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VIDA LONGA AO SÍTIO CASA FORTE

O Sítio Casa Forte é a residência de meu tio Arimatéia há muitos anos. Nem sei dizer quantos, mas lembro bem como aquele lugar começou a ser o refúgio dele.

Do ponto de vista estrutural, reconheço, a propriedade está muito diferente da que eu guardo na memória. Agora, visivelmente melhor e mais confortável, possui outros cômodos, mais espaço, uma piscina grande de alvenaria. Confesso, entretanto, que o ambiente antigo me provoca certa nostalgia. Tem calor, tem gente e tem até cheiro intactos na memória.

Quando fecho os olhos, vejo o pequeno espaço coberto, ensaiando uma casa, com aquele alpendre singelo, sem dizer dos pés de manga que serviam de abrigo para a cantoria. Ouço a voz de Silvana cantando Antônio Marcos, embora não enxergue quem toca o violão. Antônio Marcos era o cantor preferido de tia Conceição. Ela sempre fumava, daí o cheiro de cigarro atravessar a lembrança.

As crianças – eu entre elas – geralmente brincavam na cascata feita de um cano azul longo, todo furado, e, na base, a estrutura redonda de cimento retendo a água que caía. Uma piscina, em nosso imaginário.

A churrasqueira a todo vapor. O gosto da linguiça assada na brasa e da farofa, que, no auge da minha seletividade alimentar, além do leite com Nescau na mamadeira, era a única coisa que eu comia.

À tarde havia desfile de moda. A produtora, minha prima Aryane, organizava a música a ser reproduzida no toca-fitas vermelho que parecia de brinquedo e, se não me falha a memória, pertencia a outra prima, essa a minha irmã de alma e coração, Isis Gabriela.

Eu e Bebela, como a chamávamos carinhosamente, erámos as mais novas. Então, sempre tínhamos os direitos reprimidos em relação às mais velhas, com argumento de que erámos menores. Sei que essa regra é comum até hoje em ambientes com crianças de idades variadas, e não adiantava revolta, porque eram as diretrizes da organizadora do evento e tínhamos de seguir.

Sempre havia muitas meninas, mas Aryane capitaneava a equipe, considerando ser a única com prerrogativa de pegar as toalhas de mesa da mãe dela para que nós usássemos como vestido, a fim de que o evento de moda fluísse na mais perfeita ordem e padrão do Sítio Casa Forte.

Geralmente no meio do desfile surgia a voz de Ana Maria, mãe de Aryane, esposa do meu tio e dona das toalhas, que soltava logo a indagação:

– Quem é que está chafurdando com as minhas toalhas?

Nessa hora, todo mundo corria para um lado diferente, com medo da fúria de Ana Maria.

As mesas das quais ela tanto queria preservar as tolhas eram de ferro, pintadas de azul, com propaganda de cerveja no tampo, a exemplo das costas das cadeiras, que, se não for traição de minha memória, era a logomarca da Antártica, com dois pinguins, cerveja mais famosa do Brasil naquele período.

Na hora que se iniciava o tumulto, enquanto as meninas corriam com medo da briga que se anunciava e do possível castigo, Aryane recorria à última instância e suplicava o socorro do pai, que sempre salvava a parada e liberava, a contragosto da esposa, a continuação do Casa Forte Fashion Week.

Pipoca, sempre à tarde. Era o lanche. Depois, a gente voltava à piscina imaginária, onde ninguém percebia o anoitecer.

Hoje vou poucas vezes por lá, em geral para buscar meu filho, Guilherme, que igualmente a mim, na infância, ama estar ali, aproveitando a companhia do primo Júlio, filho de Ary e sobrinho da nossa eterna produtora de moda.

Fico feliz quando Guilherme está por lá, desejando que ele também construa memórias e possa sentir, sempre quando voltar, que ali é um lugar especial.

Vida longa ao Sítio Casa Forte.

Escrito por Clarisse Tavares

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