Assim como Dona Militana está para o Romanceio Popular, Chico Daniel para o Mamulengo, Manoel Marinheiro para o Boi-de-Reis, Mestre Cornélio para o Araruna e Câmara Cascudo para as letras potiguares, Elino Julião é uma lenda do legítimo forró pé-de-serra, representante autêntico da música norte-rio-grandense.
Elino Julião sempre foi um menino danado. Logo cedo, se destacou entre os treze irmãos pela sua esperteza, fazendo versos e batendo em latas, enquanto carregava os galões d’água do açude para casa. Filho de tocador de cavaquinho, Elino tinha o dom musical, apresentando seu talento nos bailes da Festa de Sant’Ana, em Caicó, onde fazia muito sucesso entre a juventude dourada daquela época.
Nasceu no ano da graça de 1936, aprendendo as primeiras letras com a senhora Lutgard Guerra (irmã do escritor Otto de Brito Guerra), proprietária da fazenda Tôco, município de Timbaúba dos Batistas, sertão do Seridó, de onde saiu na boleia do caminhão de seu Artur Dias, ainda adolescente, para tentar melhorar de vida em Natal.
Já rapazote, pelos idos dos anos 50, morando no bairro das Quintas, na casa de uma tia, Elino começou a participar de programas de auditórios, fazendo shows ao vivo, sendo transmitido pela Rádio Poti para todo o Rio Grande do Norte, sob o comando do radialista e animador Genar Wanderlei. “Jackson do Pandeiro me viu cantar para o pessoal do auditório e me convidou para eu ir ao Rio de Janeiro cantar com ele. Depois que servi o Exército, fui morar com ele na Glória, na Rua Cândido Mendes e fazer parte do conjunto dele”, contava.
No início da década de setenta, Luiz Gonzaga estreou um programa na TV Cultura chamado “Chapéu de Couro” e convidou Elino para trabalhar como ritmista, permanecendo ao lado do Rei do Baião por mais de três anos. Durante esse período, Elino morou na casa de Luiz Gonzaga e de seu irmão, Zé Gonzaga, conhecidos como os “Príncipes do Forró”. Essa turma formava o Trio Nordestino e foi na Polygram que Elino gravou suas primeiras canções, “Rela Bucho”, “Puxando Fogo” e “Xodó do Motorista”, que logo se transformaram em verdadeiros sucessos.
Em reconhecimento ao seu talento, durante a comemoração dos 250 anos da Festa de Santana, em Caicó, alguns fãs de Elino fizeram uma homenagem inusitada. Um grupo lançou o fã-clube “Rabo do Jumento”, numa alusão ao grande sucesso que sempre embalou as farras no mercado, alegrando os bares e também fazendo parte da programação de rádio da cidade. “O rabo do Jumento” foi lançado no meio da “Feirinha de Caicó” com grande repercussão na cidade, dando direito à carteirinha para sócio.
Em reconhecimento ao seu grande talento e importância para nossa cultura, em 2004, o povo de Natal concedeu ao forrozeiro o título de “Cidadão Natalense”, num grande evento na Câmara Municipal. Outra homenagem justa foi a gravação do CD “O Canto do Seridó”, dentro do projeto Nação Potiguar, com o patrocínio da Fiern/Sesi e realizado pela Fundação Hélio Galvão.
“O CD ‘O Canto do Seridó’ chega a ser um disco didático para quem acha que forró é uma coisa só, com xote, baião, galope, rojão, e algo fundamental que os atuais compositores do gênero vêm perdendo: a capacidade de abordar temas simples, dentro do formato que foi sucesso popular tanto de Elino Julião, quanto de Jackson do Pandeiro ou Genival Lacerda”, escreveu o jornalista José Teles para o Jornal do Comércio, de Recife.
Nesse CD, Elino Julião consegue reunir importantes artistas brasileiros como Dominguinhos, Fagner, Elba Ramalho, Lenine, Xangai, Marines e Tetê Espíndola, além da participação dos músicos potiguares Galvão Filho e Isaque Galvão.
Elino produziu mais de 700 músicas em 40 discos de vinil e seis CD’s. Depois que veio morar na Cidade Satélite, em Natal, Elino Julião gravou três CD’s, “O Canto do Seridó 1 e 2” e outro chamado “A Mulher é quem Manda”, em parceria com a compositora Veneranda Araújo, sua companheira há 30 anos e fã declarada.
Compositor de forró afinado, cantador competente, Elino Julião carregou nas entranhas d’alma um grande apego à sua terra e às tradições do seu povo. Sua poesia expressa até hoje todos os aspectos da vida sofrida do sertanejo, seus costumes simples e suas festas populares. Sua música conta histórias de um Seridó encantado, das lembranças encravas no peito, onde a sua vivência de menino traquino é relatada com irreverência, usando o palavreio do mais puro e sutil humor nordestino.
Elino Julião morreu em 20 de maio de 2006, vítima de um aneurisma cerebral.
Em julho de 2004, Alex Gurgel teve a oportunidade de conversar com Elino Julião sobre o Seridó e o seu grande sucesso “Rabo do Jumento”. Confira:
Quais as lembranças do seu tempo de menino no sertão do Seridó?
Lembro de Timbaúba dos Batistas, onde vivi minha infância, foi onde eu nasci. Minha vida de menino, botando água em jumento lá no Açude Velho, correndo atrás de gado… Aquilo nunca saiu da minha lembrança e do meu coração. Eu vou sempre a Timbaúba e quando chego, a gente faz festa, reúne o pessoal pra fazer cantoria e relembrar os velhos tempos.
Você ficou nacionalmente conhecido com a música “Rabo do Jumento”, qual foi a fórmula do sucesso? Como nasceu a música?
Eu trabalhava com Jackson do Pandeiro quando gravei o forró “Rela Bucho” que repercutiu bastante no Brasil inteiro e as portas começaram a se abrir. Pra fazer esse forró, eu me lembrei de um fato ocorrido quando eu era garoto no sítio onde nasci, chamado Tôco, em Timbaúba dos Batistas. E me lembrei que por lá, apareceu um cabra bem alto, vindo do Piauí, dos olhos azuis, com uma peixeira de um lado e uma foice nas costas, chapéu de couro e sem camisa. Chegou montado num jumento, disse: “Quem é o dono daqui?” e eu respondi: “É seu Ermogênes”. Era um tal de Nascimento que vivia pelo mundo e pediu morada para seu Ermogênes. E Nascimento ficou, ficou e foi ficando… E um dia, eu estou botando água no meu jumentinho – era tempo de inverno, todo muito contente e muito alegre – e eu botei o jumento na manga do açude e fui tomar banho, deixando o bicho por lá. Nascimento tinha plantado uma rocinha na vazante do açude e já estava tudo bonito. Muito jerimum, muita batata, muito milho, feijão ramando… Aquela coisa linda. Eu descuidei e o jumento pulou a cerca e foi comer a lavoura de Nascimento (risos)… Rapaz, Nascimento virou uma fera. “Como é que se faz uma coisa dessas? Vou fazer a mesma coisa com você”, disse Nascimento. Ele deu uma peixeirada e cortou o rabo do jumento. Eu fiquei só espiando pra ele calado, com um medo danado. Foi nesse momento que ele disse: “Olhe, se você falar pra alguém que fui eu que cortei o rabo do jumento, eu faço a mesma coisa com você”. Então, eu fiquei pensando: “Eu não tenho rabo para Nascimento cortar”. Quando eu me lembro disso me dá um dó danado do jumento. Depois, ficou o burburinho na fazenda… Uns diziam: “Ah, se eu pego esse cabra que fez isso com o coitado do jumento eu degolo”, outros diziam: “Eu enfio a faca todinha no bucho dele”. E ele ficava escutando aquilo tudo bem quetinho, já cismado. Eu ficava bem caladinho e os cabras vinham me perguntar: “Você não viu nada?” e eu dizia: “Não vi nada não senhor”. E nada de dizer que tinha sido Nascimento. Eu ia dizer? Nascimento tinha jurado cortar o meu rabo também… (risos). Depois, Nascimento se arrependeu e quis pagar o rabo do jumento. Então eu fiz os versos: “Eu não quero pagamento Nascimento, eu só quero é outro rabo no jumento”.
Canções mais conhecidas
A festa do Senhor São João
Cajueiro de Pirangi
Filho de goiamum
Meu cofrinho de amor
Maria home
Na sombra do juazeiro
Na unha do guaxinin
O burro
O mela mela
O rabo do jumento
O Relabucho
Pedaço de Morena
Puxando fogo
Vamos fazer run-run
Ela me deixou e foi morar com o guarda
Tabúa da Maria
Discografia
1968 – Tô na Praça
1970 – Fogo na Geringonça (Coletânea)
1971 – Aquilo
1972 – Desafio (com Jacinto Silva)
1973 – Xodó de Lado (com Jacinto Silva)
1974 – Dois Sujeitos Incrementados (com Messias Holanda)
Era uma tarde daquelas em Mossoró em que a quentura faz você desmarcar compromissos. Mas, para um bom mossoroense, quem está na quentura é para se queimar. E lá fomos bater um papo com o artista multifacetado, em seu ateliê, apertadinho devido ao número de artes espalhadas. Nas paredes, pelos cantos, em cavaletes, cadeiras… Airton Cilon nos recebeu com aquele sorrisão e humildade de um grande lutador. Um mossoroense que nasceu, segundo ele próprio sabendo das grandes dificuldades que na vida, pois já chegara ao mundo por intermédio de um parto a fórceps: “Eu não queria nascer. Graças à minha avó e ao doutor Maltez, já falecido, um dos fundadores da Maternidade Santa Luzia, é que estou aqui contando as histórias dessa vida, que foi sempre muito complicada para mim. Ontem mesmo estava assistindo aos vídeos do Henfil, um dos caras que mais admiro, assim como o irmão dele, o Betinho e o Chico Mário. Esses três personagens tão significativos para a história do Brasil, eles tinham em comum um distúrbio sanguíneo, que é hemofilia. Deficiência de fator de coagulação. Eu sou hemofílico também, então, eles viveram todo esse período de ditadura militar e as dificuldades com o problema do sangue, que causa hemorragia. Caso você sofra um corte ou sofra uma pancada, uma lesão interna, um inchaço, isso traz dificuldades para as pessoas que têm esse problema, essa doença. E eles foram os personagens, guerreiros, lutadores, principalmente o Betinho, que tem uma história belíssima de luta, de resistência. No aniversário do golpe militar eu estava vendo aos vídeos, as cartas do Henfil para a mãe dele que com certeza quem é jornalista conhece toda a história do Henfil. Seus cartuns… Um cara muito famoso, que morreu aos 44 anos, vítima da Aids, quando a doença começou a se espalhar pelo mundo e não tinha controle sobre. Devido os hemofílicos também precisarem de eventualmente receber uma transfusão de sangue, todos os irmãos foram contaminados, os três vieram a morrer vítimas da Aids. Chico Mário, que era violonista, o Henfil, cartunista, humorista e escritor, e Betinho, sociólogo que foi o pai dessa coisa hoje que se chama ‘Bolsa Família’, ‘Bolsa Escola’. Ele que iniciou aquele programa contra a fome, a favor da cidadania e contra a fome, um embrião de todos esses movimentos sociais. Então, para mim, esse pessoal é exemplo de inspiração. Não só para mim, mas para muita gente, né? E eu como artista que sempre lutei para conseguir espaços”.
No tocante ao seu início nas artes plásticas, Cilon diz que o despertar pela arte se deu por intermédio de um tio artista plástico, e também hemofílico, que morreu em 1992, vítima de meningite. “Antônio Tomé da Silva era natural de Mossoró e viveu em Aracaju. Como era contagiosa, a gente não chegou nem a vê-lo. Ele pintava e vendia os quadros na praia, mas a principal atividade dele era servente de pedreiro. Eu admirava ver ele pintando, daí isso me deu inspiração. E foi muito depois dessa fase que comecei a rabiscar, desenhar. Mas nunca tive nenhum curso com ele ou coisa parecida. Só despertei mesmo quando minha família se mudou para o Pernambuco. Me interessei mais pelo desenho. Copiava revista em quadrinhos. Depois fiz um curso pelo Instituto Universal Brasileiro, na época era um curso por correspondência, para aperfeiçoar a parte técnica de sombreamento, essa coisa toda de luz, profundidade, para ter uma noção mais técnica do desenho, que eu não tinha. Eu também não me considero um grande desenhista porque eu não me aprofundei nem me dediquei aos desenhos, gosto mais é de pintar, pegar uma tela e jogar a tinta. Pintar. Tudo isso foi de forma intuitiva, sem nenhum curso para pintura, como um autodidata”.
Nas paredes, a arte do artista é uma mistura de estilos. Expressionista, fotorrealista e figurativa. Mostra ainda a busca do artista pelo caminho próprio. “Gosto do realismo, paisagem, natureza… Fui aprendendo com o tempo a dominar a minha própria técnica. E hoje eu tenho uma identificação, tenho uma marca, já consigo dizer que tenho um estilo, as pessoas já reconhecem o trabalho só pelo estilo de desenho e de pintura que eu criei.
Quando foi sua primeira exposição? A primeira exposição que eu fiz foi em 1996, no Sesc. Meus primeiros quadros, tudo muito acanhado, aquela coisa sem muita técnica, sem muita noção para onde eu iria dali. Naquela época eu fui inspirado, empurrado por um primo meu que comprou as telas e incentivou. Aí eu fui quebrar a cabeça, fazer sozinho, sem nenhuma orientação, pois até o meu tio que pintava havia morrido. Mas eu peguei alguns quadros dele e usei como referência. E foi assim que tudo começou. E lá se vão umas quinze exposições entre coletivas e individuais. Graças a Deus, tenho um nome, as pessoas me conhecem, a imprensa toda de Mossoró me conhece, porque saí em matérias em todos os jornais impressos da cidade.
Cilon, além de artista plástico, também é músico e canta na noite mossoroense. A música é uma paixão que chegou da mesma forma que a pintura. “Veio da forma, assim, eu não fui atrás (risos). Não existia aquela coisa de querer ser músico, aprender violão… Eu gostava de música e foi um irmão meu quem primeiro comprou um violão para aprender, comprou em sociedade com outro amigo. Aí o violão ficava na casa de um, depois na do outro, foi quando minha mãe falou que era para deixar isso de ‘ficar para lá e para cá’, um chafurdo com o violão. Aí depois ele comprou um outro e mais a sociedade do amigo, ficando com dois, e me vendeu um. Depois foi me passando os acordes básicos para a construção harmônica”. O artista lembra que o irmão o aconselhava a ficar treinando em casa, fazendo as notas no braço (estica o braço para demonstrar as notas musicais) para não esquecer a posição dos dedos entre os trastes. “E foi assim que eu fui pegando as primeiras músicas, mas sem nenhuma pretensão de querer tocar na noite, e somente para diversão, fazer uma brincadeira com os amigos”.
“A maioria dos artistas que faz barzinho aqui tem um trabalho paralelo. Poucos vivem da arte.”
E se tonou seu segundo ofício, né?
Isso. O carro-chefe. Essa história do violão se deu mais ou menos no ano de 1995. Morei também perto de um rapaz que tocava muito bem violão e guitarra, e foi para mim grande inspiração. Mas essa coisa de tocar na noite veio também por acaso, quando eu frequentava os bares dos amigos. Certa vez, quando Rogério Dias reabriu o Chap-Chap, tinha muita gente dando canja, e me convidaram. Até reagi contrário à ideia. Mas acabei indo, mesmo com as poucas melodias que ensaiava. Mas começou aí, depois voltei com mais músicas no repertório, 10, 15, 20 músicas. Daí a pouco Rogério Dias já estava me chamando para cantar, “fazer a noite”. Me dava lá um cachezinho no final e foi onde eu comecei a desasnar — como dizia a minha avó — na música e tocar na noite. Porque isso ainda era totalmente estranho para mim. Microfone, violão elétrico, nem isso eu tinha. Pedia emprestado aos amigos. E quando o Chap-Chap de Rogério fechou, fiquei meio órfão. Até porque já via que aquilo dava um dinheirinho pra mim. Decidi continuar. Fiz um empréstimo, e comprei um violão. Foi a partir dele que comecei a buscar espaços para tocar.
Pergunto se em uma situação extra-pandemia o artista consegue viver da arte em Mossoró. É categórico no Não. “Não. Definitivamente, não. A maioria dos artistas que faz barzinho aqui tem um trabalho paralelo. Poucos vivem da arte. Mas para viver de arte, tipo Marcos Augusto, tem que ‘se matar’. Tem músico que toca três vezes em uma mesma noite, no mesmo dia. No sábado, por exemplo, tocam duas, três vezes, até quatro se ele quiser fazer uma grana razoável, tipo R$ 400. Porque o que se paga hoje em dia em Mossoró é uma miséria, congelada. Porque não existe uma associação, não existe um sindicato, não existe nada. E os músicos estão aí, cada vez mais gente botando o violão debaixo do braço e indo à luta. Além dos músicos que tocam e cantam, ainda existem aqueles que cantam em cima de playback, que estão ganhando também dinheiro. Aqui na praça mesmo, quando eu tocava no bar, hoje quem toca lá é o pessoal do playback, botam um forró, uma playlist e canta em cima. E ganham do mesmo jeito. Temos também essa concorrência”.
Uma associação em um momento tão difícil como o de agora seria a redenção dos artistas, para tomar um fôlego? Se fosse organizado, sim. Em grandes cidades as associações, sindicatos colocam um cachê fixo. Tipo R$ 400, R$ 500. Então eles pagam isso. Aqui não, é negociado com o dono do bar. “Eu pago R$ 100, só posso pagar isso”. A desculpa agora é a pandemia para o baixo valor. A desculpa em 2015 era a crise. Ficou congelado nos R$ 100. Para quem só vive disso, que só tem seu violãozinho para levar comida para casa, tem que se sujeitar a tocar, porque se não for aparece outro que faz. Conversando com o amigo Jonas, cantor experiente aqui em Mossoró, ele me disse que faz isso, que aqui é uma miséria, os locais onde você toca ainda por cima não têm um som de qualidade, é uma caixinha só, sem mesa, sem nada. Sem condições de trabalho. Isso desestimula. Por isso eu tenho meu próprio equipamento. Mas o que daria mais prazer a um artista que divide o amor entre pincéis e melodias? Nosso artista não consegue apontar para um lado. “Eu não consigo classificar o mais ou o menos porque acho que a música sempre esteve na minha vida, porque eu sempre gostei de cantar ouvindo rádio, cantando todas as músicas com meus artistas, autores, que eu gostava. Quando eu escutava a Mais Bela Voz, da Rádio Rural… Eu era doido por aquilo, ali nos anos 80, ficar ouvindo até o final. E me imaginava cantando lá. Até que aconteceu, cheguei a participar no ano de 2007. Fui até a uma das semifinais, quando cantei no teatro, uma canção do Raul Seixas. E 2008 também cantando uma música da Legião Urbana. Um amigo, que era jurado, disse que eu cantei muito bem, mas não fui classificado. Talvez por ser um rock. Não sei. Acho que pela música não ser aquela MPB clássica… Tem dessas coisas, né? Mas, pelo menos realizei meu sonho”.
Cilon, você tem produzido durante esse isolamento? Não tanto quanto eu gostaria. Tenho comprado telas para pintar, eu quero acumular aqui e pintar de branco, deixar prontas para tinta porque eu pretendo fazer alguma coisa pós-pandemia, fazer uma exposição. E vou pendurando nas paredes. Não sei se é por causa da pandemia. Mas também não é bloqueio, é falta de coragem mesmo, de amanhecer e ficar ali o dia todo pintando. Às vezes começo a pintar e deixo o quadro lá, risco uma tela para amanhã, e acabo não começando. Falta aquele impulso para dizer “vou pintar dez quadros este mês”. Mas, já tenho um começo de uma boa exposição, só faltava mesmo acrescentar algo para fechar, mas a ideia é fazer. Eu gosto de planejar com calma.
A pandemia teve esse custo na saúde mental? Pois é. Fico vendo um filme, procuro algo para assistir, vejo blogues, umas coisas na internet, fazendo pesquisas, mas sem vontade de pintar. Essa falta de vontade pode ser por questões físicas, pois nem sempre estou bem para pintar. Mas vejo que quando eu posto minhas artes na internet as pessoas gostam. Tenho que criar uma página só de pinturas e postar os quadros para venda, tem muita gente comprando. Já que não temos mais a lojinha aqui na praça de convivência, está fechada devido a essa questão toda da pandemia. Mesmo assim, quando estava aberta, as vendas eram muito fracas. Venda de arte em Mossoró é muito difícil, muito fraca. Você faz um quadro e o cara pede um preço menor? Você leva a vida toda pintando e vem uma pessoa querer um menos, como se tivesse comprando uma calça, uma camisa. E não é. E o valor artístico da obra? Ele acha que gastamos só com o material, como estivéssemos fazendo aqui uma cadeira. Enfim, colocar isso na cabeça das pessoas é muito difícil. Hoje mesmo vi um pintor que é nômade, que mora em Mossoró, postando nas redes sociais que vende um quadro a R$ 50. Um quadro grande. Acho que coloca esse valor porque sabe que não tem quem compre. Claro que ele usa um material ruim. Esses artistas de praia usam látex e bisnaga. A tela ele mesmo faz, o que barateia o custo, mas o retorno também é pequeno.
“Você faz um quadro e o cara pede um preço menor? Você leva a vida toda pintando e vem uma pessoa querer um menos, como se tivesse comprando uma calça, uma camisa.”
A arte nesse contexto não tem valor, né? Exatamente. O lucro é muito baixo, vai ganhar o quê? De R$ 50, talvez o lucro seja R$ 20. Porque o resto vai ser o material que ele gastou. Então é isso, os artistas fazem cada vez mais barato. A não ser que seja um artista renomado, com estilo próprio, você tem que saber valorizar o seu trabalho — eu mesmo tenho que aprender também. Muita gente acha meus quadros baratos. Mas mesmo baratos está difícil de vender. Agora, se você pega um artista como Careca, aí a madame vem lá e paga um quadro a R$ 2.000, R$ 3.000. Ela vai lá e compra “porque eu tenho um Careca em casa”. E Careca não é o artista que tem um estilo, ele é comercial, tipo aquele cara lá do Pernambuco, o Romero Brito. Ele criou uma marca que simplesmente coloca em tudo quanto é canto, caixa de bombom… Tudo é uma coisa só. Ele é mais um designer do que um artista, porque tudo segue uma mesma linha. Não tem nada de novo. Ele é um grande marqueteiro, isso é ser um cara inteligente. Então Careca é esse cara inteligente que soube dominar uma classe. Em Mossoró tem a lei que cada prédio deve ter uma obra de um artista local. Quem é esse artista local mais chamado? Careca. Porque ele conhece a lei, tem contato com o pessoal da prefeitura. Tem o nome dele lá, o nome dele está lá na Secretaria de Urbanismo. Uma vez nos juntamos com uma associação de artistas, a gente se organizou para botar o nosso nome lá também. Quando chegamos a moça perguntou se Careca estava sabendo? Quer dizer, o nome dele era exclusivo lá. Hoje temos outros nomes que conseguiram transpor essa barreira, como Nôra Aires, Marcelo Amarelo, Guaraci Gabriel. Temos outros artistas, mas são poucos que têm acesso a isso. Uma grande injustiça, falta de democratizar a arte em Mossoró. A própria prefeitura não conhece os artistas da cidade. Só sabe quem é poeta, artista plástico quando sai nos editais.
Pode dar dicas para a prefeitura de alguns nomes. Tem muita gente escondida, que também não quer se promover, não vai atrás. Já ouvi “não vou atrás disso, pinto e vendo minhas coisas aqui”. Eles são desestimulados pela falta de opção. Há até poucos dias não tínhamos uma galeria de arte, era uma luta expor. Hoje temos um local apropriado. E agora que temos, infelizmente, o artista fica com a chave quando está expondo porque a prefeitura não disponibiliza funcionário para isso. Como agora também tem que pagar uma pauta no valor de R$ 250, eles colocaram uma pessoa para dar esse suporte. Mas não divulgam, não colocam cartazes, o artista fica bem solto.
“…falta de democratizar a arte em Mossoró. A própria prefeitura não conhece os artistas da cidade.”
Não oferecem nada? Nessa parte, não. Se eu for fazer exposição hoje eu teria que pagar essa pauta, a não ser que eu converse com o pessoal lá e consiga uma isenção. Se você conhecer alguém lá pode ser que consiga. É tudo uma dificuldade. Fiz várias exposições no Sesc, sempre de muito sucesso, a última no ano de 2009, em Natal. Ganhei os convites, o coquetel, eu não gastei nada. Não me pediram nada de contrapartida, tudo que vendi veio para mim. Aqui é diferente, no Memorial ficamos praticamente escondidos, o pessoal passa e nem sabe que está rolando uma exposição. Se não tiver alguém lá embaixo ou um cartaz, como é que a pessoa vai saber? Teria que chamar os colégios. Na minha última exposição eu mesmo entrei em contato com uma professora, pedi para que ela levasse os alunos. Eles acharam bacana a exposição. Falta esse incentivo aqui, falta esse estímulo para levar as escolas da rede pública, falta isso. A mesma coisa quando se trata de poesia. “Ah, eu não conheço esse poeta”. Só conhecem Antônio Francisco. Por quê? Porque Antônio Francisco já ganhou o mundo, ele é mais conhecido. Agora, como os que não são conhecidos chegam aos colégios? Agora na pandemia teve a lei Aldir Blanc, que contemplou alguns artistas — eu nem estava indo atrás, porque tenho uma aposentadoria — mas me disseram que eu não teria direito ao auxílio, mas podia inscrever algum projeto. Então fui no edital de Aquisição de livros. Como eu tinha no estoque, coloquei o projeto. Fui contemplado e distribuí nas escolas da rede pública. Fui deixar no colégio José Nogueira, Solon Moura, e outros, para que eles utilizem em sala de aula. Uma aluna me falou que o livro de poesia que tinha lá era o de Antônio Francisco e que não conhecia outros poetas da terra. Não tem acesso.
Airton Cilon é um artista multifacetado. Além da pintura e da música, ele também é poeta. E ri muito ao falar de suas primeiras aventuras no mundo dos versos. “Foi essa coisa também, o mesmo processo, a poesia veio até mim. Ganhei um livro de um primo, uma coletânea com vários poetas. Na época, anos 1985/86, eu tinha 18 anos. Li e gostei da Florbela Espanca, Affonso Romano de Sant’Anna, Drummond… Muito bacana. Achei a poesia um negócio interessante para demonstrar sentimento. Peguei o caderno e comecei a escrever. Eu era um cara apaixonado, gostava das meninas da rua, minhas vizinhas. Comecei a me expressar com a poesia. Achei legal a linguagem. E a partir daí não parei mais. Sempre voltava para a poesia. Em 1988 tive uma hemorragia interna e fui para Fortaleza, já que não existia um tratamento adequado em Mossoró. Minha avó já tinha até comprado as velas, ela achava que eu não escaparia. Naquela época fui atendido no Hospital Tarcísio Maia pelo único hematologista aqui,o Dr. Cury. Eu estava perdendo sangue, a barriga desse tamanho, e branco. Então ele me encaminhou para Fortaleza. Cheguei e no outro dia já fui para mesa de cirurgia. O perigo de um hemofílico em uma cirurgia, hein? Me aplicaram o fator VIII de coagulação, e pronto. Oito horas como uma pessoa normal e assim poder resistir a uma cirurgia. Na minha recuperação, no hospital, sem fazer nada, pedi a uma enfermeira lápis e papel e comecei a escrever. Desenhava também. E uma dessas enfermeiras, que escrevi poesia dedicada a ela também, levou meus poemas para casa. E me deu uns toques de como escrever uma poesia, falando sobre como separar por estrofes — ela já tinha intimidade com a poesia, de quando foi professora primária. Um domingo recebo a visita dela trazendo o bloquinho de poesias bem organizado. Fez recortes e grampeou as folhas de prontuário… Recortou e colocou o título “Amor platônico”, desenhado com a letra dela. Até hoje eu tenho guardado. Este foi o embrião do meu primeiro livro. (risos). Isso há mais de trinta anos. Voltei para Mossoró, já recuperado e com um projeto de livro. Fui morar numa casinha pobre e eu ficava sonhando com aquilo. Escrevia, escrevia e guardava no caderno. Enchi uns quatro cadernos de poesia. Também não tinha noção de métrica, rima, coisa nenhuma. Era uma poesia livre. Mas tudo simples, algo sem muita qualidade literária. Era algo de quem estava apenas começando e que não conhecia o trabalho de muitos poetas. Foi tudo feito sozinho. E foi por intermédio do Dr. Cury que conheci o sogro dele, o professor Vingt-un Rosado, que me ajudou a lançar meu livro pela Coleção Mossoroense. Infelizmente, o primeiro livro foi impresso com muitos erros, sem revisão, mas foi feito. 100 cópias do meu primeiro livro, assim sem revisão, sem nada, foi feito cheio de erros. Quando olho ainda hoje pra ele… “Minha Nossa Senhora…” A capa foi de autoria de Maria de Socorro, aquela enfermeira de Fortaleza. O título também. Essa parte da poesia em minha vida devo a ela, que me incentivou e deu os primeiros toques de como elaborar uma poesia.
Cilon fala que seu envolvimento com a arte sempre foi uma questão de amor, de nada ser planejado, de chegar naturalmente. E também fala da sua epopeia nos outros lançamentos, após seu primeiro livro ser lançado no ano de 1998. “Depois desse contato com o professor Vingt-un conheci o pessoal da Poema — Poetas e Prosadores de Mossoró. Era ali que eu deveria me situar. Comecei a seguir o caminho das pedras. Como é que publica um livro? Você tem que ir em busca de patrocínio, professor Vingt-un dava uma ajuda, sempre aberto a ajudar quem pretendia lançar livros. Fiz um empréstimo para lançar o segundo livro (eu e os empréstimos… kkkkkkk na minha vida). Eu queria lançar o segundo livro com mais qualidade, capa melhor, fui atrás. Juntei o empréstimo com o desconto que o professor Vingt-un deu, fiz a capa, e ganhei de presente a parte gráfica do livro de Rogério Dias, e lancei meu livro “Mil pedaços” no Dia da Poesia, no ano de 2002. Vendi dez exemplares no lançamento. Já foi muita coisa, haja vista ter vendido apenas um exemplar no lançamento do primeiro livro (risos). Depois veio o projeto Rota Batida, em 2003. Lancei outro pelo mesmo projeto Rota com a Coleção Mossoroense. Passei alguns anos sem publicar e somente em 2015 lancei o “Flor de Setembro”. A mesma luta: indo em busca de patrocínios. O livro saiu pela editora Queima-Bucha, do Gustavo Luz, com muita qualidade, capa de Laércio Eugênio. O lançamento foi na Praça da Convivência, vendi bastante e foi muito elogiado. Quando eu completei 50 anos, em 2018, lancei um livro para contar essa história. Selecionei cinquenta poemas, tudo na minha cabeça, e cada poema representava um ano. Ficou muito bacana. Então, a gente vai crescendo. A cada ano, cada livro publicado a gente tenta melhorar, não só a qualidade do livro, mas a qualidade dos poemas. Tudo é um crescimento. Aquele poeta de 1988 era apenas um iniciante e sem noção do que seria um poema publicável ou não. O poeta é aquele que vai galgando uma melhora do seu texto, porque aquele que escreve sempre a mesma coisa sem sair do lugar, ele não é poeta. Para mim, ser poeta é aprender com os outros e consigo. Apesar de não dominar texto metrificado, e isso se deu por opção, pois não gosto desse tipo de poesia. Gosto do livre, curto e do poema sem rima. O que importa é o sentimento.
Cilon, obrigado pelo papo. Eu que agradeço. Vamos torcer que as coisas melhorem, que a gente possa produzir e levar ao público essas produções. Porque o artista sem plateia não existe. E não temos mais paciência para acompanhar essas “lives”, aquela coisa tão sem alma.
Nosso bate-papo de março é com a atriz mossoroense Antonia Lúcia da Silva, conhecida em todo o Brasil como Tony Silva. Muitas gargalhadas deram um rumo contagiante à nossa conversa, via internet, com muitas histórias de alguém que cativa pela sinceridade e simplicidade.
Logo de cara perguntamos o que Tony tem feito nesse período de isolamento: “Estou com alguns projetos com Dionísio do Apodi, fazendo uma leitura dramática de Morte e vida Severina, com um bocado de gente diferente; Estou com “Sem eira nem Beira de Arte”, que é aquele projeto que faz três anos. Eu vou para uma praça, um beco, calçada, coloco uma caixa de som com microfone, recito alguns poemas, canto algumas coisas, e tem um pessoal do Café com Poesia que vai comigo, a Dulce Cavalcante, uma senhora de oitenta e tantos anos, vai lá e recita poemas, faz entrevistas, e a gente abre uma roda. E se tiver algum artista, eles que dão continuidade ao projeto, e assim estou fazendo esse trabalho. E também com algumas outras coisas, pensando em fazer um resgate de serenatas. Achei um parceiro aí que toca muito bem violão, ele tem a idade parecida com a minha, a gente não pode sair agora por causa do risco, porque o vírus não poder ver um ‘veinho’, né?”.
Tal qual uma metralhadora giratória quando fala sobre seus projetos, a atriz conta sobre os que estão sendo executados e o que estão por vir. Rapidamente, sem dar tempo para defesa, então, pergunto como é o dia a dia de sua profissão, dentro de casa, como ela tem se virado…
Tony Silva – Dentro dessa pandemia, assim fechado, eu tenho feito alguma coisa, né, lido algumas coisas, vendo algumas coisas… Dona de casa, né, Tulio? Porque dona de casa é a pior profissão que existe (rsrsrsr) quem inventou foi o ‘sapirico’, porque é muita coisa pra fazer, todo dia você amanhece, eu acordo cedíssimo…
E você está conseguindo conciliar com a sua profissão? Tony Silva – Tem que conciliar, né? Eu vou dormir cedo demais também, acordo muito cedo. Duas ou três horas estou ‘jogando’ no WhatsApp umas reflexões pra mais de 500 pessoas. Faço isso todos os dias, de segunda a quinta-feira eu estou mandando, porque as pessoas estão tão deprimidas, tão ruins na vida, que a gente precisa dar algumas palavras de consolo, impulsionar pra vida, a autoestima tem que ser elevada. Porque nunca tivemos numa situação como essa, são duas pandemias: uma está no poder, matando todo mundo, e a outra está assolando aqui, o país todo, o mundo todo, mas começamos a derrocada….
A atriz mantém um importante e interessante projeto com bonecas. Diz que é uma coisa que realiza junto com um grupo que tinha uma oficina chamada “Você tem história para contar”, que é só com gente ‘jovem’ de 80, 70, 60 anos. “Essas meninas, Marlene Maia, Dulce Cavalcante, Vanda Jacinto, a filha de Marlene, a gente se juntou e tinha que pagar pra Aldir Blanc. Eu disse que era preciso pagar isso aqui, porque eu fiz uma mudança, eu fiz um projeto de mudar a casa, porque a casa era o recinto de ‘Maria Espaia a Brasa’, e eu tinha como contrapartida dar essas oficinas. Então fui fazer com as meninas, e foram umas tardes assim maravilhosas, quase um mês de contar histórias; cada boneca tem uma historinha, e eu estou pensando seriamente em voltar com isso, depois dessa coisa, todo mundo vacinado, a gente voltar não só com as bonecas, que é muito bacana fazer bonecas de pano, que hoje só temos industrializadas, com retalhos. Fazer colchas de retalhos para doação para as casas de saúde, essas coisas… Não tem nada certo ainda” — esclarece.
Você sempre foi uma das líderes em Mossoró… Teatros fechados, a rua sem arte, como é que os artistas estão sobrevivendo, como você vê isso tudo? Tony Silva – É um sufoco grande, porque é o primeiro a parar, dizem isso, e isso é um chavão, é o primeiro a parar e o último a voltar. Para os poderes, sim. Mas as pessoas continuam fazendo seus projetos, mesmo de casa estão entrando nos editais, participando. Eu é que sou muito ‘molona’ e burra, porque eu não sei fazer nada na internet… Só o whatsApp, o resto eu não sei mais nada. Fui abrir meu e-mail e não sabia mais, tive que chamar meu sobrinho. Estou ficando assim, nessa coisa de pandemia, não tenho condições. A minha vida é de muito mais gente, pessoa a pessoa. Quando você para nesse instrumento (mídia) é muito difícil. É igual aquela coisa de sacar dinheiro de aposentado, o velhinho tem que ter sempre uma pessoa que ele paga 20 reais para que ele possa tirar o dinheiro dele, já é pouco e ele ainda paga pro cara tirar, não confia na família, mas confia na pessoa que está lá no banco. É assim eu vejo cada um dando seu depoimento, que a coisa está ruim, agora mesmo pra gente fazer um trabalho, o grupo junto com Dionísio, a gente não pode se encostar porque o vírus atacou com força. Depois da campanha política, que depois do resultado de cada campanha a gente tem uma miséria para gente administrar, foi um aumento muito grande… A campanha política, o final de ano, o carnaval, e a gente tem que administrar essas três coisas porque não temos condições, nem consciência suficiente para ficar em casa, se resguardando. Tem que a polícia dizer: menino fique em casa, fulano passe gel, lave essas mãos, tome banho, bote máscara. É uma coisa.
“Eu não entendo essa demência que nós temos, não entendo como é que o ser humano não compreende que ele precisa ficar livre.”
Se a gente, todo mundo se unisse, daria certo pra que não levasse essa pandemia tão à frente, mas isso é um trabalho de educação, e educação nesse país tá muito difícil. Tony Silva sorri ao comentar sobre o começo, quando pergunto sobre sua paixão pelo teatro. O início da carreira e dos que a incentivaram, Aécio Cândido, ex-vice-reitor da UERN, e do poeta Crispiniano Neto, que praticamente a empurraram para o palco. “Eu não fui apaixonada pelo teatro, não. Eu fui empurrada para o teatro, depois é que eu conheci. Eu fazia Técnica Agrícola, em 1978, quando conheci Aécio Cândido e Crispiniano Neto, professores à época na ESAM. O Elizeu Viana tinha um convênio com a ESAM, aí eu inventei de fazer Técnico Agrícola, nem sei o porquê, pois não sei criar nada, nem piolho, mas fui… Um dia na brincadeira, Aécio disse: Tony eu vou escrever um texto de teatro para você participar. Eu disse: ‘ômi’, escreva que eu vou. Adolescente, lá fui. Um ano depois que terminei os estudos, feito faculdade de Educação Física, ele me convidou e eu comecei a participar desse texto chamado “Circo, alegria do povo”, na época em que começou a morrer o pastoril, o boi de reis, a ciranda, e foi começado a ser substituída por outras coisas. Ele fez esse texto maravilhoso, com drama, chamado João Boa Morte, que era em relação à terra, terra para quem trabalha, uma coisa assim… Naquela época, ensaiávamos durante um ano inteiro para memorizar, decorar. Não memorizar, que eu não sabia nem o que era isso. Mas um ano depois, dia 03 de novembro de 1980, não me lembro ao certo, mas geralmente a gente estreava ao espetáculo depois de dia de finados (não sei o que Aécio tinha com os defuntos (rsrs) mas era sempre depois do Dia de Finados). Lá na FACEM, onde hoje é o auditório, que se tornou um depósito há muitos anos, e não vai se arrumar de jeito nenhum. Naquela época os estudantes da universidade também participavam daquelas coisas, eram mais aguerridos, participativos, estavam presente nos recitais, frequentavam os espetáculos no ACEU. O que sei é que o Epílogo de Campos estava ‘entupetado’ de gente, sentados no chão, no corredor, e bateu um medo na hora de entrar. Eu disse: “Vou entrar não!” (rsrsrsr) — Aécio disse: “Vai, sim”, e me empurrou. Eu fui e nunca mais saí. Foi um bendito empurrão, porque eu conheci uma coisa chamada teatro, que não conhecia, não sabia. Só ouvia falar nos mamulengos, no João redondo, mas nunca tinha visto o João Redondo. Eu brincava muito de tique, de bandeirinha, era muito macheira, no meio da rua brincando com homem, com mulher, jogando bola, mas eu conheci o teatro, levei 10 anos. Vou ser atriz, não. Vou ser trabalhadora da arte, porque a gente trabalhava tanto, confeccionava tudo, na época, inclusive a iluminação de latas de sorvete; figurino, pintava; eu ia dormir de madrugada, de manhã, mas a gente se sentia satisfeito fazendo e foi muito bom isso acontecer. Depois veio “Terra Pra Quem Trabalha”, isso tudo no grupo TERRA, com Aécio Cândido. Iremar era um dos compositores da época. Só tinha gente filé, eu não sabia se era bom, não, mas que era gente filé demais, era. Iremar Leite que é uma sumidade na música, Aécio que é um grande historiador; Crispiniano Neto, e a casa 65 era muito visitada, na Tibério Burlamaqui, casa de Aécio, visitada por muita gente e eu adorava aquele universo, ouvindo as histórias dos cantadores e músicos que passavam lá” — recorda.
E suas influencias? E esses cantadores? Ouvimos muito a respeito dessa coisa dos cantadores de Mossoró naquela época. Tony Silva – Tinha muitos, como Luiz Antônio, adorava ouvir Luiz Antônio cantador, ele recitar, cantar. Eu ia para os festivais. Otacílio Batista, muitos, muitos. Eu perdi a conta das noites que eu sentava na calçada pra ver os cantadores fazendo aquelas brigas entre eles, as disputas; Conceição Acyoli que é escritora, teve lá na casa de Aécio. Muita gente bacana que eu não lembro mais, mas que ficou na saudade aquilo tudo, numa época de gente mais culta… a gente ouvia muito mais histórias do que hoje. Passei dez anos para ser chamada de atriz, no dia que saí na televisão, e um dos vigias da FACEM disse assim: Eita, Tony, você é artista, né? Por que isso? Porque você apareceu na televisão. A partir daí foi que entendi que pra eu ser artista pra ele, para ser atriz, tinha que estar na televisão. E não é algo que eu gosto muito, não. É muito complicado, mostra muito os defeitos da gente, e eu sou muito linda para que todo mundo me veja (kkkkkkkk). Comecei a me chamar de atriz. “Eu sou atriz”, dizia, e repetia muito durante a noite para não ‘esborrotar’, pois a palavra tem que estar dentro de você, e você ser. Eu imaginava que ser atriz era só o povo que estava na Globo, na época. A gente fazia tanta coisa bacana nos terreiros, apresentava os espetáculos nos terreiros, as pessoas participavam mais, estavam mais presentes. Hoje não, você pena para realizar um espetáculo.
Tony comenta a nudez da personagem no espetáculo Medéia e se diz surpresa com a reação do público. Comenta que às vezes a plateia era composta por uma pessoa. “Quando eu estava n’A Máscara, última companhia que participei, a gente fez espetáculos para uma pessoa só, uma. Toda quinta-feira a gente fazia ‘Medéia no Covil da Medeia’, lá na Rua Rui Barbosa, e às vezes era somente uma pessoa que ia assistir. Acho que era coisa de 22 horas, eu ficava nua, o povo ficava meio assombrado com o espetáculo. Não sei se a gente forma ninguém para ver espetáculo. Não é bem formar. Acho que a gente tem que contribuir para que a educação seja fortalecida e aconteça nesta cidade, neste país, para que ele (o público) vá para os musicais, para o teatro, tem que ir para ver os cantadores cantar, não é só essa musiquinha de hoje — que eu não tenho nada contra —, mas que eu não gosto, que não forma nada, não diz nada, ele forma para cima da cachaça, que a gente toma, e da mulher para se prostituir. Só isso. Não tem outra coisa. Aí dizem, é o novo! O novo, não! Estamos contribuindo para uma coisa ruim se proliferar. A letra da música me dói, acanalha comigo, como mulher, como ser humano; uma mulher cantando uma coisa que denigre a mulher, num deboche, isso é horrível” — lamenta.
A atriz Tony Silva concorreu ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Brasília. Participou do filme “Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio”, do diretor cearense Rosemberg Cariry, e do documentário “Fabião das Queimadas”, de Veríssimo de Melo, dirigido por Buca Dantas. Foi a única atriz selecionada que atua fora do eixo Sul/Sudeste para concorrer ao Troféu Cadango. Nesse ensejo, suas concorrentes, num total de cinco, todas eram atrizes da Rede Globo de Televisão. Já participou de várias companhias de teatro, entre eles o Grupo Escarcéu, Nocaute à Primeira Vista, Terra, tendo participado também do espetáculo “Príncipe do Barro Branco”, do grupo natalense Tambor, e de “Os Desencantos do Diabo”. Afirmo categoricamente que é um patrimônio que Mossoró tem e que deve valorizar. Mas será que isso foi bom pra ela e a prendeu na terra onde Lampião perdeu as botas? Ou será que ela estava satisfeita com o sucesso aqui, e isso teria impedido de ir pra outros lugares? “Não. Eu sempre quis.
“Depois que eu entendi que a arte pra mim ela revoluciona em qualquer canto, que minha arte tem que ser revolucionária, então não preciso ir para o Rio de Janeiro para dizer que sou atriz.”
Quem precisa vir beber de nossa água aqui é o povo do Rio de Janeiro, e dizer o quão nós somos resistentes, como nós somos, como agora com o que está acontecendo. Eu preferi nunca ter essa oportunidade de sair, fazer um curso fora, nunca tive. E esse ‘patrimônio’ é só aqui, entre você e eu. Quando sobe a calçada daqui de casa minha mãe não sabe que sou patrimônio. Aliás, nem eu sabia (kkkkk). São coisas que o povo inventa, aquela coisa que vereador faz, que manda convite para as pessoas e bota lá na gaveta. Patrimônio serve para quê? Para fazer um espetáculo a gente tem que dar duro, e eu tenho que pedir a uma pessoa para fazer um projeto? Se é um patrimônio por que o Poder não sustenta com um salário suficiente? Esse patrimônio serve pra quê? Mas, vou contar para você sobre aquele camarada que era governador, e que saiu antes de Fátima, o Robinson Farias. Na época de Rosalba, ele não tinha quem homenagear e mandou me chamar. Queria me homenagear. Ele nunca tinha visto um espetáculo na vida dele, principalmente de Tony Silva, né? Aí eu fui lá e dei a língua pra ele. Tirei uma foto oficial dando a língua pra ele (kkkk)” — Diz a atriz com uma daquelas gargalhadas de fechar um quarteirão inteiro. “Porque um cara que está me homenageando sem saber, nunca viu um espetáculo meu, não sabe nada… É a mesma coisa do patrimônio”.
“Que patrimônio é esse, gente, que quando eu passo fome ninguém grita?”
“Tem umas pessoas que dizem: Tony você é uma grande atriz, eu sou sua fã. Minha mãe adora você. rsrsrsrsrsr Aí eu digo: E é? Ótimo! Mas não aparece um patrocinador para um espetáculo. Sou conhecida por toda Mossoró, em todo Rio Grande do Norte. Com a cega Nicácia, que é uma personagem do Oratório de Santa Luzia, foram mais de cem mil pessoas que me viram, que alisaram a minha canela um dia, lá no Adro, como se eu fosse a cega, e as pessoas começam: aqui aconteceu um milagre. É uma mentira tão bem contada, mas as pessoas adoram. A arte tem esse poder de ludibriar as pessoas e tem a forma de levar as pessoas a acreditar na transformação. Por isso que ele passa antes e não pode ser sustentado pelos poderes. Eles têm medo que a pessoa pense que eles deves mudar…
Esse é seu grande poder, você é influenciadora, através da personagem. Esse mundo é fantástico por isso.
Por isso é que a gente que faz arte na cidade, no país, no Brasil, no Mundo. Porque eles têm medo de que aquelas personagens, que aquelas pessoas comecem a ver o que eles estão dizendo, na realidade. Quando um cara decora um texto durante 13 dias, que é o Oratório de Santa Luzia, ele vai entender, vai dizer cada palavra, a palavra vai entrando nele, e assim é o teatro, ele vai entrando nas pessoas, bem devagarinho, com sutileza, com o riso, com o choro, com a raiva, mas ele tá entrando sem ferir, e um dia ele transforma uma cabeça dessas e diz o que veio fazer. É tanto que ele veio há milhões de anos (o teatro) e sobrevive a todas as populações. Ele vai transformando, vão mudando, mas ele permanece lá com a palavra; a palavra ainda é a força do ser humano, a palavra ainda transforma, não é o microfone, não é a música, é a palavra, o aconchego. É como você diz, a forma de como dizer só o teatro sabe, eu sei disso, e tenho a esperança de um dia eu ver essa mudança.
Por isso que não saí, porque eu queria ser reconhecida na minha cidade, como atriz. Eu não preciso só ir lá pra fora, não. Qualquer ser humano diz: “Mulher você é atriz, né? E eu digo: “acho que sou”; Mulher você é tão parecida com aquela menina que faz (nunca assistiu um espetáculo… kkk mas não me importo); que faz a mãe de Santa Luzia (nunca ouvi dizer que a mãe de Santa Luzia fosse preta)… E ela: (kkkkkkkkkk)… Mas a voz é uma identificação, é tudo. Só não quero mudar minha forma de viver a minha vida, não quero.
Essa falta de reconhecimento seria sua maior mágoa em sua carreira? Tony Silva – Não é. Você sabe que nós que tratamos com a arte, com qualquer tipo de arte, a gente não pode ficar acomodado. Eu tenho medo de me acomodar, porque é isso que acontece aqui quando você é subsidiada. É como aqueles camaradas que vão servir a algum político, que vestem a camisa e vão defender uma coisa que eles não sabem nem o que é. Tenho medo disso. Eu queria muito que a política cultural tivesse esse entendimento. Quanta gente hoje vive de arte na minha cidade? Eu sou aposentada do Estado – fui professora do Estado. Trabalhei na área de saúde do Estado com os meninos do SEDUC, e tentei fazer minhas coisas lá dentro, e vi uma transformação bacana. Só que não deram continuidade. Eu queria que essa contribuição, mesmo que tenha dado pouco, mas que ajudasse a outras pessoas também a viver. Quanta gente de arte? Quantos músicos, quantos atrizes, atores, hoje vivem sem ter um tostão, não tem uma política para isso? Veio a lei Aldir Blanc agora, que você tem que fazer um malabarismo pra dizer que é artista. Tudo você tem que provar que é artista. É como uma pessoa lhe procurar para você escrever um texto que vai comemorar alguma coisa e a pessoa não pergunta quanto é meu trabalho… Isso é ruim, você não pede a qualquer pessoa para ela fazer. Um padre, por exemplo, não reza uma missa sem pagar. É a minha profissão, me respeitem, me perguntem, mesmo que eu faça de graça. Não é meu amigo aquele que pede pra fazer trabalho de graça. Faço para os amigos, é claro, que estão na labuta. Agora, para instituição? Faço não, viu? Tem que perguntar quanto é. Porque quando aquelas bandas grandes vêm pra cá, primeiro você paga os 50% pra eles saírem de casa. Quando eles chegam na cidade, para subirem no palco, você paga os 50% restante. Por que para os artistas da cidade não tem essa mesma prioridade? Por quê? Vamos falar de dinheiro às claras, porque é isso. Eu preciso ver essa cidade pensar diferente, e eu acho que começou.
“A gente precisa mudar o pensamento, o caminhar, o trilhar dessa cidade para evolução do cidadão.”
Para quem quer seguir a carreira de atriz/ator, o que você diria? Tony Silva – Todos têm que experimentar, seguir em frente, como o teatro é egoísta, ele vai escolhendo. A arte vai escolhendo e fazendo seu caminho. A palavra é fazer.
Ainda se discute e não se consegue mensurar o real estrago da pandemia na economia mundial, nem as profissões e setores que foram mais afetados. Entretanto, sem dúvida alguma, o sofrimento na classe artística brasileira é descomunal, pois envolve inúmeros artistas que já viviam na pindaíba há bastante tempo, esquecidos pelos setores culturais em todo o Brasil. Isso não é coisa somente do Rio Grande do Norte, bom que se diga. O prejuízo se torna ainda mais acentuado quando se trata de um artista na terceira idade. Aí, meu velho, é que o bicho pega pra valer.
Nosso bate-papo especial nesta edição é com o mossoroense Oséas Lopes, nosso querido Carlos André. Com 82 anos, ele até se vangloria de não tomar remédio algum. “Sou juventude acumulada, só tomo caldo de cana com pastel”, sustenta.
Grande na altura — cerca de 1,90 — e no talento, Oséas “Carlos André” Almeida Lopes é um dos maiores artistas que o RN já concebeu. O artista, como muitos, está nessa luta diária do isolamento social. Um desafio ainda maior para ele, acostumado a viajar o Brasil inteiro realizando shows. E foi exatamente sobre o que ele tem feito na ‘quarentena’ que iniciei o nosso papo, ao que respondeu sem titubear:
— Nada! É duro para quem vive da arte. Só a mão de Deus mesmo. A não ser aqueles que estão na onda, na mídia ou que estão com muito dinheiro reservado, né? E mesmo assim ainda fazendo shows, na loucura mesmo. Não precisa fazer esses shows, pois eles têm muito dinheiro. Agora quem não tem?
A trajetória de Carlos André já é bastante conhecida, mas é sempre prazeroso relembrar a sua introdução à música. Filho de uma prole de 16, do comerciante Messias Lopes de Macedo e da senhora Joana Almeida Lopes, Oséas trabalhava em Nonato Aires, uma oficina de carroceria de caminhão, seu primeiro emprego. Pintava aqueles “frisos” de madeira que tem nas carrocerias, de verde, vermelho… “E enquanto eu pintava, ficava cantando as músicas de Luiz Gonzaga. E sempre passava por ali nosso amigo que já se foi, o Canindé Alves. E ele certo dia disse que seria o aniversário da Rádio Tapuyo e perguntou se eu queria participar. ‘E o que é que eu vou fazer’, perguntei. E ele responde: o que você está fazendo aí: cantar. E fui. Souza Luz e João Newton da Escóssia faziam parte da diretoria e me contrataram. Lá fiquei do ano de 1956 até 1959. O melhor salário de Mossoró era o de Oséas Lopes cantando.
Foi durante um encontro em evento do aniversário de uma rádio da cidade do Crato-CE que Oséas recebe convite de Jackson do Pandeiro para trabalhar no Rio de Janeiro. “Resolvi realizar meu sonho e fui morar no Rio de Janeiro. Jackson havia me dito que o procurasse, deixou até o endereço dele, e que me ajudaria. Souza Luz, da rádio Tapuyo, chamou-me de maluco quando disse que iria embora para o Rio. E perguntou como é que eu ia pro Rio sem conhecer nada e deixando o salário que eu ganhava em Mossoró”. O cantor resume essa fase da história na Cidade Maravilhosa para uma pergunta:
— Se eu tivesse ficado em Mossoró, como seria hoje? Rádio à época pagava salários a artistas, músicos, a todos, e hoje? Estava rodando bolsinha, né, bicho?
Quando pergunto se o grupo dos jovens forrozeiros, com Oséas Lopes, Hermelinda e João Batista, já existia antes dele ir ao Rio de Janeiro e sobre o fim, ele diz que já existiam “Oséas Lopes e Seus Cangaceiros do Ritmo”, mas que tiveram de mudar o nome ao chegar ao Rio, pois esse nome para gravar o primeiro disco não ficava legal. Surgia aí o Trio Mossoró. Sobre o fim, diz que nunca teve um ponto final no grupo. Ainda estão juntos até hoje.
Em 1962, quando lançaram o primeiro disco intitulado “Rua do Namoro”, abriram-se as cortinas para conquistas importantíssimas no cenário musical brasileiro, como o troféu Elterpe, em 1965, pela música “Carcará”, do segundo disco do Trio, “Quem foi vaqueiro”. Esse prêmio era o de maior importância da Música Popular Brasileira à época. Dois anos depois, “Carcará”, de autoria de João do Valle, seria regravado por Maria Bethânia. “Eu me sinto orgulhoso de ter levado o nome de Mossoró para fora do estado. Porque naquela época, nos anos de 1960, ninguém sabia que existia a cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte”.
Em livro biográfico de Carlos André, escrito pelo professor Almir Nogueira, o cantor Raimundo Fagner apresenta o livro dizendo: “O Trio Mossoró conseguiu colocar a cidade de Mossoró no mapa”. O grupo gravou 12 LP’s e 4 compactos.“No início dos anos de 1960, existia um cavalo que ganhava tudo no Rio, e que tinha o nome de Mossoró. Daí eles pensavam que a gente estava homenageando o cavalo. É mole? (risos).”
“No início dos anos de 1960, existia um cavalo que ganhava tudo no Rio, e que tinha o nome de Mossoró. Daí eles pensavam que a gente estava homenageando o cavalo. É mole? (risos).”
Carlos André lembra com carinho do auge do Trio na Região Sudeste do Brasil e fala que um sobrinho dele conseguiu recortes das manchetes de jornais da época no Rio e São Paulo. “Enviei para os nossos amigos de Mossoró Herbert Mota e o Paulo Linhares — com fotos e que falava sobre nós. O Rio Hit Parade mostrava os grandes sucessos, como os de Roberto Carlos e a onda daquela época. E o Trio Mossoró estava no meio. Tinha também o programa Hoje é Dia de Rock. Eram o Erasmo, Roberto, Eduardo Araújo… Só a nata do Rock. O produtor/apresentador do programa, Jair de Taumaturgo, era fã do Trio Mossoró. Tanto que nos colocava juntos com eles no programa de Rock. “Aí lá vem o Trio Mossoró, todos com chapéu de couro na cabeça e os caras tudo no rock” — conta aos risos.
Algo que vira e mexe vem à tona em nossa conversa é a questão da valorização ou desvalorização do grupo em sua terra natal. Carlos André lembra que antes da pandemia foram fazer um show em São Paulo e quando chegaram ao aeroporto duas garotas em uma camioneta receberam o Trio para acompanhá-los até o hotel e se colocaram à disposição para passeios pela cidade, se eles quisessem. “Parecia até Mossoró, ó, bicho?”, ironiza, e diz que enviou o material para a ex-prefeita Rosalba, queria mostrar aquela recepção. No palco, ele conta, foi preciso até segurança, pois era grande a multidão para ver ao show, “e de jovens, universitários. Por que isso não acontece em Mossoró, meu Deus?”, pergunta desapontado. Lembra ainda que quando foi fazer show em um São João, de Mossoró, nem camarim tinha para ficar. Até teriam direito, se pagassem pelo camarim. “É mole? Isso dói na gente.” Em outra ocasião, relembra que o cachê do Trio deveria pagar todas as custas, como translado, hotel, alimentação. E, caso não aceitassem, o secretário de cultura mandara avisar que não seriam contratados.
Carlos André, sua grande mágoa seria essa indiferença com que Mossoró tem com o seu nome e o nome do Trio?
“Dos governantes? Total. Vou aproveitar para desabafar agora. Na época que o produtor de TV Zé Messias veio a Mossoró, fui com ele assistir ao espetáculo Chuva de Balas, depois da apresentação dele o convidaram para ver a peça, e disseram que pra mim não tinha um lugar lá na frente, que só tinha pra ele. É uma vergonha, bicho. O amigo Herbert Mota sempre me diz que tudo tem sua hora, que minha hora vai chegar. Mas a minha hora será quando eu partir? É como meu amigo Nelson do Cavaquinho falava, que depois que eu partir só quero reza. Se você pode fazer algo por mim, que faça agora. Quem mais fez divulgação do nome de Mossoró fomos nós, eu e o Trio Mossoró. E não sou reconhecido. Quantas mensagens e e-mails enviei para Rosalba e ela nunca me deu uma resposta? Nunca. Mas eu adorava o pai dela porque era meu grande amigo. E ele sempre dizia que estava chegando a minha vez. Quando ela se elegesse a algo eu seria lembrado. Nunca chegou”.
Apesar de hoje morar em Recife-PE, Carlos André sempre foi muito presente em Mossoró e diz, quando pergunto sobre nossos destaques mossoroenses na música, que “temos muitos talentos, mas que também não são reconhecidos. A injustiça existe. Orlando Peres e Ilo de Souza são grandes talentos. Tinha um sanfoneiro em Mossoró que me falava que tocava no São João e recebia R$ 300 reais para ele e banda. Isso é uma vergonha. Quem conhece Mossoró sabe que aqui é um celeiro de grandes artistas. Não dá nem pra elencar tantos talentos. Temos muitos. Mas é aquela coisa, sem incentivos o negócio não anda, bicho!”, finaliza desapontado.
Nosso mais ilustre cantor se emociona ao falar sobre o irmão Cocota. “Há cinquenta anos eu gravei uma música. A Praça dos Seresteiros seria uma grande homenagem ao meu irmão. Mas foi engavetada pela prefeitura. O nosso irmão ‘Cocota’ cantava muito também. Daí criou-se uma espécie de escolinha. Já fazia um relativo sucesso no rádio. Tudo incentivado por nossa mãe. Naquela época ela ‘mandou’ logo os meninos aprenderem algum instrumento”.
Sobre o impulso dado a Luiz Gonzaga quando o rei do baião começava a desacelerar na carreira, alerta-me que não fica bem ele mesmo falar, mas, emenda: “Em 1983 eu estava com a corda toda no Rio de Janeiro como cantor e produtor. Em reunião com o presidente da gravadora RCA, soube que muitos iriam ser dispensados, inclusive o Luiz Gonzaga e o Nelson Gonçalves, pois há quase uma década iam mal nas vendas. Defendi os dois, eles não poderiam ser dispensados. O que esses dois já haviam feito pela gravadora não está escrito… Então assumi a responsabilidade de ser produtor musical de Luiz com a missão de fazê-lo retomar a carreira de sucesso. E deu certo”. Até o ano de 1987, Carlos André produziu os discos “Danado de bom” (1984), “Luiz Gonzaga & Fagner” (1984), “Sanfoneiro macho” (1985), “Forró de Cabo a Rabo” (1986) e “De Fiá Pavi” (1987), álbuns com vários sucessos que imortalizaram o velho “Lula” e que renderam a Gonzagão discos de ouro e platina.
Coincidentemente, em 1984, mesmo ano do lançamento de “Danado de bom”, Carlos André lança o disco dele com a música Siboney, que estourou nas paradas. Ele fala que esteve em Mossoró para lançar os dois discos, dele e de Gonzagão, e, ao chegar à recepção de uma rádio, pediu pra falar com o programador. Foi atendido. Disse que estava vindo do Rio pra fazer divulgação do disco de Luiz Gonzaga, que até então já havia vendido um milhão de cópias, e o seu, recém-lançado. O programador pegou os discos, disse obrigado e virou as costas.
— Na minha cidade eu passar por isso? — lamenta.
“A minha irmã Hermelinda diz que não consegue ser assim. Diz que eu sou macaco de Mossoró pra ter que aturar isso. É uma vergonha o que eles fazem com a gente”.
Encerro o bate-papo com Carlos André pedindo suas considerações finais e ressaltando que seu talento, trabalho, pioneirismo, o que o Trio Mossoró representa para a cidade deveriam ser — e nós torcemos muito para que isso ocorra —, lembrados pela nova administração. Acredito que o novo prefeito deva saber sobre essa longa história de sucesso e que o mossoroense tem o dever de lutar e defender o nome do Trio Mossoró e seus integrantes, pois foram vocês que mais divulgaram o nome de nossa cidade pelo Brasil. Posso até queimar minha língua, estar superestimando o novo prefeito, Allyson Bezerra, mas arrisco em dizer que vocês serão, enfim, reconhecidos.
— Se Deus quiser. Eu sonho com isso, Túlio. O povo gosta do Trio Mossoró, gosta de Carlos André. Tem você e tem outros amigos que querem que ocorra esse contato com a nova administração. E eu vou. Quero conhecer esse moço, esse rapaz, porque eu vejo aqui pela internet, os bairros com malfeitos, ele já está andando. Ele vai marcar, vai mudar Mossoró realmente. Pelo que eu vejo através da internet, ele já está mudando.
Oséas Carlos André Almeida Lopes nasceu no dia 28 de outubro de 1938, em Mossoró/RN. Foi um dos fundadores do Trio Mossoró, em 1959. Trabalhou nas rádios Tapuyo, Mayrink Veiga e Nacional. Nos anos 1970, seguiu carreira solo com o nome de Carlos André, quando fez enorme sucesso e chegou a vender mais de 1 milhão de cópias com o compacto duplo “Apaixonado”, pela gravadora Beverly, que trazia no seu lado B a música “Se meu amor não chegar”, que até hoje “quebra as mesas” de norte a sul do país.
Compositor de sucesso, com mais de 100 músicas gravadas, Oséas Lopes também ficou conhecido como produtor musical, tendo trabalhado com dezenas de artistas de forró, entre eles Luiz Gonzaga, com quem produziu 5 LPs. O primeiro, Danado de Bom, vendeu mais de um milhão de cópias em seis meses. Sanfoneiro Macho, Forró de Cabo a Rabo, Forró de Fia Pavi, Duetos Luiz Gonzaga & Raimundo Fagner foram alguns outros trabalhos desta parceria.
Outro grande nome do forró que passou pelas mãos do produtor foi Dominguinhos e a sua “Olha isso aqui tá muito bom”, com a participação de Chico Buarque de Holanda. Também temos nessa lista Genival Lacerda com “Severina Xique Xique”, Luiz Vieira, Jorge de Altinho, Alcimar Monteiro, Trio Mossoró, Antônio Barros & Cecéu, Zito Borborema, Eliane, a Rainha do Forró, Sirano e Sirino, João Gonçalves, Bastinho Calixto, Jair Alves, Quinteto Violado, Grupo Carrapicho de Manaus, Pinduca, Manoel Serafim, Nordestinos do Ritmo, Hermelinda, Nonato do Cavaquinho, Teixeira de Manaus, André Amazonas e Nando Cordel, entre outros.
Além do forró, Oséas Lopes também produziu diversos cantores românticos, como Cauby Peixoto, Nilton Cesar, Vanusa, Luiz Ayrão, Silvinho, Núbia Lafayete, Trio Yrakitan, Paulo Diniz, Lana Bittencourt, Orlando Dias, José Ribeiro, Balthazar, Fernando Mendes, Odair José, Waleska, Leonardo Sullivan, Anísio Silva, Bartô Galeno, Genival Santos, Roberto Muller, Adilson Ramos, Adelino Nascimento, Ivanildo Sax de Ouro, Messias Paraguai, Claudia Barroso, Valdirene, Abílio Farias, Banda Labaredas e Alípio Martins.
Não teve como não recordar, em nossa estada em Tibau, neste período pós-réveillon, do cantor Bartô Galeno cantando a música que nos remetea uma aventura dos domingos na ‘praia dos mossoroenses’. “Hoje é domingo e lá vou eu todo contente, com saudade de rever aquela gente, largo tudo na cidade e vou pro mar, Areia Branca até que é um bom lugar… Praia de Tibau…” E chegamos à praia de Barra, município de Grossos, após enfrentar cerca de 20 quilômetros de uma tábua de pirulitos, a RN Dehon Caenga, para bater um papo com o poeta e cantor Genildo Costa. Nota-se a grande alegria do poeta em receber nossa comitiva, não relaxando nos cuidados necessários ao momento em que vivemos de pandemia. Distanciamento social, uso de máscaras, um tubo de álcool em gel a tiracolo, um grande talento à nossa frente, uma cerveja já sendo consumida, o aviso de que os siris estavam sendo preparados para a recepção, e a partir daí, um olhar emocionado em cada lembrança de sua trajetória.
Genildo esteve até dezembro do ano de 2020 como secretário de Cultura do município de Grossos. Pergunto exatamente sobre como é estar nas duas pontas, como artista e como gestor. E se o artista realmente tem razão em reclamar cotidianamente. “De certa forma tem. Pela experiência vivida, acho que o artista também tem uma particularidade: o comodismo. Em não ser agente da sua própria história, de estar atento às coisas, nessa realidade complexa de hoje em dia. O radar tem que ficar ligado, afinal você tem que ser artista, microempreendedor, um indivíduo antenado com os editais”.
Ele fala em comodismo, a gente comenta a vagabundagem que aconteceu em algumas cidades do RN, quando secretários de cultura devolveram o dinheiro da Lei Aldir Blanc por falta de projetos.
Eu estive quatro anos à frente da cultura de Grossos, quatro anos de luta, de sonhos, de utopia. Jamais na minha vida eu poderia renunciar ao chamamento da minha cidade, da minha terra, a que me viu crescer, que me deu régua e compasso da forma mais bonita possível. Neste segundo momento, confesso que o aprendizado foi bem maior. A primeira vez foi entre os anos de 2001 e 2004, que era na gestão do prefeito João Dehon, do Partido dos Trabalhadores. Começamos aqui quando nem existia secretaria, era apenas um departamento de cultura. Conseguimos naquela época, através da Funarte, mesmo que timidamente, a formatação, digamos assim, da banda de música do município. Muita gente não sabe, mas todas as cidades do Brasil recebiam e ainda recebem kits para banda de música. E muitas delas não conseguem. Acho que naquele momento eu comecei a acreditar que podia fazer mais, podia fazer acontecer. Mas, o grande problema é que a cultura no Brasil sempre foi hostilizada, está sempre em décimo plano, tipo “se sobrar algo eles encaminham para a pasta da cultura”. Aqui, agora, não deixei voltar dinheiro, usamos tudo da Lei Aldir Blanc que veio para Grossos. Eu diria que quando deixam voltar dinheiro é por falta de espírito público associado à ausência de gestão pública. Porque todo ente, politicamente falando, as prefeituras do Brasil receberam ao todo dois bilhões de reais, uma quantia significativa, um orçamento significativo, que não caiu do céu. Foi uma luta travada no congresso para que chegássemos a dizer: “A cidade de Grossos, pela primeira vez, depois de 67 anos de emancipação política, nunca viveu um momento histórico tão importante, de ter orçamento com foco na cultura. Nunca teve. E eu estou apenas reproduzindo o que os artistas revelaram e confidenciaram a mim. A cidade sabe disso, nunca tivemos, muito pelo contrário, sempre vivemos sob o ciclo da piedade: “Vai lá no prefeito Túlio, que ele pode arranjar R$ 100 reais; vai lá no Sacolão, que ele pode arrumar R$ 50”.
“Mas, o grande problema é que a cultura no Brasil sempre foi hostilizada, está sempre em décimo plano, tipo “se sobrar algo eles encaminham para a pasta da cultura”
Poesia: O medo de ser poeta
O poeta-gestor complementa enaltecendo seu trabalho como secretário: “Isso nos dá a certeza de que, primeiro, falta um elemento necessariamente possível, se você quer ser gestor público, eu diria que esse elemento seria comunicação. Eu tive duas alternativas, fiquei até temeroso, e pensei: “Meu Deus, são 93 mil reais? Acredito que é um orçamento razoável, mas também acho que eu tenho que ter o mínimo de atalhos possíveis para que esse dinheiro não volte, a gente não passe vergonha” e que a cidade futuramente, em um curto espaço de tempo, possa ficar inadimplente. Qual foi a minha primeira iniciativa? Ser igual àquele personagem de Chico Anysio que dizia “se sei digo que sei, se não sei digo que não sei e pronto”. Ter humildade. E eu tive o privilégio de ter uma criatura como o meu amigo de estrada, do teatro, de música, o teatrólogo Berg Bezerra, diretor da Companhia Cidade do Rio de Teatro, de Janduís. Ele não mediu esforços para nos ajudar. Veio para nossa cidade e criou todos os caminhos da legalidade, todos os mecanismos foram criados. E quando as pessoas vieram entender que aquilo tudo era real, muitos perderam, pois achavam que era apenas discurso. As portas estavam abertas, todas as reuniões que fizemos eu achava até que era impossível de fazer. Eu me perguntava: “Como é que você é um gestor e não se comunica?” Por intermédio de alguns meios de comunicação aqui de Grossos, conseguimos chegar ao artista. Eu queria chegar a todos. Mas, infelizmente, ainda tive o desprazer de contar muitas vezes com a indiferença deles. Convidava e eles não compareciam. Não fui nenhum arauto de uma coisa que não era minha, eu estava apenas tratando de uma coisa que era de todos. Se não quis vir, desculpe. Incomodei várias vezes o pessoal da rádio, enviava áudio, falava ao vivo sobre as pautas…
Quais os principais projetos aprovados pela Lei Aldir aqui em Grossos?
Nós publicamos dois editais, o de prêmios e o de subsídios. Com um grande problema, a cidade estava inadimplente. A cidade é um espaço de visionários, a cidade não tem parâmetros de funcionalidade. Se tem uma associação, é ilegal, se tem um grupo um empreendedor é ilegal. E se tem, não paga ao Sebrae; não tem condições. Hoje, por forças das circunstâncias, tem a Associação Cultural de Grossos, justamente onde o dinheiro foi depositado. Eu sei que existem outras associações, outros gargalos.
Quem conhece Genildo sabe que ele se emociona facilmente. Quando perguntamos sobre o legado que ele deixa para a Cultura de Grossos, foi como se ele respondesse a pergunta cantando a música Meu Brasil de canto a canto tem suor de nordestino. “É tipo trabalhar como gigante e ganhar como menino. A classe artística está cansada. A coisa se tornou tão cansativa… E não é só em Grossos que isso acontece. Nós, queiramos ou não, temos que respeitar esse tempo de brevidade, tudo passa e a gente não é mais aquele menino de 20 anos, que pega o violão e sai para a estrada, viver aquela coisa de sonhos, da aventura, não tem mais espaço para isso. O que estamos querendo agora, em nossas manhãs, é o sossego. Sou convicto que procurei ser, acima de tudo, transparente. Foi uma página construída com tranquilidade. Fiz o possível para que pudesse corresponder minimamente a essa cidade que me deu tudo, me deu régua, compasso, me deu a hora de chegar, me deu a hora de sair, e se eu tenho essa percepção de dizer e de externar minha gratidão por ser filho de Grossos. É muito orgulho, é algo indescritível esse sentimento de ser filho de Grossos. Por onde andei e passei visitando espaços privilegiados desse país, não foi porque eu pude ir não, foi porque fui chamado. E todas as vezes que estive aqui para assumir esse desafio, esse compromisso como gestor, muitas vezes subestimei a minha própria capacidade de ser artista. E eu tive que optar, pois aqui seria dedicação exclusiva. E sentia essa força quando recebia artistas que a mim tinham a hombridade de realizar algo e não se preocupar com o cachê. Você sabe que é difícil, você é meu amigo e eu não posso passar a vida toda puxando pelo seu braço com essa marca do “zero oitocentos”. Queira ou não, a gente capitaliza as coisas porque sabe que quando você faz do jeito que você imagina, que eu imaginei ser possível, e foi possível, eu saio com a certeza do dever cumprido.
“A cidade de grossos, pela primeira vez, depois de 67 anos de emancipação política, nunca viveu um momento histórico tão importante, de ter orçamento com foco na cultura”
Quais são os planos agora, Genildo?
Retomada da vida. Tenho outros horizontes, até porque fui de certa forma particularmente ingrato com o que eu construí. Chegou um momento que as pessoas até achavam que eu era simplesmente um visionário, um sonhador, utópico. Mas eu tenho hoje um acervo na minha casa, que eu construí com a minha família e criei meus filhos, em Mossoró. Tenho uma biblioteca e muita vontade de realizar agora um antigo sonho, que é doar essa biblioteca. Mas sempre tive receio de doar à pessoa errada. Tem que ser para alguém que tenha responsabilidade e seja minimamente cuidadoso. Cuidado de saber que por mais que subestimem os livros, a gente precisa ter aquela sensatez do Monteiro Lobato que dizia “não se constrói um país sem livros”. Vou levar para minha sepultura essa expressão tão rica. Estamos iniciando o projeto de uma página no YouTube, a “Quarta Alternativa”. Retomaremos alguns projetos na minha casa mesmo. Volto a dizer, as pessoas até não acreditavam que tudo que era real e quando caiu a ficha já não havia mais tempo para fazer o cadastro para participação no edital. Quando viram que o dinheiro já estava na conta de fulano, que 12 mil já estava disponível para o proponente, aí houve o choque. “Mas por que já recebeu? Ah, foi porque fulano procurou, estava atento. Ele estava com o grupo dele de capoeira com CNPJ, tudo arrumadinho”. Eu fiz muito esse discurso, até repetitivo, quando chamava as pessoas para a Casa de Cultura. Quando eu falava que o Plano Municipal de Cultura era uma política de Estado e não uma política de governo, e que a gente brigou para isso, mas me viam com incredulidade. Enfim, o plano foi aprovado. Se você andar de Porto do Mangue, nessa Costa Branca, até Icapuí, você pode perguntar: “Me diga, Porto do Mangue, você tem um plano de cultura?” Tem, não. E por que não tem? Primeiro, por ausência de espírito público, porque dá trabalho construir um plano cultural. Assessoria jurídica de prefeitura não quer ter trabalho. Falta interesse. Infelizmente. Chegamos ao ponto de Crispiniano Neto, presidente da Fundação José Augusto, em uma entrevista de rádio, dizer que “Genildo Costa estava cavando com as unhas”. Então eu sou um peba [risadas].
Nove horas da manhã, o sol já acompanhava nosso périplo pelas ruas de Mossoró, as réstias se contorciam empurradas pela brisa quente nas algarobas até se perderem no chão de paralelepípedos escuros. Nosso destino era o bairro Lagoa do Mato, torrão de esplendor poético, do saudoso Luiz Campos, e do talentoso Antônio Francisco Teixeira de Melo, ocupante da cadeira de número 15, cujo patrono é o poeta cearense Patativa do Assaré, da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC).
Naquele momento podíamos ver o desbancar dos 30 graus, o suor reluzir na testa. O interessante é que não era a mesma sensação que sentíamos no quintal do poeta. Lá, parecia ainda cedo, clima agradável, onde os pés de seriguela e de azeitonas pretas vestiram durante a noite o chão com seus frutos. Para nós, uma linda visão, um cenário que pintava prosperidade, com tons fortes, de cheiro bom, de encher a boca d’água. Talvez não fosse o sentimento de quem estava naquele momento fazendo a limpeza, varrendo e recolhendo folhas e frutas murchas.
Ao fundo da área, um lago. Neste, apesar de Antônio dizer que tem peixe graúdo, não vimos sequer piaba. De cara, antes de Ana Cadengue captar as primeiras imagens, perguntei sobre a grande parada que a cultura sofreu com a pandemia. Principalmente a dos poetas. “Como você avalia este momento?
Parou no fim, né? Mas, pela primeira vez, eu vi a pessoa se preocupar, em Mossoró, com os artistas, aprovar projetos (o poeta se refere ao incentivo da Lei Aldir Blanc). Agora, eu acredito que pra gente foi muito ruim, porque a gente não vive só do cachê, a gente vive também do público, do povo. E logo eu que sou acostumado a viver viajando, tendo esse contato com o público. Ficou meio pesado. Mas eu tenho uma vantagem, a de gostar de ler, de escrever, e assistir a filmes. Então, estou escapando. Mas sou consciente. Sou igual ao rio quando encontro obstáculos, eu “arrodeio”, reflete.
Antônio Francisco sempre foi bastante requisitado para se apresentar em shows, seminários, feiras de livros, e até participamos de muitos eventos que contaram com sua presença. Pelo menos antes da pandemia era difícil encontrá-lo em casa. Como agora, ao entrar na sala que estava com a porta sem “passar” a chave; vestimenta simples, sem a famosa bermuda jeans, a sandália e o bornal de couro. Desnudo, diriam, pois é traje típico de sua simplicidade. Entretanto, a emoção no que conta continua a mesma, talvez até mais aguçada. Seus olhos marejam ao responder sobre o que lhe faz mais falta nesta quarentena. “De gente. De abraçar, conversar, contar piada… de risos, do brilho dos olhos das pessoas. É diferente você estar em contato com as pessoas, né? Uma live é bom de se fazer — às vezes a pessoa até ganha pra fazer isso —, mas é muito diferente”.
Antônio Francisco tem 71 anos de idade e tomou gosto pela poesia somente depois dos 40. O autor de “A casa onde a fome mora” diz que se divertiu fazendo “experimentos” durante a pandemia e riu ao dizer que o bom disso tudo é ser o seu primeiro leitor. “Escrevi umas trovas, gostei dos versos. E por mais que eu quisesse escrever sobre outra coisa, tudo o que eu fiz era relacionado à pandemia. No fim, escrevi muito pouco. Mas, gostei do que fiz”.
“Isso só passa quando acabar o ser humano na terra; o vírus é nós!” — Diz cético, sobre o possível retorno ao nosso “verdadeiro” normal. E que seus parceiros de poesia já vivem em uma pandemia há muito tempo, que corrói e mata, tamanha as dificuldades que passam.
Antônio Francisco quer lançar um livro de trovas após a quarentena.
“Eu nunca escrevi trovas, e durante a quarentena eu achei o rumo. Tenho um verso que diz:
Minha casa era pequena, alegre, mas ficou chata depois dessa pandemia só Nira, eu e a gata.
Era eu, Nira e a gata mas ontem a gata morreu a casa ficou mais chata agora só Nira e eu.
Tem outro que digo assim:
A pandemia deixou um mundo de pé descalço, mas em troca ela acabou com muitos abraços falsos, ontem eu vi pela janela uma cadela o capítulo
Deus tirando a máscara dela para ela brincar no lixo o mundo que a gente mora nunca fora governado se fosse estaria agora todo mundo mascarado…
(É por aí)…
Fale uma de esperança!
Todas a(as) poesias que faço têm esperança no meio:
Ontem eu fui dormir pensando quando este vírus passar será que o homem aprendeu ou se vai continuar guiando bala perdida, fabricando ‘plasticida’, jogando lixo do mar?
Quebrando os espelhos d’água, tingindo o céu de fumaça se afastando de Deus, plantando óleo na praça pra colher mais fome e guerra deixando a vida na Terra sem cor, sem pão e sem graça
Ou se ele pressentiu que a terra estremeceu e aprendeu com o vírus, que o mundo não é seu que ele viu com certeza a dor da mãe natureza no grito que a terra deu.
E pensando eu mergulhei num sono longo e profundo sonhei que eu transformava num caldeirão largo e fundo um pouco de gratidão, uma bola de sabão pra lavar as mãos do Mundo.
Depois fazia uma máscara do pano da igualdade cobria o rosto do mundo com as mãos da caridade pra não entrar o cinismo, do vírus do egoísmo na alma da humanidade.
Eu vi os olhos do mundo por trás da máscara brilhando eu corri para lhe abraçar e quando eu ia abraçando Nira, minha mulher, bateu na corda da rede dizendo acorda que a caixa está sangrando.
Fechei a caixa e voltei, peguei minha caneta desenhei uma máscara, guardei numa gaveta pra quando o vírus passar, eu tirar e colocar no rosto do meu planeta.
A emoção do poeta está às escâncaras. O medo também. “Poesia é sensibilidade. Eu quase não ligo mais a televisão por medo. Porque você vê países organizados como Suécia, Suíça, Inglaterra, França, todos fechando as portas, se dobrando ao peso do vírus, quanto dirá nós, um país ainda agrícola, estamos lutando ainda para fazer alguma coisa. Acho que o homem se comporta melhor se tiver sensibilidade. E como eu disse no poema, “o mundo não é seu”.
O poeta vagueia. “Enquanto não aprendermos a conviver com a Terra”…
O novo vírus deixou O Mundo inteiro virado cheio de canhões de guerra feito de óleo forjado mas para este vírus forte o mundo está desarmado.
É tanto que começou pelas grandes capitais Milão, Pequim e Paris, Nova York e outras mais mostrando para que ele veio e do que ele é capaz.
Matou um montão de gente só num final de semana fechou igreja, escola com uma fúria tirana matando gente e zombando da Inteligência humana.
Mas vamos frear o vírus não com bala de canhão mas com pequenas medidas mas de grande precisão lavar as mãos bem lavadas com água limpa e sabão.
Evitar sair de casa mesmo para padaria pegar o pincel da arte pincelar seu dia a dia e reler aquele livro de contos que você lia.
Deixar de lado o abraço E o aperto de mão é ruim, mas é preciso dessa estranha comunhão ficar distante dos olhos e perto do coração.
Quando o vírus passar e que Ratto gritar: “passou!” vamos plantar esperança no rastro que ele deixou para o amor germinar e Deus do céu se orgulhar do homem que ele criou.
Para finalizar, o poeta Antônio falou da alegria de seu projeto ser contemplado pela Lei Aldir Blanc. “Eu não acreditava que alguém se lembrasse dos artistas e que isso saísse tão ligeiro. Porque o que tinha de poetas precisando desse apoio… Pelo menos pelo lado do cordel. Fomos contemplados e faremos um filme. Será bem interessante. Aliás, vamos fazer muita coisa além de gastar o dinheiro — finalizou aos risos.