Sobre

MISÉRIA

Manhã de dezembro, véspera de ano-novo. As mesas do Café Sarajevo se encontravam quase todas vazias. Por um sentimento de inferioridade, ela atravessou o amplo corredor do Edifício Colombo como se estivesse infringindo uma lei. Sentia-se indigna de pisar um ambiente tão luxuoso, lojas caras, destino frequente de uma elite financeira e cultural composta (salvo exceções) por indivíduos rasteiros com egos estratosféricos.

Negra, andrajosa e anônima, idade superior a setenta anos, conduzia pendurada às costas uma velha mochila de lona com algumas esmolas. Parou na ponta do corredor que dá acesso à Praça do Relógio. Mais precisamente, perfilou-se na lateral da sortida loja de suplementos vitamínicos e artigos esportivos. Deteve-se aí com a sensação de que alguém viria convidá-la a se retirar a qualquer momento. Avistou um dos bancos de ferro e madeira do corredor e pensou em descansar as pernas por alguns minutos. Outra vez, no entanto, sua baixa autoestima a desviou desse intuito. Possivelmente o zelador do condomínio, que a enquadrara com um olhar de poucos amigos na outra extremidade do prédio, viria mandar que saísse. Assim, apesar da fadiga, a senhora Maria das Dores (vamos chamá-la dessa maneira) permaneceu onde estava.

Com ar soberbo, alguns transeuntes singravam o rútilo corredor do Edifício Colombo carregando sacolas de compras. Nenhum perdia um segundo do seu precioso tempo para refletir sobre aquela figura derrotada e inoportuna que enfeava a imagem suntuosa do recinto. Todos passavam ao largo com suas preocupações e prioridades comezinhas, indiferentes à presença miseranda daquele ser frágil e desvalido, condenado em última instância pela suprema corte desta sociedade discricionária, excludente e consumista.

Após uns dez minutos à toa, recostada em uma parede feito um espantalho humano, impelida pelo cansaço e desconfortável em meio à riqueza do lugar, a mendiga desceu a calçada do Edifício Colombo, cruzou a rua e foi sentar-se num banco da Praça do Relógio, oficialmente rebatizada pela prefeitura como Praça Edgar Augusto dos Anjos, notável seresteiro vila-negrense assassinado neste município em meados do ano de 1986. Portanto, no banco de pedra defronte ao Colombo, a esmoler contemplava o vaivém dos conterrâneos. Logo que o rapaz branco e musculoso, cabeça raspada, com camisa da Seleção canarinho e óculos de grife destravou o veículo com o dispositivo eletrônico, ela se aproximou com a mãozinha esquelética oferecida em concha:

— Trocadinho aí, moço!…

O sujeito fez que não era com ele. Fechou a cara e se refugiou da voz pedinte no carrão vermelho de vidros escuros. Sequer olhou de esguelha, deu partida no motor e foi-se embora certo de que não tem nenhuma culpa ou responsabilidade com esses pobres-diabos que vivem a importunar gente do seu nível, bem-nascida, em boa situação econômica.

Maria das Dores regressou para o banco, à sombra de um fícus-benjamim, onde havia deixado a mochila com as poucas esmolas que conseguira até então. Sentou-se vagarosa e penosamente. Precisava descansar as pernas demasiado finas. Tornou a se levantar quando avistou a mulher de vestido roxo descendo a calçada com sacolas de compras.

— Boa tarde, moça…

Ofereceu-se para ajudá-la, mas a mulher virou a cabeça com uma negativa muda. Das Dores recuou, sem ânimo. Desde que penetrara a outra extremidade do Edifício Colombo, aquela fora a sua terceira tentativa para conseguir o tal trocadinho. Sem sucesso, recolheu-se ao banco da praça. Dali, de quando em vez, desferia a esmo a flecha do seu olhar súplice contra as pessoas que passavam nas proximidades. Mas ninguém parecia notá-la. Das Dores se sentia invisível. Sim, invisível, uma criatura microscópica. Examinou a mochila com as esmolas: apenas um pacote de macarrão e alguns cereais. Nada com que pudesse aplacar a fome que sentia desde cedo. Respirou fundo e demorou mais um pouco no exercício da contemplação e da paciência.

Com cerca de um metro e sessenta de altura, a rotina de privações lhe consumira as carnes. Não será nenhum exagero estimarmos que pesasse menos de quarenta quilos. De cabelos compridos e totalmente brancos, pés sujos arrastando sandálias carcomidas, o corpo inteiro a suplicar por um banho, Maria das Dores tinha a tristonha e reveladora expressão dos que se encontram nos últimos momentos de sua existência neste mundo.

De repente, porém, eis um lampejo de ânimo. Levantou-se ágil e circunspecta, os olhos fixos no rapaz da loja de chocolates. Melhor dizendo, cravou o olhar na caixinha de papelão que o moço jogou no cesto de lixo afixado na calçada da praça. Barras de chocolate parcialmente estragadas, derretendo-se na embalagem colorida. Enfim ela quebraria o jejum.

À noite, após a mendicância pelo Centro e a ronda no Beco das Frutas, onde vez por outra alguém a presenteava com umas doses de aguardente, ela despontou na esquina do cartório, de volta à Praça do Relógio, com seu fardo de solidão e penúria. Exibia o corpo recurvo pelo peso da idade e o estado alcoólico refletido na imperícia dos passos. Invariavelmente usava o surrado vestido de estampas com um casaquinho bege por cima. Assim ela vinha na última noite do ano, trôpega, maldizendo os apuros de sua existência. Dormia num dos bancos da praça do seresteiro, onde a única serenata que lhe alcançava os ouvidos era a das muriçocas que a ferroavam.

Foi ali que cerrou os olhos e não tornou a abri-los na primeira manhã deste ano. Quando deram conta da estranha imobilidade de Maria das Dores, o Sol já se refletia alto no espelho esverdeado do rio. Acabou-se no mais completo desamparo, feito um pedaço de vela a findar-se na frieza de um castiçal. Talvez não tenha produzido o mínimo alarde, nenhuma relutância ou desespero no extremo instante do minuto extremo. Foi-se indiferente a toda a pândega e frenesi à sua volta. Libertou-se daquele destino adverso enquanto todos se embriagavam na apoteose do ano-novo, os estampidos das champanhes e o foguetório a reacenderem a esperança de melhores dias nos corações de muitos.

Sob o pescoço rijo, como se fora um travesseiro de cereais, o homem do rabecão retirou a mochila com as últimas esmolas que ela recebera. No Instituto Médico Legal, consternado, o legista exclamou:

— Miséria!… Morreu de miséria aguda.

Agora à noite outra sem-teto de avançada idade passou por aqui com sua escrita de abandono e desventuras. Não duvidemos de que tenha ido suceder a Maria das Dores naquele mesmo banco de praça.

Escrito por Marcos Ferreira

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