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  • GARIMPEIROS DA FOME

    Por Marcos Ferreira

    São nove e quinze. Agorinha caiu uma garoa. O tempo segue nebuloso. Deve chover novamente. Estou aqui fora do supermercado, à espreita de um cliente que me queira dar umas moedas pela limpeza do para-brisa, pois me vejo sem emprego há quase dois anos. Daqui observo quatro seres desprotegidos. Imagino que a esta hora da noite, se tivessem o que comer, estariam em casa, talvez assistindo a uma telenovela ou vendo a partida do Flamengo contra o Grêmio. Isso mesmo. Hoje tem jogo do Brasileirão, transmitido pela TV aberta. Falo dessa maneira, claro, supondo que aqueles indivíduos possuam um lar e até um modesto televisor.

    Ciranda de mosquitos, ratos ocasionais, baratas em polvorosa com suas asas envernizadas. Detalhes! O homem ignora tudo, prende a respiração devido ao odor das embalagens de carne apodrecidas. Tem estômago forte e olhos aguçados de garimpeiro urbano, bateador de refugos. Sempre é possível encontrar algo aproveitável nessas lixeiras de supermercados. Quiçá um pacote de biscoitos avariado, uma fruta machucada, um saco de pães com um tiquinho apenas de mofo.

    Estimo que seja uma família: ele, a esposa e duas crianças na faixa dos seis e oito anos, um menino e uma menina. Rostos com máscaras de pano, os quatro reviram as lixeiras desse supermercado onde ora me encontro também na expectativa de conseguir algum para os meus. Pois é, tenho um menino de dez anos e uma mocinha de treze. Desde que os jornais impressos faliram, aniquilados pelo advento da Internet, com seus blogues e portais eletrônicos, enfrento perrengues. Não mais consegui me manter como revisora de textos, eis a minha antiga ocupação.

    Perdoem se acaso acham que falo demais de mim e não das pessoas que revolvem as lixeiras. É que me encontro num nível não muito acima deles. Logo, por tabela, sou partícipe desse flagelo social. Tenho intimidade com os percalços por que passam esses brasileiros repelidos e marginalizados pelo sistema econômico desta “pátria amada”. É o que estou dizendo. Enquanto mãe solteira, sou protagonista dessa intolerável e vergonhosa história de exclusão e desigualdade.

    Sou autodidata. Um dia aprendi a ler e nunca mais parei. Não possuo curso algum de nível superior. O mais alto que cheguei foi na conclusão do ensino médio, via provões supletivos, quando eu estava prestes a completar quarenta anos de idade. Atualmente estou com quarenta e sete, embora pareça ter bem mais. Sou a primogênita de uma prole de onze filhos de pai e mãe analfabetos. No meu tempo, com tantas bocas para alimentar, meus pais viam nossa educação escolar como uma espécie de luxo, algo não essencial ou prioritário. Não àquela época.

    Opa! O garotinho encontrou alguma coisa. Parece uma barra de chocolate estragada. Meu Deus! Ele começou a comer. Agora a irmãzinha se aproxima, e o menino divide o achado com ela. Não há como não me lembrar daquele poema do Manuel Bandeira. Atualíssimo, infelizmente. O pai e a mãe estão debruçados sobre outras lixeiras próximas, compenetrados, e nem se dão conta de que os pequenos comem essa droga de chocolate, que decerto lhes fará algum mal.

    Família negra, subnutrida, possivelmente sem nível algum de escolaridade. Os quatro vestem andrajos e parecem sem banho não sei há quanto tempo. Agora creio que sejam sem-teto. Gente assim não tem lugar nem dia certo para tomar um banho. Quantas outras privações não têm passado? A essa hora revirando lixeiras. Que lástima, meu Deus! Ah, Brasil injusto, desigual! São quinze milhões de desempregados e quase vinte milhões de brasileiros curtindo fome nos quatro cantos do País. Por que, Senhor, tão poucos com tanto e tantos com tão pouco?!

    Essa pandemia medonha amplificou o drama da fome, não resta dúvida, gerou desemprego em toda parte, colocou a todos nós de joelhos, contudo é o descalabro desse governo que ora nos desgoverna que vem dando o golpe de misericórdia. Caminhamos a passos largos para ultrapassar a triste marca dos seiscentos mil mortos pela Covid-19, enquanto o Nosferatu da Casa de Vidro faz pouco-caso da crise sanitária e zomba das famílias enlutadas olímpica e impunemente.

    Ignorar ou omitir a criminosa contribuição que esse governo oferece para agravar a fome no Brasil, em parceria com o vírus e o desemprego, seria uma postura não menos criminosa. Não posso fazer de conta que não estou compreendendo o que se passa nem usar de eufemismos como “insegurança alimentar” ou “famílias vulneráveis”. Não, senhoras e senhores, o que mais agride o povo carente deste país é, sem uso de metáforas, fome! Muita fome! Uma fome nua e crua como essa que hoje à noite revira lixeiras de supermercado à procura de comida.

    Fome dói, senhoras e senhores. Não afirmo isso por osmose ou dedução, mas por conhecimento de causa. Sei bem o que é passar necessidades, amanhecer o dia sem ter o que comer. E, ao contrário da famosa Amélia, com todo o respeito aos mestres Mário Lago e Ataulfo Alves, eu não achava isso nem um pouco bonito, por mais poético que essa tragédia possa parecer na letra e melodia de uma bela canção. A fome é uma coisa triste e feia; arrasa as pessoas, sepulta sonhos.

    A mulher também encontrou alguma coisa entre os mosquitos e as baratas vermelhas. Parece que se trata de uma bandeja de iogurte. Está pingando. Ela mostra a mercadoria ao marido com um sorriso vitorioso. A menina e o menino se aproximam da mãe, na expectativa de que a genitora lhes ofereça um pouco. Quem sabe os produtos estejam em condições razoáveis, com o revestimento de um ou outro potinho furado. Às vezes alguns clientes mal-educados violam esses laticínios nas seções refrigeradas e aí o supermercado descarta o produto sumariamente.

    Como era de se esperar, a mulher divide os potinhos com as crianças. Ela própria experimenta um. Que perigo, meu Deus: ambos usam o dedo indicador como colher. A jovem senhora oferece um potinho ao marido, porém este meneia a cabeça com uma negativa, e continua a garimpagem famélica. Ainda não encontrou nada, mas é provável que também ache alguma joia dessas, a exemplo da bandejinha de iogurte e da barra de chocolate descobertas por sua família.

    Um funcionário do supermercado se aproxima com um carrinho cheio de coisas para jogar nas lixeiras. O garimpeiro sorri confiante.

  • NOTAS DE AGOSTO

    Por Marcos Ferreira

    Mossoró, madrugada, 28 de agosto de 2021.

    Enfim, para o bem das minhas pupilas e felicidade geral do meu estômago, eis que se encerraram as Olimpíadas de Tóquio. Paciência, Galvão Bueno. Paris é logo ali, como você não cansava de repetir. Salvo algumas situações, prezado leitor e gentil leitora, eu já não suportava a patriotada esportiva do Galvão, nem o frisson da Globo endeusando certos atletas, como fez com o mau perdedor Gabriel Medina, que não trouxe para casa ao menos uma honrosa medalhinha de bronze.

    No último dia 24, ainda em Tóquio, iniciaram-se os jogos paraolímpicos na Terra do Sol Nascente. Um detalhe: os atletas com deficiência que disputam esse torneio não estão recebendo nem a metade da pompa e circunstância que a grande imprensa dispensou aos envolvidos na primeira competição.

    Por acaso se trata de pessoas menos humanas ou menos brasileiras que as outras? Quem souber a resposta, por gentileza, que fale agora, ou se cale para sempre. Como diz a piada de mau gosto, agosto é o mês do desgosto. Desculpem a rima. Ou o eco, como quiserem. Este mês foi (continua, na verdade) bastante desagradável. Sequer os seus famosos e poéticos luares têm recompensado estas minhas horas insones e mal-humoradas. Não vejo lua nenhuma desta janela.

    Mês sombrio, de perdas e danos. Também de muitas patifarias políticas, como é próprio de todo mês, aliás, e de rompantes fascistoides. Viram aquele patético desfile de blindados no dia 10? Que coisa vexaminosa! O que era para ser uma exibição de força, de robustez militar, só deixou ainda mais explícito aos olhos do mundo a insignificância bélica do Brasil. Não se admirem, portanto, se formos atacados qualquer dia desses por alguma superpotência como Níger ou Serra Leoa.

    Distante dali, do outro lado das cercas de isolamento, nos grupelhos da indigência mental, o gado retumbante estava ouriçado e batia palmas, querendo lamber as botas dos homens de farda e os sapatos do fascista-mor.

    Toda aquela vergonha, prezado leitor e gentil leitora, a pretexto de entregar ao Nosferatu da Casa de Vidro (em grego Nosferatu significa “portador de praga”) um convite para um ensaio pirotécnico, sob o comando da Marinha, previsto para o dia 16. Aí fizeram desfilar por algumas ruas de Brasília o débil comboio de sucatas espirrando fumaça por todos os lados. Mais pareciam carros-fumacê, aqueles veículos utilitários que atuam no combate ao mosquito da dengue.

    Vamos de mal a pior, estrepados de verde e amarelo. Quinze milhões de desempregados e o governo do sacripanta brincando de superfaturar compra de vacinas. Por outro lado, torno a dizer, o ramo de centros de velórios e casas funerárias segue esbanjando saúde financeira. O preço do caixão está pela hora da morte. Enquanto isso pessoas carentes comem o pão que o diabo amassou.

    E o custo dos combustíveis, onde vai parar? Saibam logo que isso não vai parar. Chupem essa manga azeda, aguentem a escalada inflacionária da Petrobras, preparem os bolsos, quebrem o porquinho de gesso das moedas inferiores a cinquenta centavos. Sim. Dia 12 a gasolina subiu outra vez. Cadê aquele pessoal histérico que dava chiliques nos postos na época do governo Dilma Rousseff?

    — Petista! — gritam os bolsominions.

    — Não sou petista nem lulista — defendo-me. — O que sou é antifascistas. Não comungo com esse que é o presidente mais canalha da história deste país. Nem na época da ditadura militar, do ponto de vista governamental, tivemos uma administração tão desastrosa. Portanto, ache ruim quem quiser, não sou partidário nem simpatizante desse desgoverno que zomba de famílias enlutadas.

    Neste mês, por parte da Câmara dos Deputados, foi desferido um golpe extremamente covarde contra os direitos dos trabalhadores. Votaram a favor de uma nefasta minirreforma trabalhista que representa um atentado à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Com esse desserviço, os parlamentares retiraram do trabalhador direitos como férias, 13° salário e FGTS. Estimulam a contratação de pessoas sem carteira assinada, sem direitos trabalhistas e previdenciários.

    Os trabalhadores sofrem redução no pagamento de horas extras, têm o acesso à Justiça prejudicado e dificilmente poderão contar com uma fiscalização trabalhista com plenos poderes para proteger os empregados.

    Passo um fio para o jornalista político Bruno Barreto e sou informado de que todos os deputados federais do Rio Grande do Norte, à exceção de Rafael Motta e Natália Bonavides, traíram os eleitores potiguares. Anotem aí, prezado leitor e gentil leitora, os nomes dos quatro judas que votaram contra os trabalhadores: general Eliéser Girão, Carla Dickson, João Maia e Benes Leocádio.

    Houve dois covardes que se abstiveram. Aliás, saíram de fininho da votação no intuito de não se comprometerem. Ou seja, tentaram assim lavar as mãos, que continuam sujas da mesma forma. Foram os parlamentares Walter Alves e Beto Rosado. Este último, para nossa vergonha, filho de Mossoró.

    Agosto não deixará saudades. Falo por mim, claro, no entanto sei que muita gente deve concordar. Perdemos no dia 11, aos oitenta e quatro anos, o grande ator Paulo José, um dos meus preferidos. Sofria de Mal de Parkinson há mais de vinte anos. Faleceu em decorrência de uma pneumonia. Menos de vinte e quatro horas depois, como se não bastasse, fico sabendo da morte do Tarcísio Meira, vitimado pelo coronavírus. Ele que já havia tomado a segunda dose da vacina.

    Tarcísio Meira, casado por cinquenta e nove anos com a atriz Glória Menezes, tinha oitenta e cinco anos de idade, dos quais sessenta e três foram dedicados à dramaturgia brasileira. Não se pode baixar a guarda diante desse vírus. Doença imprevisível. Digo que é cedo para abdicarmos do uso de máscaras. Não há vacina com cem por cento de eficácia. Cada organismo reage a seu modo.

    É verdade, porém, que agosto trouxe algumas poucas e boas notícias, como a prisão do ex-deputado ultrarridículo Roberto Jefferson, pedida pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. Sim, Alexandre, o Impávido.

    Em Mossoró, felizmente, o programa de vacinação segue a todo vapor. Considerando o entusiasmo e empenho do nosso jovem e dinâmico prefeito Allyson Bezerra, dentro em breve estaremos vacinando até recém-nascidos. Incansável, obstinado em zelar pelo bem dos seus conterrâneos, Bezerra anda de cima abaixo, gastando sola de sapatos pelos quatro cantos de Mossoró com os bolsos cheios de seringas, aplicando ele próprio os imunizantes de que o município dispõe.

    — Allyson Mãos de Seringa — disse um gaiato.

    O imberbe prefeito, no afã de assistir e proteger a população contra esse terrível vírus, não pode ver um braço dando sopa. Conta-se que semana passada, não fosse pela advertência de um auxiliar que o acompanhava, Bezerra se confundira e já sacara de uma seringa para vacinar a estátua do jornalista Dorian Jorge Freire, situada na praça defronte da Biblioteca Municipal Ney Pontes Duarte.

    — Arrocha, prefeito! — gritou um popular.

    Bezerra abriu um sorriso amarelo e picou a mula.

    Que Deus abençoe o Menino Pobrezinho!

  • O SONHO DO CARRO ZERO

    Naquela manhã, ao deixar o marido e a esposa grávida à porta da maternidade, o senhor Domingos estacionou o velho Fiat Uno e atravessou a rua para servir-se de um café e fumar um cigarro no quiosque da praça.

    Era por volta das sete e meia. Três sujeitos estavam por ali conferindo na tevê do quiosque a partida entre a seleção masculina de futebol do Brasil e o time do Egito, que disputavam uma vaga na semifinal nas Olimpíadas de Tóquio. Durante aqueles minutos, cigarro no bico, o senhor Domingos assistiu à partida. Reclamou da ausência de alguns jogadores e retorquiu a convocação de outros.

    — Eles tinham que ter liberado o Pedro.

    Um tipo baixote e vermelho alfinetou:

    — O senhor só pode ser flamenguista.

    — E daí?! — reagiu tragando o cigarro.

    — Se pudessem, vocês empurravam o Flamengo inteiro com o uniforme da Seleção — disse outro vestindo camisa do Vasco.

    — É muito melhor do que esse seu time de segunda divisão — devolveu o taxista de imediato, com um sorrisinho tripudiante.

    Um rapaz cheio de tatuagens interveio:

    — Hoje o Palmeiras é muito mais time.

    O senhor Domingos ia se emaranhando naquela picuinha futebolística, quando súbito o telefone tocou no bolso da sua camisa. Consertou os óculos no alto do nariz e identificou a chamada. Um vizinho e cliente, com quem ele se acertara na noite passada, o aguardava para uma corrida até a rodoviária.

    Sessenta anos de idade, há vinte e cinco na profissão de taxista, o senhor Domingos adquirira a confiança de muitos, notadamente pelo seu perfil simpático e educado, respeitoso, sobretudo, com suas passageiras.

    A razoável clientela chegava para acudir o orçamento da casa, obrigações com esposa e filhos recém-chegados à maioridade, e conseguia reservar uma grana para cobrir a parcela do consórcio do sonhado carro zero.

    — Quanto foi meu cafezinho? — perguntou.

    — Um real — respondeu o dono do quiosque.

    Com apenas duas portas, adquirido com alta quilometragem e sem alguns luxos como direção hidráulica, vidros elétricos nem ar-condicionado, o táxi do senhor Domingos, ano 1985, dava sinais de extenuação.

    Não raro encostava numa oficina mecânica. Isto apesar de todo o zelo e carinho do proprietário, que cuidava tão bem da sua ferramenta de trabalho quanto da família. Algumas vezes, em tom espirituoso, a senhora Berenice, a esposa, dizia que o marido gostava mais do carro do que propriamente dela.

    Quando alguém da família ou um amigo mais íntimo, também em tom espirituoso, fazia um comentário desabonador sobre as condições do padecido Fiat Uno, Domingos não se abalava e respondia bem-humorado:

    — Ora essa! Meu carro não é velho, não. Trata-se de um automóvel ainda jovem, com apenas trinta e seis aninhos de idade.

    Naquela manhã de julho, enquanto se encaminhava à residência do cliente que tencionava levar à rodoviária, o senhor Domingos topou com uma forte e repentina chuva, fato este que o obrigou a fechar as janelas.

    Logo o vidro começou a embaçar e ele dirigia acenando uma flanela contra o vidro, posto que o limpador de para-brisa estava sem funcionar. Diante da pressa e da visão embaçada, ele calculou mal a proximidade de um caminhão ao cruzar a BR-304. A Moça da Foice pegara carona no velho Fiat.

    Ao ser retirado das ferragens, o telefone voltou a tocar sobre o peito do senhor Domingos, agora mudo. Um policial do Corpo de Bombeiros ouviu a chamada e achou por bem atender. Podia ser alguém da família:

    — Alô — disse o militar num tom grave.

    Na outra ponta da linha uma voz feminina:

    — Senhor Francisco Domingos, bom dia! Olha, estou ligando para lhe informar que o senhor foi sorteado em nosso consórcio. É isso mesmo. O senhor acaba de ganhar o seu tão esperado carro zero. Parabéns!

    — O senhor Domingos não pode atender.

    — Preciso dar essa notícia. Ele ficará feliz.

    — Não… O senhor Domingos morreu.

    Na tarde seguinte, cercado por muitos familiares e amigos, o senhor Domingos foi sepultado junto com o sonho do carro zero.

  • MOCINHOS E BANDIDOS

    Está na moda, ao menos em relação a alguns indivíduos, posar para fotinhas imitando com a mão e os dedos a silhueta de um revólver ou pistola. Essa marmota teve origem na proposta armamentista do governo federal de transferir para a população a responsabilidade e as consequências de sua própria defesa. Considero isso, respeitando os motivos daquelas autoproclamadas “pessoas de bem”, algo preocupante. A ideia de cada brasileiro possuir arma em casa ou andar por aí com um pau de fogo na cintura me transmite menos segurança do que temor.

    Porque eu, que jamais peguei em armas, exceto a da palavra, sinto um nervoso medonho ao avistar alguém portando coisa desse tipo. Até diante da polícia, sobretudo a militar, eu sinto receio. Nunca se sabe, com respeito aos bons e valiosos policiais, qual é o uniforme que oculta um bandido fardado.

    É triste, mas essa é uma guerra que nunca terá fim. Em alguns casos, a polícia executa bandidos (ao menos aqueles sem gravata) sumariamente. Isso, convenhamos, não é nenhuma novidade. Por sua vez, sem excluir policiais honrados de policiais bandidos, surgem criminosos implacáveis e arrebatam a vida de homens corretos, de bons filhos, bons maridos e bons pais de família.

    Assusta-me, portanto, a falta de empatia das pessoas, de compaixão, de respeito, amor. Por que tanta desumanidade? Que o gesto de tratarmos bem uns aos outros aconteça independente da religião, da conta-corrente, do poder aquisitivo, cor da pele e opção sexual. É tão bom e tão justo vivermos e deixarmos viver! Por que, afinal de contas, atacar? Por que destratar? Por que agredir, verbal ou fisicamente, quando podemos ser gentis e amorosos, solidários e amigáveis?

    Criatura estranha, complexa e imprevisível é o ser humano. Por vezes tão desumano. O que há na mente e coração do bicho-homem que torna tão frágil e tênue a linha entre a bondade, crueldade, amor e ódio?

    Vejam a que ponto chegamos. Há indivíduos por aí, alguns à frente de programas televisivos, envergando um terno caro, cuspindo discursos de ódio e comemorando “cancelamentos” de CPFs. Ou seja, festejando a morte de um semelhante enquanto fazem aquele sinalzinho repulsivo do revólver ou da pistola com a mão e dedos. Quem assim age não é menos bandido que o outro.

    Existem os extremos de ambas as partes. Há elementos fora da lei que, às vezes, são muito mais fraternos e generosos do que certos bandidos do colarinho branco, pessoas que possuem enorme dificuldade de estender a mão aos necessitados, exceto se for para bater foto ou fazer vídeo e postar nas redes sociais. Acredito, apesar de tudo, que os verdadeiramente bons são maioria sobre os demagogos e hipócritas. Assim como não concordo que bandido bom é bandido morto.

    Já experimentei os dois lados da moeda. Certa noite, quando eu me encontrava em casa de uma antiga namorada, ainda à época do namoro de cadeiras na calçada, eis que fui surpreendido por uma dupla armada e encapuzada. O mais alto, sem me apontar o revólver, exibindo no antebraço direito a tatuagem de um Cristo crucificado, anunciou o assalto. Aquela voz grave me era familiar.

    Sem truculência, o segundo assaltante recolheu meus pertences: um relógio barato, carteira com documentos e pouco mais de cem reais. Fui à delegacia, fiz o boletim de ocorrência, contudo omiti o detalhe da tatuagem. Dias depois um dos assaltantes, o da tatuagem, procurou-me para devolver a carteira e os documentos. Era Rogério, ex-policial militar, já expulso da corporação, que enveredara pelo caminho das drogas e do crime, mas que se ufanava de nunca ter puxado o gatilho contra ninguém. Tipo grandalhão, simpático e benquisto pelos vizinhos.

    — Toma a tua carteira — disse-me no portão da minha casa. — Vim lhe trazer. Fiquei sabendo do que houve. Só não posso dizer quem é nem devolver a grana. Mas não se preocupe. Daqui por diante ninguém mais vai mexer com você. Eu falei pros caras que você é meu chapa. Fique sossegado.

    Eu fiz de conta que acreditei no relato:

    — Valeu, Rogério. Agradeço demais.

    Outra noite, há mais de trinta anos, eu e outro colega de escola, ao voltarmos a pé do Abolição IV para o Santa Delmira, fomos abordados por um sargento da polícia militar, morador daquele conjunto habitacional. Visivelmente embriagado, embora de serviço, o sargento Taumaturgo (vamos chamá-lo assim) mandou-nos parar quando íamos passando defronte da delegacia do bairro.

    — De onde vocês vêm? — perguntou ele.

    — Da escola — respondeu o meu amigo.

    — A essa hora?! Já é mais de meia-noite.

    — É que demoramos conversando com um colega nosso, em frente à casa dele, ali pertinho da quadra de esporte — argumentei.

    — Me mostrem os documentos de vocês.

    Estávamos sem documento naquela noite.

    — Infelizmente, eu terei que prendê-los.

    Meu colega de sala de aula se desesperou:

    — Pelo amor de Deus! Não fizemos nada.

    — Eu é que não sei. Os dois estão presos!

    Jefferson Batista, meu amigo, que hoje em dia é advogado criminalista, caiu no choro. Eu consegui segurar o meu. Nesse momento, contudo, para a nossa felicidade, aproxima-se o cabo Azevedo e intervém a nosso favor:

    — Pode deixar. Eu conheço esses rapazes.

    — Da próxima vez, mocinhos, saiam de casa com os seus documentos. Não está escrito na testa das pessoas quem é marginal ou gente de bem — asseverou o sargento Taumaturgo com a voz pastosa devido ao álcool.

    — Sim, senhor! — falamos a uma só voz.

    Recordo essas histórias com um bocado de acertos e outro de erros. Passados tantos anos, claro, eu não poderia reproduzir agora aqueles eventos ipsis verbis. Saibam que o exercício de exumar lembranças sempre me foi ingrato e malsucedido. Considere-se ainda que a minha memória, como falei ou escrevi em outras oportunidades, tem a resistência de um Sonrisal num copo d’água.

    Não estou aqui pagando de santo nem de moralista. Também carrego os meus erros, minhas vergonhas, possuo meus pecados e falhas. Algumas de minhas faltas são bastante condenáveis perante a ordem moral que pregamos. Mas não se anime o prezado leitor nem a distinta leitora achando que lhes narrarei qualquer dessas memórias pouco exemplares. O que busco dizer aqui é que nem todo mundo é totalmente mau ou totalmente bom. Às vezes, por força das circunstâncias ou tibieza de personalidade, as pessoas tropeçam, caem nas esparrelas da vida.

    Carecemos menos de polícia que de autopoliciamento. Sim, precisamos de autocrítica, de tolerância. O Diabo, segundo dizem, inventou o pecado, é o criador e garoto-propaganda da ruindade. Deus, por sua vez, segundo as Escrituras, inventou a babel, que significa esse mundo todo de vozes, idiomas.

    A continuarmos dessa forma, irmão matando irmão (o que ocorre desde Caim e Abel), aferrados à política do olho por olho, feito dizia Gandhi, o mundo acabará cego. Precisamos, já cantava Renato Russo, amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Só não entende e não vê isso quem não quer.

  • A IRMÃ DE CRISTO

    Quase três horas adulando um soneto. Consegui dar cabo dos quartetos (razoáveis, a meu ver), porém os tercetos emperraram. Paciência. Mudemos para a crônica. Deixemos o poema amadurecendo nos escaninhos da mente. No mais das vezes persevero, travo uma luta ferrenha com os meus neurônios, mas há ocasiões em que é preciso dar um tempo, tomar um banho bem frio e uma boa talagada de café amargo. Após isso, o que não é regra, termino encontrando a solução para os versos insubordinados, inacessíveis como certos políticos reeleitos.

    Se eu sigo algum ritual para escrever? Talvez. Mas seria algo involuntário. Inquieto-me da mesa para a cama, da cama para a rede, armada aqui na sala, às vezes com uma caneta e bloco de notas. Então “eu olho, assustado, para a página branca de susto”. Apenas para citar Quintana, embora alguns leitores mais áridos, carentes de cultura literária, considerem tais citações uma coisa presumida, empolada, pedante. Fazer o quê? Não posso responder pela ignorância alheia. A minha já me é o bastante para que eu entenda que aquilo que sei é uma gota e o que ignoro é um oceano, como nas palavras do cientista inglês Isaac Newton.

    Ouso dizer que hoje em dia, dispondo-se de um serviço de internet, de um celular ou computador, tornou-se fácil (aspas) que um indivíduo se venda por intelectual. Ou afete, digamos, uma intelectualidade medíocre. Porque frases engenhosas como essa de Newton são absolutamente encontráveis nos sites de busca, sem que o suposto intelectual precise consultar sua biblioteca física um sem-número de vezes, no caso daquelas pessoas que possuem bibliotecas.

    Temos em Mossoró um autor — rapaz velho com mais de setenta anos, formado em ciências jurídicas e medicina veterinária, entretanto estabelecido no ramo de peças de automóveis — que já deveria ter sido agraciado com um Jabuti ou um Prêmio São Paulo de Literatura. Se não pelas várias obras publicadas do próprio bolso, entusiasticamente aplaudidas pelas igrejinhas daqui e da capital potiguar, ao menos pela admirável qualidade das epígrafes e aforismos com que ele impregna os seus romances, contos, poemas, crônicas e ensaios literários.

    Sim. O senhor Olavo Cardoso, eis o nome do referido escriba, notabiliza-se (no meu modo de ver) muito mais pela citação das obras e pensamentos de terceiros do que pelos méritos de suas próprias letras.

    Isso, no entanto, não é da minha conta. Decerto também não é do interesse do paciente leitor. Iniciei estas linhas falando sobre poesia, e é sobre poesia que desejo continuar falando. Talvez eu devesse expor aqui as duas primeiras estrofes do referido soneto. Não. Fiquemos na categoria da crônica. O que não me impede de lhes apresentar a minha opinião sobre a arte do verso.

    Eu dizia da minha peleja à cata dos tercetos, até agora sem remédio. Estalo os dedos. Daí a pouco vou dar uma olhada no trânsito. Espio por cima do muro, que é baixo o suficiente para esse tipo de espreita. Subo em dois tijolos de cerâmica, que mantenho ali para essa finalidade. Ganho uns vinte centímetros de altura e consigo espichar a cabeça para melhor examinar a rua. Contudo ainda é cedo e quase não há tráfego; uma motocicleta e um carro passam devagar. A seguir, com menos velocidade, dois ciclistas e um carroceiro tomam rumos contrários. A carroça segue em direção ao oeste enquanto as bicicletas rumam para o leste. Ruazinha estragada e morta de um domingo igualmente morto. Continuo, repito, sem engenho para dar à luz os tercetos necessários à conclusão daquele soneto iniciado há horas.

    Volto para a rede, enfastiado da monótona paisagem da rua. Apesar do inexplicável tremor das minhas mãos, coisa que o Dr. Dirceu Lopes (meu psiquiatra) tem se empenhado em resolver, pego o bloco de notas e me ponho a cismar, os olhos mirando o vazio, mordiscando a tampa da caneta. Sobre o que escrever, afinal, nesta crônica digressiva, sem rumo certo? “Decifra-me ou te devoro”, ameaça-me a esfinge de Tebas. É melhor que eu não permaneça na enrolação, abusando da paciência do leitor, cujo tempo destinado às nossas crônicas de qualidade pretensamente elevada merece ser valorizado. Pego outra xícara de café amargo e me ponho a saborear a rubiácea. Sequer um braço de vento se insurge contra a quietude.

    Ouço a buzina de um carro, seguida pelo som das portas se fechando, e vou espiar a rua outra vez. A visita não é para mim, felizmente. O veículo parou diante da casa da senhora Margareth. Desceu um jovem e rechonchudo casal e o rapaz tocou a campainha da residência. Daí a pouco a senhora Margareth lhes abriu o portão. O cachorro vira-lata do padeiro Saldanha vela um osso descarnado ao pé do poste. E esta rua vazia e morta me lembra um poema de Mauro Mota. Uma cigarra estridula seu característico canto de acasalamento nas imediações.

    Sofro intimamente a dor dos versos que não consigo parir, esperando uma fagulha de engenho. Tenho a impressão de que me olham, à sorrelfa, os olhos invisíveis da Poesia, que hoje está de mal comigo.

    Antes de atritarem as primeiras pedras e obterem o fogo, ela já se fizera inquilina dos subterrâneos e porões das nossas almas. Precede a escrita, a tinta e o papiro. Constitui os primórdios da linguagem. Compõe a nossa essência e cotidiano desde a pré-história, do interior das cavernas às habitações de agora. Socializou e interagiu com o homem primitivo à volta de fogueiras.

    Ela está em toda parte. Sobreviveu a hecatombes e cataclismos, foi tragada por dilúvios e consumida por vulcões, no entanto ressurgiu como uma fênix. Sempre viveu conosco, em meio à luz e às trevas, independente do nosso querer e escolha. Existe desde a criação do mundo e do ser humano. Possui dimensões microscópicas quanto gigantescas. Muitas vezes se encontra bem diante dos nossos olhos e não conseguimos enxergá-la. Com algumas exceções, pois há quem jure de pés juntos que a desprezam e repelem, todos a estimamos e a cobiçamos.

    Sinto a sua presença enquanto escrevo. Adivinho o seu olhar onipresente pairando sobre mim. Está dentro de nós, habita-nos e nos circunda a um só tempo. Não nos diz a que veio (nem carece), pois a ela nos destinamos, embora a subestimemos aqui e ali com a nossa fria e pragmática lógica.

    Hoje a Poesia não parece disposta a colaborar para a conclusão do meu soneto. Vejo-a reflorir entre os espinhos e pedras do caminho. Continua e será exatamente a mesma, por séculos infindos, diversa e una. Reina sobre todas as amarras e grilhões, sobre todas as formas e regras, antiguidades e modernismos, vozes e silêncios, guerras e paz. Ela coexiste entre a lágrima e o riso, entre o êxtase e a dor, o fracasso e o sucesso. É fardo e fortuna, prazer e suplício de todos os seus discípulos e devotos. Alista reis e vassalos para a empresa de sua eternidade. Nobres e plebeus compartilham do mesmo pão verbal à sua mesa farta e indistinta.

    Não possui fronteiras nem alfândegas. Cabe no útero de uma ostra e transborda rios, agita oceanos. É a pomba e o chacal, a espada e o cordeiro. Ora é festa e multidão, noutro instante é abandono e vazio. E se acaso à noite ela se revela sombra e embaraço, ressurge cristalina “mal rompe a manhã”.

    Eis, senhoras e senhores, a irmã de Cristo, a filha bastarda que Deus não quis registrar nas sagradas escrituras: a Poesia!

  • PEPITA

    Sabemos pouco a respeito dela. Quase nada, aliás. Com a jovem mãe e dois irmãos também pequeninos e subnutridos, rondava a casa de Natália e imediações em busca de comida. Natália Maia (minha adorável noiva) apiedou-se da situação vulnerável daquela família. Passou a oferecer-lhes algum alimento de vez em quando, contudo a frequência do auxílio tornou-se diária.

    Há cerca de um mês, infelizmente, Pepita ficou órfã. Sim, Pepita; é como a chamamos, pela inquietude, preciosidade e comportamento arredio nas primeiras tentativas de nossa aproximação e zelo. Algo de todo compreensível posto que se achava à presença de completos estranhos. Até agora nenhum pai lhe veio reivindicar a paternidade, de modo que ela e os três irmãos se viam absolutamente sozinhos neste mundo hostil, vivendo na rua, sem um teto, sem amparo, a depender da caridade e misericórdia de terceiros. Não bastasse, os irmãos sumiram; anoiteceram e não amanheceram, como se diz. Natália, que tem o instinto materno à flor da pele, logo ficou de coração angustiado, e assim se manifestou perante o drama:

    — Não podemos deixá-la na rua.

    — Está pensando em adotá-la?

    — É justamente o que vou fazer.

    — Ok. Você tem o meu apoio.

    Desconhecemos a causa mortis da genitora. Por volta do meio-dia, quando foi à calçada procurar a família para oferecer-lhe comida, Natália deparou-se com a mãe de Pepita estendida à sombra de uma árvore, os filhos à sua volta, no canteiro da Rua Francisco Heronildes da Silva, no Aeroporto I.

    Portanto, como eu já disse, os irmãos desapareceram. Isso foi a gota d’água para que nos decidíssemos pela adoção, algo que formalizamos de imediato recolhendo-a da rua e com o cumprimento de algumas providências de ordem material inadiáveis. De início, claro, tivemos certa dificuldade em fazê-la confiar em nós, não obstante todos os mimos e paparicos que lhe dispensamos. Assim, com muita paciência e carinho, vejo que ela nos retribui todo esse afeto ao seu tempo e à sua maneira. Não temos pressa. O relógio corre a nosso favor. Natália se desdobra como pode para que não lhe falte nada. Pepita nos cativou em definitivo.

    Hoje, de forma impensável, ela se tornou o xodó da casa, uma ternurinha comum a todos nós: a mim, a Natália; à dona Francisca, minha sogra; a Vanda, minha cunhada preferida; a Jorge, esposo de Vanda; e a Joserlan, filho adolescente do casal Vanda e Jorge. Comigo ela se mostra mais à vontade, pois a cubro de cafunés, mil e um afagos, sobretudo à noite, quando Natália e eu vamos para a calçada com cadeiras e tomo Pepita em meu colo por longos minutos.

    Além de comida apropriada, Natália comprou-lhe alguns brinquedinhos, com os quais Pepita costuma se divertir. Dona Francisca, de boa vontade, preparou uma caminha especialmente para ela. Ao longo destes quase trinta dias em que vive entre nós, ganhou algumas boas gramas de peso, está mais grácil e formosa e seus lindos olhos azuis se mostram mais belos e vívidos.

    Ignoramos, entre outras coisas, a real condição de saúde de Pepita. Estimamos, no entanto, que seja saudável, apesar da vida pregressa rifada na rua, exposta a toda sorte de perigos, fome e desamparo. Vez por outra, a julgar por seu olhar distante, ela nos parece um tanto tristonha, decerto com saudades da mãe recentemente morta e dos irmãos desaparecidos. Em breve daremos início aos seus exames laboratoriais, a fim de detectarmos quaisquer patologias.

    Afora os olhos azuis e o porte longilíneo, ela possui a maior parte do pelo na cor café com leite, um marrom clarinho. A cauda, as partes superiores das patas, as orelhas, o focinho e o centro do rosto são negros. Após uma busca na internet, informei-me de que, com a chegada da idade adulta, as regiões mais claras da pelagem tendem a mudar para um marrom azulado ou um castanho-escuro, sem desvirtuamento da raça. Segundo um amigo veterinário — e isto é inequívoco —, Pepita é uma gatinha siamesa com cerca de três a quatro meses de nascida.

    Por justiça, careço dizer que Natália tomou para si todas as tarefas em relação a Pepita: alimentação, higiene, recreio. Além dos referidos brinquedos, adquiriu uma caixa com areia especial para as evacuações da pequena felina. Também supervisiona as investidas (por enquanto inglórias) da bisonha predadora contra desavisados passarinhos e lagartixas. Outro dia, ao ouvir um barulho estranho na garagem, Natália foi averiguar e flagrou Pepita ainda com a boca cheia de penas, os olhos arregalados. Felizmente o pássaro atacado conseguira escapar.

    Faço as vezes de porta-voz da família e digo que a presença de Pepita em nossas vidas representa uma bênção imprevista, um bem-estar e benquerença recíprocos. Em especial para mim e Natália, e um tantinho mais para mim, cujo coração está redescobrindo esta outra forma de amar.

    Entristece-me tanto quanto revolta saber que a esta hora há por aí indivíduos desalmados, seres perversos, que se ocupam em atacar gatos e cães abandonados, indefesos, submetendo-os a sofrimentos absurdos, cruéis. Isto pelo mórbido prazer de fazer o mal. Não duvido de que tenha sido este o triste fim da mãe de Pepita, cujas características do sinistro apontam para envenenamento. Torço que esses algozes sejam minoria em relação àqueles que se emprenham em fazer o bem a essas criaturinhas em situação de rua. Recordo Luiz Gonzaga, que, em uma de suas mais célebres canções, já dizia que o jumento é bom e o homem é mau.

    Certos animais possuem caráter e sentimentos muito mais nobres do que certas pessoas. Então acho injusto para com os seres ditos irracionais, por exemplo, quando vejo alguém xingar seu semelhante de cachorro ou cadela. Trata-se de uma referência pejorativa contra aqueles e um elogio involuntário a estes. Salvo exceções, o bicho-homem não enxerga o próprio rabo.

    Marcos Ferreira escritormarcosferreira@gmail.com

  • MISÉRIA

    Manhã de dezembro, véspera de ano-novo. As mesas do Café Sarajevo se encontravam quase todas vazias. Por um sentimento de inferioridade, ela atravessou o amplo corredor do Edifício Colombo como se estivesse infringindo uma lei. Sentia-se indigna de pisar um ambiente tão luxuoso, lojas caras, destino frequente de uma elite financeira e cultural composta (salvo exceções) por indivíduos rasteiros com egos estratosféricos.

    Negra, andrajosa e anônima, idade superior a setenta anos, conduzia pendurada às costas uma velha mochila de lona com algumas esmolas. Parou na ponta do corredor que dá acesso à Praça do Relógio. Mais precisamente, perfilou-se na lateral da sortida loja de suplementos vitamínicos e artigos esportivos. Deteve-se aí com a sensação de que alguém viria convidá-la a se retirar a qualquer momento. Avistou um dos bancos de ferro e madeira do corredor e pensou em descansar as pernas por alguns minutos. Outra vez, no entanto, sua baixa autoestima a desviou desse intuito. Possivelmente o zelador do condomínio, que a enquadrara com um olhar de poucos amigos na outra extremidade do prédio, viria mandar que saísse. Assim, apesar da fadiga, a senhora Maria das Dores (vamos chamá-la dessa maneira) permaneceu onde estava.

    Com ar soberbo, alguns transeuntes singravam o rútilo corredor do Edifício Colombo carregando sacolas de compras. Nenhum perdia um segundo do seu precioso tempo para refletir sobre aquela figura derrotada e inoportuna que enfeava a imagem suntuosa do recinto. Todos passavam ao largo com suas preocupações e prioridades comezinhas, indiferentes à presença miseranda daquele ser frágil e desvalido, condenado em última instância pela suprema corte desta sociedade discricionária, excludente e consumista.

    Após uns dez minutos à toa, recostada em uma parede feito um espantalho humano, impelida pelo cansaço e desconfortável em meio à riqueza do lugar, a mendiga desceu a calçada do Edifício Colombo, cruzou a rua e foi sentar-se num banco da Praça do Relógio, oficialmente rebatizada pela prefeitura como Praça Edgar Augusto dos Anjos, notável seresteiro vila-negrense assassinado neste município em meados do ano de 1986. Portanto, no banco de pedra defronte ao Colombo, a esmoler contemplava o vaivém dos conterrâneos. Logo que o rapaz branco e musculoso, cabeça raspada, com camisa da Seleção canarinho e óculos de grife destravou o veículo com o dispositivo eletrônico, ela se aproximou com a mãozinha esquelética oferecida em concha:

    — Trocadinho aí, moço!…

    O sujeito fez que não era com ele. Fechou a cara e se refugiou da voz pedinte no carrão vermelho de vidros escuros. Sequer olhou de esguelha, deu partida no motor e foi-se embora certo de que não tem nenhuma culpa ou responsabilidade com esses pobres-diabos que vivem a importunar gente do seu nível, bem-nascida, em boa situação econômica.

    Maria das Dores regressou para o banco, à sombra de um fícus-benjamim, onde havia deixado a mochila com as poucas esmolas que conseguira até então. Sentou-se vagarosa e penosamente. Precisava descansar as pernas demasiado finas. Tornou a se levantar quando avistou a mulher de vestido roxo descendo a calçada com sacolas de compras.

    — Boa tarde, moça…

    Ofereceu-se para ajudá-la, mas a mulher virou a cabeça com uma negativa muda. Das Dores recuou, sem ânimo. Desde que penetrara a outra extremidade do Edifício Colombo, aquela fora a sua terceira tentativa para conseguir o tal trocadinho. Sem sucesso, recolheu-se ao banco da praça. Dali, de quando em vez, desferia a esmo a flecha do seu olhar súplice contra as pessoas que passavam nas proximidades. Mas ninguém parecia notá-la. Das Dores se sentia invisível. Sim, invisível, uma criatura microscópica. Examinou a mochila com as esmolas: apenas um pacote de macarrão e alguns cereais. Nada com que pudesse aplacar a fome que sentia desde cedo. Respirou fundo e demorou mais um pouco no exercício da contemplação e da paciência.

    Com cerca de um metro e sessenta de altura, a rotina de privações lhe consumira as carnes. Não será nenhum exagero estimarmos que pesasse menos de quarenta quilos. De cabelos compridos e totalmente brancos, pés sujos arrastando sandálias carcomidas, o corpo inteiro a suplicar por um banho, Maria das Dores tinha a tristonha e reveladora expressão dos que se encontram nos últimos momentos de sua existência neste mundo.

    De repente, porém, eis um lampejo de ânimo. Levantou-se ágil e circunspecta, os olhos fixos no rapaz da loja de chocolates. Melhor dizendo, cravou o olhar na caixinha de papelão que o moço jogou no cesto de lixo afixado na calçada da praça. Barras de chocolate parcialmente estragadas, derretendo-se na embalagem colorida. Enfim ela quebraria o jejum.

    À noite, após a mendicância pelo Centro e a ronda no Beco das Frutas, onde vez por outra alguém a presenteava com umas doses de aguardente, ela despontou na esquina do cartório, de volta à Praça do Relógio, com seu fardo de solidão e penúria. Exibia o corpo recurvo pelo peso da idade e o estado alcoólico refletido na imperícia dos passos. Invariavelmente usava o surrado vestido de estampas com um casaquinho bege por cima. Assim ela vinha na última noite do ano, trôpega, maldizendo os apuros de sua existência. Dormia num dos bancos da praça do seresteiro, onde a única serenata que lhe alcançava os ouvidos era a das muriçocas que a ferroavam.

    Foi ali que cerrou os olhos e não tornou a abri-los na primeira manhã deste ano. Quando deram conta da estranha imobilidade de Maria das Dores, o Sol já se refletia alto no espelho esverdeado do rio. Acabou-se no mais completo desamparo, feito um pedaço de vela a findar-se na frieza de um castiçal. Talvez não tenha produzido o mínimo alarde, nenhuma relutância ou desespero no extremo instante do minuto extremo. Foi-se indiferente a toda a pândega e frenesi à sua volta. Libertou-se daquele destino adverso enquanto todos se embriagavam na apoteose do ano-novo, os estampidos das champanhes e o foguetório a reacenderem a esperança de melhores dias nos corações de muitos.

    Sob o pescoço rijo, como se fora um travesseiro de cereais, o homem do rabecão retirou a mochila com as últimas esmolas que ela recebera. No Instituto Médico Legal, consternado, o legista exclamou:

    — Miséria!… Morreu de miséria aguda.

    Agora à noite outra sem-teto de avançada idade passou por aqui com sua escrita de abandono e desventuras. Não duvidemos de que tenha ido suceder a Maria das Dores naquele mesmo banco de praça.

  • FICÇÃO FICTÍCIA

    Dez anos. Passados justos dez anos, como um viciado que de repente sofre uma recaída e se dobra ao antigo vício, ele decide voltar. Ao menos é o que parece. De cenho trancado, nu da cintura para cima, abre o caduco notebook (espécie de uísque doze anos com três copas do mundo na carcaça) e escreve cerca de cem palavras num fôlego só. Logo, porém, empaca. Falta-lhe possivelmente o que narrar, dizer, inventar. Considera que seria bom compor um artigo, quiçá uma crônica ou conto, e submeter para uma possível publicação no prestigioso blogue do Carlos Santos ou na revista do Túlio Ratto, ambos espaços de arte, cultura e opinião de largo alcance. Segundo estima, significaria um primeiro passo para sair do ostracismo e remover a ferrugem da criatividade.

    — Vamos lá! — murmura sem sucesso.

    Afinal, terá ele perdido o traquejo, o tirocínio? Onde estará o outrora fecundo e arrojado escriba, aplaudido em Vila Negra e alhures? Meneia a cabeça, reposiciona a bunda suada na cadeira giratória, ergue e desce os calcanhares. Embalde. A página fluorescente e quase toda em branco do computador o desafia, intimida. Respira fundo, os dedos imóveis sobre o teclado. Não se dispõe a escrever sobre os assuntos da hora ou da moda. Para o diabo a pandemia, o racismo, a política nazifascista do clã Bolsopata, o adeus ao gênio Maradona. Não chove no molhado, não segue a manada, os ritos e ditames sociais. Julga-se pateticamente superior à maioria do gado bípede brasileiro.

    — Vamos lá, cérebro de uma figa!

    Vaidoso, egoísta, instável, tem dificuldade em admitir que está ultrapassado enquanto literato, fora do páreo, esquecido e até evitado por muitos que em tempos outros o cercavam com lisonjas e massagens de ego. Muita coisa mudou ao longo desta última década. Ele, entretanto, estagnou. Melhor dizendo, regrediu. Com cinquenta carnavais, solteiro, sem filhos, paranoico, falhado na vida e na arte da escrita, sabe-se um homem com menos futuro que passado. Há dez anos não experimenta contato físico com uma mulher.

    Tendo recorrido a quatro psiquiatras, vive à custa de auxílio-doença, engolindo um punhado de psicofármacos pela manhã e outro à noite. O Dr. João Batista, com quem se trata há cinco anos, emite os laudos que lhe vêm assegurando, perícia após perícia, o escasso dinheiro que o benefício previdenciário oferece. Recluso, sem vida social e com o antes numeroso rol de amigos diminuído em cerca de noventa por cento, debate-se com os pesadelos e fantasmas de um passado do qual não consegue escapar. Nunca mais, por essas e por outras, conseguiu retomar sua produção em prosa. De tempos em tempos, por recomendação médica e força do hábito, liga o computador e comete um poema em versos livres. Muito raramente fatura um soneto. Perdeu a tesão na literatura ao perder Fernanda daquele modo irremediável e peremptório.

    — Vamos lá, filho da mãe! — insiste.

    Consulta o relógio digital no canto inferior direito da tela: treze horas e vinte minutos. O domingo ferve, o pequeno ventilador sobre uma banqueta de plástico ao lado da cadeira é insuficiente para aplacar o mormaço. O colar de suor rebrilha em seu pescoço e se rompe e se reconstitui de instante em instante, escorrendo entre a penugem grisalha do peito. Sente-se vazio, estéril, falto de inspiração com que retome o texto. Os dedos, como soldados à espera de ordens, ainda imóveis. Ombros tensos, rosto afogueado, ele solta uma interjeição de derrota e abandona a velha escrivaninha. Vai ao balcão de metal onde está a cafeteira e toma as providências para a segunda jarra de café do dia, forte e amargo. A primeira fizera por volta das seis da manhã.

    Enquanto a rubiácea é filtrada, resolve tomar um banho. Debaixo do chuveiro, ao começar a distribuir a espuma do sabonete pelas partes íntimas, súbito se vê com o membro intumescido. Pensa em Fernanda durante alguns segundos, fecha os olhos, pressiona o músculo invertebrado e pulsante, deixa-o deslizar entre os dedos, mas não consegue dar seguimento ao vício solitário. O modo como a sua relação com a ex-colega de trabalho findou o impede de obter êxito até neste seu vuduísmo libidinoso. A história deles não precisava ter acabado como acabou. Passaram-se dez anos, o remorso o persegue, entretanto Fernanda concorreu para que as coisas findassem daquela maneira. É o que ele pensa. Àquela época, totalmente alucinado por ela, implorou, rastejou, fez o que podia e o que não podia para dissuadi-la, mas a moça não lhe deu ouvidos, decidida a se casar com o astuto e abastado vereador Jarbas Correia.

    Com pouco mais de um metro e oitenta e menos de noventa quilos, exibe um físico bem-conformado para seu meio século de idade. O cabelo, tirante a ruivo, é um misto de cobre e prata, farto e não raro despenteado, sem qualquer vestígio de calvície. A pouca barba está quase sempre por fazer, adornada por um bigodinho que não se comunica com o restante dos pelos. Seus olhos, grandes e piongos, de um castanho-claro cambiante, parecem maiores por trás das lentes de grau incrustadas na armação de acetato.

    O jornalista e escritor Leodécio Mota (eis o nome do protagonista) sacode a cabeça sob o jato d’água, livra-se da espuma e do pensamento em Fernanda Gomes, que, dez anos atrás, desempenhava a função de assessora de imprensa no gabinete do vereador Jarbas Correia, então no primeiro mandato. Leodécio veste a mesma e surrada bermuda jeans. Não se enxuga. Não considera necessário. Não num começo de tarde quente como este. Daí a pouco a água toda há se secar ao sabor da brisa morna que começa a correr.

    A cafeteira emite os últimos suspiros e vapores. O delicioso aroma ocupa a casa inteira, cuja modesta área construída é mais que suficiente para uma única vivalma. Entre outras fraquezas e manias, nutre a da cafeína, sem moderação. A residência, situada no distante Loteamento Asa Branca (o lote dele tem seiscentos metros quadrados), é constituída de uma saleta que se aparta da cozinha, igualmente reduzida, apenas por uma bancada de alvenaria com pedra negra de mármore. Possui tão só um quarto, banheiro social, um pequeno alpendre na frente e outro na área de serviço. Como já foi dito, o terreno é amplo, em especial na parte dos fundos, onde se encontra, afastado do muro, um frondoso abacateiro, plantado por Leodécio um dia após seu desatino.

    Era um sábado, mês de maio, por volta das onze da noite, quando ele foi apanhá-la na calçada do prédio onde ela, filha única, dividia um minúsculo apartamento com a senhora Regina, a mãe, professora aposentada e viúva havia sete anos. Diante do espelho, passando batom, ela mentiu sobre o passeio: “Vou sair com a Mônica e a Paulinha, mamãe. Estão vindo me buscar. Vou descer. Não espere por mim. Chegarei tarde.” Naquele subúrbio e horário, com a rua deserta, Fernanda entrou no carro dele e rumaram para a casa de Leodécio. Nessa oportunidade, como ela o advertira por telefone um dia antes, transariam pela última vez. Seria, pensou ela, a sua despedida de solteira. Findo o sexo, contudo, partilhando com ele um cigarrinho de maconha:
    — Concordei em vir aqui, mas isso não podia ter se repetido. Sempre fico péssima quando cedo a esses impulsos da carne.

    — Ora, que bobagem! Você não tem que se casar com aquele indivíduo. Parece uma condenada a caminho da forca. Não deve nada a ele. Ainda há tempo de corrigir esse erro. Conversaremos com ele, juntos. Eu devia ter aberto o jogo ontem à tarde mesmo, quando, por acaso, avistei o sujeito no Café Sarajevo. Estava só, sentado a uma mesa no corredor do Edifício Colombo, de costas para mim. Fingi não tê-lo visto e passei de fininho. Pois é, vocês não têm nada a ver. O gorducho avarento só pensa em ganhar dinheiro, iludir o rebanho de eleitores e se locupletar de verbas públicas, mancomunado com o senhor prefeito Álvaro Peçanha. Qualquer dia essa bomba vai estourar. Escreva o que estou lhe dizendo. Portanto, você não pode se casar com um tipo como aquele. Não bastasse, Fernanda, o cara é dezoito anos mais velho que você.

    — Já você é apenas cinco anos mais novo que ele. Nunca me atraí por rapazotes. Mas isso não interessa. Meu caso com você termina hoje. Vou me casar na quarta-feira. Não posso dar para trás agora. Você me entende?! Está tudo pronto, convites distribuídos, igreja, padrinhos, amigos, todo mundo ciente e à espera desse momento. Esta, repito, é a nossa última noite juntos. Daqui por diante, como todos imaginam, seremos apenas bons amigos.

    — Não posso permitir que cometa essa loucura.

    — Que loucura?! Estou noiva há um ano e meio. Vou me casar com outro homem, e você precisa aceitar isso. Eu já era noiva do Jarbas bem antes de nos conhecermos. Você sempre soube, nunca lhe dei a entender que pretendia terminar com ele. Minha relação com você ao longo desses oito meses, que vou guardar com carinho pelo resto da minha vida, foi intensa, arrebatadora, sim. Não nego que você mexeu bastante comigo, mas se trata de um sentimento que não vai além de uma atração à qual não pude resistir

    Leodécio Mota e Fernanda Gomes eram auxiliares do gabinete de Jarbas Correia, na Câmara Municipal. Ela estava no cargo há mais tempo. Ele fora admitido alguns meses depois dela, ocasião em que se conheceram. As afinidades entre os dois logo vieram à tona (sobretudo o gosto por literatura, música, cinema, histórias em quadrinhos e cannabis sativa) e a amizade foi ficando cada vez mais estreita e comprometedora. Não tardou dois meses para que a paixão pela colega de ofício se tornasse irreprimível e desmedida.

    Carismática, divertida, inteligente, a moreninha de corpo escultural, olhos miúdos e cabelos negros e longos o fisgara. Decorridos seis meses, levando em conta uma proposta financeira melhor, ele trocou o cargo no gabinete para trabalhar como editor de política na extinta Gazeta de Negócios. Nessa época os jornais impressos de Vila Negra, embora já um tanto ameaçados pelo advento da Internet, ainda coexistiam com os portais eletrônicos, sites e blogues. Então, considerando a vantagem financeira oferecida pela Gazeta, Leodécio deixou o emprego de meio expediente na Câmara de Vereadores.

    Hoje, amargamente, ao vasculhar os próprios miolos em busca de um assunto para escrever, recorda fragmentos do diálogo que travou com Fernanda naquela noite, ambos seminus sobre a cama:

    — Pelo amor de Deus! Você não pode levar esse contrassenso adiante. Pense bem, por favor! Nós somos unha e carne, casa e botão, almas gêmeas! Você não ama aquele cara. Tenho certeza que não.

    — Amo, sim. Perdoe-me a franqueza, mas amo. Apesar de ter ficado com você até agora, eu amo o Jarbas. O que existiu com relação a você é diferente, é paixão. E paixão, Leodécio, é algo imprevisível e perigoso. Com o Jarbas, porém, eu me sinto segura, com os pés no chão.

    Vendo-se derrotado, resignando-se perante a convicção da moça, estalou a língua e a fitou com melancolia e ternura:

    — Bem, meu amor, já que se trata de uma despedida, e não tendo mais como mudar seu pensamento, ao menos vou buscar o vinho que comprei para tomarmos hoje. Tinto e suave, como você gosta.

    Daí a pouco, com a cintura enrolada por um lençol, Leodécio voltou ao quarto trazendo duas taças de vinho. À meia-luz, janela aberta para o vento agradável da madrugada, fizeram um brinde sem entusiasmo, e cada qual foi bebericando sua porção. Menos de quinze minutos depois, a taça vazia sobre o criado-mudo, com voz pastosa, ela se queixou:

    — Meu Deus, estou bêbada de sono…

    Foram suas últimas palavras. Afundou a cabeça no travesseiro e apagou. As trinta miligramas de Dormonid (dois comprimidos bem triturados e diluídos no vinho) a nocautearam. Tudo havia sido friamente premeditado. Cerca de oito horas antes, utilizando-se de uma picareta e uma pá, abrira na terra fofa, no fundo do quintal, a cova com mais de um metro de profundidade. Deteve-se um instante olhando-a só de calcinha, seios à mostra, e pôs em prática o plano que gestara em sua mente doentia. Envolveu-a num lençol, tomou-a nos braços e a enterrou viva, junto com o aparelho celular dela, cujo chip foi retirado, partido e jogado na privada. Pela manhã, ao terminar de comer metade de um abacate, ele pegou o caroço e o plantou sobre o local da cova.

    Agora, com vagar, saboreia uma caneca de café no umbral da porta da cozinha, pensando outra vez no que escrever.

    — Vamos lá, cérebro preguiçoso!

    Poderia contar, por exemplo, ainda que mudando o cenário, adulterando os fatos e dando nomes diversos aos personagens, o amor de perdição do escritor Leodécio Mota e o triste fim da jornalista Fernanda Gomes. Por que não?! A literatura está cheia de ficção fictícia. Mas esta é uma história sobre a qual ele não pretende escrever. Todos os dias, talvez por fetiche ou em memória de Fernanda, ele cultiva o hábito de urinar no tronco do abacateiro. Não duvidemos de que encontre nisso uma forma de ainda possuí-la.

    Retorna à escrivaninha com a caneca de café:

    — Vamos lá, cabeça de papel!

    *Marcos Ferreira — Mossoró/RN
    escritormarcosferreira@gmail.com