo Coelho e sua obra se faziam muito presentes em meu cotidiano. Pensava, especialmente depois da leitura de O Alquimista, que o escritor era um hippie com cabelos longos e estilo hi-lo. Tempos depois, descobri que ele é careca e se veste de forma sóbria. Usa até smoking. Bateu certa frustração no confronto entre a expectativa e a realidade. Mesmo assim, segui.
Veio Machado de Assis. Acho que, pela decepção com o que idealizei sobre o Mago, nem quis pensar como seria seu rosto ou cabelo, indo direto aos escritos do Bruxo do Cosme Velho. Confesso, todavia, que depositei tais expectativas em Capitu. Nos meus devaneios, o rosto dela parecia com o de Esmeralda, personagem de O Corcunda de Notre Dame, creio que pela famosa descrição dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Só não me pergunte como cheguei à conclusão de que a inocente Esmeralda teria tais características. Talvez, à época, a amada de Quasímodo fosse a única figura de cigana que eu tinha por referência.
Já adulta, no início dos meus estudos sobre direito e feminismo, deparei-me com Mea Culpa, autobiografia de Doca Stret, assassino de Angela Diniz, e, influenciada pelas descrições de que o sujeito era apaixonante, atribui-lhe rosto comprido e sorriso cheio de dentes, o que, diga-se de passagem, não atenua a covardia do crime praticado por ele.
Quando conheci Cid, em 2016, mesmo sabendo como era sua face, me propus a fazer o caminho inverso a fim de criar, para ele, com base no que ele escrevia, um rosto só meu. Passei, então, a ler absolutamente tudo o que havia no blog Canto de Página (www.cidaugusto.com.br). O empenho até virou soneto, mas essa parte conto depois. O importante é saber que dele também tenho um rosto exclusivo.
Pouco depois da “expedição Cid”, o dito cujo me emprestou o livro intitulado Eu Perdoo, do potiguar João Faustino Ferreira Neto, para quem desenhei um semblante de muita compaixão e fácil empatia. A obra é tocante, a começar pela narrativa da criança perplexa diante da morte do pai, até a prisão injusta na Operação Sinal Fechado.
Adiante, voltando aos estudos sobre direito e feminismo, apareceram-me escritos de Adriana Magalhães, alguém que não tinha expressão física para mim até recentemente, quando me deram a grata satisfação de conhecê-la. Sua face tão bonita quanto o que escreve ostenta, na minha ótica, uma fisionomia firme e ao mesmo tempo delicada. Adriana, por coincidência, é nora de João Faustino.
As imagens produzidas pela leitura se equiparam àquelas que o rádio traz ao ouvinte. Imaginar como é a pessoa que você ouve, apenas pela voz, é como arquitetar quem escreveu o que você lê, apenas pela escrita. Enxergar alguém pela essência é apaixonante. Por isso, muitas vezes, mesmo conhecendo frente a frente, prefiro lembrar do rosto que só eu conheço, porque o construí no pensamento, tão-somente com base em linhas e entrelinhas. A leitura proporciona exclusividade e satisfação que só lendo para entender.