Últimas histórias

  • Picolé de Morango

    Quando menino em Licânia, ele conhecera a novidade. O tio, morador da capital, chamara-o para um passeio pelo Mercado Público:

    — Vamos, Ferreirinha, me acompanhe.

    Depressa enfiou os pés nos chinelos e fez carreira.

    — Se comporte, ouviu? E não vá dar trabalho ao seu tio Expedito — alertou Djacira, sua mãe.

    — Ferreirinha já está taludo e graúdo, minha irmã! — devolveu o bom homem.

    No caminho, Ferreirinha ia lhe apresentando tudo: a farmácia, a nova loja de ferragens, o armazém de secos e molhados, o atacadão de tecidos… A boca não parava, sempre incentivada pelos monossílabos do tio: sim, bem, hum, ah, não…

    Ao entrarem no Mercado, deram com uma placa vermelha, coisa nova na cidade: Gellato.

    Ferreirinha diminuiu o passo e calou-se. Olhou, revirou, passou por baixo da plaquinha, roído pela curiosidade. Seu Expedito dirigiu-se ao estabelecimento e saiu de lá com algo na mão:

    — Experimente, Ferreirinha. O de morango é o que eu mais gosto.

    — Mas… o que é isso?

    — É um picolé de morango, rapaz.

    Ferreirinha o recebeu; retirou, com uma certa dificuldade, a capinha lustrosa que o recobria; e, ao lhe pôr os lábios, sentiu um prazer que lhe levou lágrimas aos olhos.

    — Vamos, pois ainda quero passar no comércio do meu irmão Manoel — comunicou-lhe Expedito.

    Ferreirinha foi caminhando, mas agora sem nenhuma pressa. Calado. Um olho no caminho, o outro no Gellato de morango, e, de quando em quando, uma lambida de êxtase.

    Aquela experiência marcara-lhe os anos de infante. A família sempre a lutar com pouca renda, a mãe a se virar para alimentar os cinco rebentos. E, naquele mundo de pindaíba, o picolé de morango!

    &&&

    Domingo, Ferreira resolvera levar os filhos, Telzinho e Belinha, para brincar na praça. Ofertar-lhes um pouco de alegria naquela manhã cinza.

    — Aproveite, passe na farmácia e compre o seu remédio, Ferreira — orientou Domênica.

    No centro da pracinha, o bulício da criançada em torno da tenda vermelha da sorveteria. Telzinho e Belinha, com os olhos baixos, fingindo desinteresse.

    Ferreirinha se lembrou do tio Expedito.

    Pediu a Telzinho e Belinha que brincassem de esconde-esconde à sombra das mangueiras. Sentou-se no banco, contando e recontando os cobres de que dispunha. Apenas o suficiente, justo e recontado, para a compra da medicação.

    Levantou-se, o sabor do gelado ainda na memória, e se dirigiu ao vendedor:

    — Veja-me dois de morango.

    Passou-lhe o dinheiro, sobrando-lhe um parco troco.

    — Telzinho e Belinha, olhem o que eu comprei.

    O esconde-esconde rendeu-se a dois fortes concorrentes: os picolés de morango.

    Sorveram-nos com uma avidez de famélicos.

    — Pelo amor de Deus, não se lambuzem. Domênica me mata! — alertou o bom Ferreirinha.

    Voltaram com o riso frouxo, a chutar o ar, de tão contentes.

    — Viram passarinho verde, foi? — recebeu-os Domênica.

    Entreolharam-se, e os filhos foram tomar banho.

    — Muito bem, muito bem! O almoço já está quase pronto.

    — Vou para o nosso quarto — anunciou Ferreira.

    Domênica seguiu-o. Ao se ver a sós com o esposo, indagou-lhe:

    — E o seu remédio da pressão?

    Nenhuma resposta.

    — E esse cheiro de morango nas roupas das crianças?

    Mais silêncio.

    — Senhor Ferreira das Mercês!…

    — Não me contive, Domênica. Você precisava ver o brilho nos olhos deles, minha princesa.

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    Domênica deixou as crianças sob os cuidados da vizinha e resolveu dar uma volta pela cidade. Era um fim de tarde de um domingo nublado, as ruas quase sem movimento, apenas as praças ainda apinhadas de casais, a entreterem os seus filhos com novos brinquedos.

    Correu a vista pelo céu de Licânia. Logo em seguida os olhos se enfiaram nas lembranças do convívio com Ferreirinha. Sentiu-se tristonha e resolveu sentar-se em um dos bancos da Praça do Progresso. “Por onde tu andas, Ferreira?”

    De repente alguém se aproximou:

    — Mandaram para a senhora!

    Era o vendedor da sorveteria. Ela recebeu-o, ao olhar as horas no relógio: seis da noite, em ponto.

    “Minha Dodó, o céu se enche de estrelas para celebrar o nosso amor. Deixemos as coisas menores de lado. Deus há de nos ajudar. Olhai os lírios do campo…”

    E Domênica sorveu, em lágrimas, um picolé de morango com a sofreguidão e a fúria, sem falar na pressa ardente, de uma eterna condenada.

    E, naquela noite de março, Licânia foi surpreendida por uma estranha chuva de verão.

    *Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

  • O SILÊNCIO DE DOMÊNICA MELGAÇO

    Domênica saiu cedo, antes alimentou as crianças e aguou o pequeno jardim. A noite lhe fora longa, em claro com os resmungos e as tosses dos filhos. Quando cuidava das plantas, o pensamento correu solto, levando-a para lembranças distantes. Ao fim, Domênica acabou rememorando o tempo de casada. “Uma flor para outra!”, as palavras de Ferreirinha a assanhar sua tristeza.

    Domênica Melgaço ganhou o Mercado. Por entre as lojas e o burburinho de Licânia, ela se esqueceria de tudo e estamparia um pouco de riso na face merencória.

    Na bodega do Bastião, comprou fubá, café e açúcar. Não sem regatear um preço melhor.

    — Senhor Bastião! O meu bolso não é tão forte!

    — Sempre prezei minha clientela, senhora Domênica. E nunca explorei a senhora, nem agora nem quando a senhora vivia com… — Bastião calou-se, baixou a cabeça, a fingir conferir os trocados na gaveta ensebada do balcão.

    Domênica silenciou e seguiu.

    Antes da esquina, ela entrou na farmácia do Galvino, conferindo a receita.

    — Bom dia, Domênica — saudou-a o boticário.

    — Bom dia, seu Galvino. Me veja este remédio — solicitou Domênica, entregando-lhe a prescrição médica com a letra esgarranchada do Dr. José Arcanjo.

    — Broncodilatador, pelo jeito a sua garotinha voltou com as crises de asma — comentou Galvino.

    — Sim. E eu achava que ela havia se livrado dessa maldita! E, o que é pior, o menino vem apresentando os mesmos sintomas alérgicos. O doutor falou que poderia ser apenas um quadro psicossomático — emendou Domênica.

    — É possível, a mente comanda tudo, e os filhos sempre sentem muito se o pai os deixa… — Galvino cortou a fala, dirigiu-se à parte interna, incomodado com o próprio comentário.

    Domênica silenciou, pagou a conta e seguiu.

    Aquela manhã mostrava-se imersa num calor forte, como se um sol para cada um. Abriu a sombrinha e rumou na direção do açougue do Gregório. Antes, Domênica conferiu o que lhe sobrara na bolsa, decidindo, devido aos parcos cobres, cortar a carne da semana, levando tão só frango e ovos.

    — Bom dia, senhora Domênica! — bradou o velho magarefe.

    — Bom dia, seu Gregório.

    — Hoje temos carne de gado de primeira, sem falar que abati também um porquinho daqueles — anunciou Gregório, enquanto amolava as facas uma na outra.

    — Desta vez, vou querer um frango e uma dúzia de ovos caipiras — anunciou Domênica Melgaço, constrangida com a contenção do pedido.

    — Se seu Ferreirinha visse a chã de dentro que tenho aqui, ele… — Gregório entalou-se, tomou um trago da pinga que guardava na parte inferior da bancada e, rubro, depositou na bolsa de compras de Domênica o frango e os doze ovos.

    — Quanto foi tudo, seu Gregório?

    — Não se incomode, deixo registrado no caderno. A senhora acerta depois — comunicou o velho Gregório, como a se penitenciar pela indelicadeza de há pouco.

    Domênica silenciou, ajustou a sombrinha e voltou para o seu lar.

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    No caminho, uma melancolia lhe invadira ainda mais seu pensar; Domênica Melgaço julgara que ganhar as ruas, flanar pelo Mercado Público e fazer suas compras poderia lhe devolver o sorriso. Ao contrário, tudo lhe trouxera mais nostalgia.

    Mal ela abriu a porta da frente, chamou pelas crianças:

    — Filhos? Mãezinha chegou.

    Silêncio. Pouco depois, ouviu uma voz masculina, em tom baixo, no quarto das crianças.

    — Filhos.

    Enquanto chamava, ela dirigia-se para o quarto. Ao abrir a porta, deu pela janela aberta, com os dois filhos fingindo dormir.

    Domênica correu em direção à janela; antes de fechá-la, passou a vista pelo terreno dos fundos, a galharia a se mover. Apesar de nenhuma brisa.

    Sentou-se na cama da pequena, ajeitou-lhe o lençol sobre o corpo miúdo e percebeu que a febre cedera.

    — Estou melhor agora, mãezinha.

    — E eu também — completou o garoto.

    Domênica silenciou. “… faltou tudo a ti, senhora Domênica Melgaço, menos amor. Adeus. Diga aos meninos que o pai deles morreu”, a lembrança do esposo, como um aperto no coração.

    Licânia, ensolarada, sob um céu sem nuvens e de um azul limpo. Era fevereiro, em pleno e silente verão.

  • A CARIDADE DE GERVÁSIA

    A noite o acolheu numa frieza incomum. Ferreirinha andava, sem rumo, os olhos baixos e a cabeça em tumulto.

    “… Não saí da casa dos meus pais para me entregar a uma vida de sem-vergonhice, senhor Ferreira! Logo, nada nos resta…” A voz da esposa Domênica a segui-lo, desde que fora expulso do seu lar.

    “… faltou tudo a ti, senhora Domênica Melgaço, menos amor. Adeus. Diga aos meninos que o pai deles morreu.”

    Parou numa praça deserta. E entregou-se a um choro convulso, sentado num banco frio.

    — Senhor?! Aceita nossa ajuda?

    Ao levantar a face, a visão ainda turva, percebeu que uma senhora dirigia-se a ele, ofertando-lhe um lanche.

    — Somos da Irmandade de São Francisco de Assis.

    Envergonhado, enxugou as lágrimas e quis se explicar, mas não teve êxito. A dor apertava-lhe o peito, o abandono fizera-o um desgraçado, e o soluço voltou ainda mais sofrido.

    — Senhora, eu…

    Ela se sentou ao seu lado, o lanche no colo e os olhos postos à distância.

    Não se sabe nem quando nem por que, ela resolveu segurar sua mão e permanecer ali, em silêncio.

    Aquele gesto de caridade trouxe uma candura a Ferreirinha. Em seguida, soltou a voz, fazendo-a confidente de sua terrível crise matrimonial.

    O relógio da Matriz de Sant’Anna badalou meia-noite.

    — Venha. Há um quarto vago no quintal de casa. O senhor não pode ficar vagando pela cidade. Amanhã, Deus é grande, Ele irá serenar sua dor e guiá-lo.

    Gervásia tomou Ferreira pela mão, e conduziu-o à sua residência. Pelos postigos das casas da Praça da Matriz, olhos curiosos a tudo acompanhavam.

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    — Dona Maria Djanira, muito caridosa, presenteou-me hoje com um bolo de banana. Está delicioso! Mas, antes, deixe eu esquentar uma sopa…

    — Não precisa, Dona Gervásia! Eu…

    — Precisa sim, senhor Ferreira! Estamos necessitando de algo quentinho no estômago, a noite vai fria. E isso não é trabalho, sabia? Pois sempre deixo um pouco de sopa no fogão, para me servir quando do retorno após minhas ações de socorrer na rua aos mais necessitados. Dorme-se melhor pondo um caldinho na barriga; isso eu aprendi com o meu finado Crescêncio. Que Deus o tenha na Sua infinita misericórdia!

    Um silêncio se interpôs entre eles.

    Ao colocar os pratos na mesa, Gervásia reparou que Ferreirinha voltara a ter os olhos úmidos.

    — Entregue tudo a Deus. Ele põe e dispõe, nada acontece sobre a Terra sem o Seu consentimento.

    Serviram-se. Ferreirinha mal levava a sopa aos lábios, como se a garganta não deixasse nada entrar, embargada pela agonia.

    Lá fora o pio da coruja na torre da Matriz.

    — Alguns dizem que a coruja é bicho agourento, seu Ferreira. Não acredito, não. Prefiro crer que o seu pio é prenúncio de boa coisa — comentou Gervásia, a conter uma nesga de riso nos lábios carnudos.

    Reparando que ele não se serviria mais, pois apenas deixava a colher passear no prato, Gervásia partiu um bom pedaço do bolo de banana e o serviu. Desta vez, na boca.

    — Se não come bem, homem de Deus, a doença vai lhe fazer companhia.

    — Dona Gervásia, é muito abuso da minha parte e…

    — Abuso, seu Ferreira, é você cair doente logo sob os meus cuidados! — interrompeu-o, servindo-lhe outra garfada.

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    — Vejamos aqui no guarda-roupa, eram as coisas do meu marido, se algum pijama dele lhe serve. Não é bom dormir de calça e camisa.

    Gervásia orientava-o num tom angelical, mas sem lhe dar espaço para ponderações. O pobre Ferreira, imerso na pindaíba, era facilmente conduzido.

    Levou-o para o quarto dos fundos, não sem antes providenciar um jogo de lençóis limpos e toalhas. Quando percebeu que estava tudo arrumado, Gervásia ainda recomendou:

    — Calma, descanse agora. Não se resolve nada assim de um dia para o outro.

    — Nem sei como lhe ser grato, Dona…

    — Estamos aqui a serviço um do outro, como filhos e filhas de Deus. E, uma última coisa, Seu Ferreira: reze. Peça à Senhora Sant’Anna que abençoe o seu destino. E se precisar de algo, a porta da cozinha fica só encostada. A empregada chega bem cedo, meu despertador é o cheirinho do café coado. Boa noite!

    — Boa noite, senhora Gervásia. Que Cristo Jesus a recompense. — Ferreira conteve, a custo, o choro.

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    Mal Ferreirinha se deitou, mergulhou num sono inquieto.

    Num pesadelo, o grito da esposa Domênica: “Quem é tão irresponsável como você, senhor Ferreira das Mercês, nem deveria se benzer…”

    Aos prantos, sentou-se na cama e o espectro de Domênica a toldar-lhe o juízo. Desesperado, abriu a porta do quartinho; a lua no alto, chorosa, presságio de um bom inverno. “Quem é tão irresponsável como você, senhor Ferreira…”

    Sem se dar conta, Ferreirinha entrou de casa adentro e foi parar nos aposentos de Dona Gervásia. Ela o esperava.

    Num jeito cândido, Gervásia alisou-lhe os cabelos e, por caridade, dormiu com ele àquela noite.

    “Deus há de me ajudar. Olhai os lírios do campo…”, relembrou Ferreira.

    E o céu de Licânia se cobriu de estrelas. Era primeiro de janeiro.

    *Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

  • A VIUVEZ DE DOMÊNICA

    — Comadre Gildinha, eu sei que ele não vai me perdoar!

    Domênica, com as mãos trêmulas e os olhos marcados pela saudade, a conversar com sua amiga Gildinha.

    — Amiga, o golpe foi forte, mas a situação não era das melhores. Eu bem sei…

    — O problema é que, apesar de tudo, ele sempre foi um romântico. E era o que me mantinha ligado a ele, superando todos os dissabores, atravessando as crises.

    Nessa hora Domênica não se conteve, as lágrimas tornaram-se testemunhas do seu testemunho.

    — Calma, calma. Não se resolve um drama com outro, você sempre me ensinou. Lembra-se da minha crise com o Juvenal? A sua atitude foi decisiva, e não rompemos com a nossa relação.

    — Sei, lembro…

    Domênica conteve o choro, enxugou a face inchada, marcas das noites em claro, e ajeitou o vestido de listinhas, como se Ferreira fosse chegar. Era a hora do Ângelus, ele costumeiramente voltava naquele horário, coçava o rosto com a barba hirsuta por fazer, o gesto do pelo-sinal de forma descrente, e solfejava uma ave-maria. Entrava no banheiro; em seguida, cheirando a sabonete, chamava-a de “princesa” num tom manhoso; enquanto a esposa lhe exigia os cobres: do mercadinho, do débito com a padaria, e do botijão do gás… Enfim, a vida com o mínimo de dignidade. No entanto, ele afastava todas aquelas cobranças da sua boca, beijando-a e cobrindo-a de afagos. “Minha Dodó, o céu se enche de estrelas para celebrar o nosso amor. Deixemos as coisas menores de lado. Deus há de nos ajudar. Olhai os lírios do campo…” E a abraçava, com a sofreguidão de um banido, com a fúria e pressa ardentes de um condenado.

    Não foram poucas as noites nas quais Domênica mergulhara as dívidas nas lavas do vulcão do amor de Ferreirinha, esquecendo-se de tudo e festejando nova noite de paixão.

    Pela manhã, o cesto sem pães e a geladeira sem o leite das crianças traziam a raiva de Domênica de volta, porém Ferreirinha saía cedo. “Quem madruga, minha filha, Deus ajuda!”

    No final da tarde a cena se repetia, com as discussões a estourarem no centro da sala. Ferreirinha, pai zeloso, dava um jeito de levar as crianças para a vizinha, e deixá-las sob a tutela da boa Gildinha, comadre e amiga leal.

    Contudo, quando o padre Armênio entrou certa tarde, o relógio a marcar quinze horas, e pediu licença para sentar, Domênica julgara que os céus os abandonaram. O vigário não aceitou o café ralo, indo direto ao assunto que o trouxera ali:

    — Há oito meses que o senhor Ferreira não honra com as mensalidades escolares dos filhos. A paróquia é pobre e não suporta mais, mantemos o colégio com muita dificuldade; aprovei uma bolsa de cinquenta por cento, coisa que só concedemos aos mais necessitados. Mesmo assim… nem um centavo foi pago pelo seu esposo. É tripudiar da nossa boa vontade! Vim até aqui com a missão de pedir a vocês que resolvam tal situação, ou não me restará outra saída senão…

    Padre Armênio suspendeu a ameaça, apontando-lhe o nariz adunco. Aquela pausa cortou as carnes dela mais do que a pior das admoestações.

    O pároco saiu sem lhe dar a bênção, e Domênica ficou com a mão estendida, como se numa posição de pedinte.

    Com pouco sua cabeça entrou num rebuliço infernal. As crianças fora da escola, as cobranças sobre o criado-mudo, a geladeira sem nada, os filhos a rabiscarem as cartas endereçadas ao Papai Noel… Tudo foi se misturando e azedando o juízo de Domênica.

    Em torno das cinco da tarde, Domênica foi à calçada, chamou pela comadre Gilda e lhe pediu que levasse Telzinho e Belinha. Os olhos rubros e a voz embargada deram a pista de que algo de muito mau a afligia.

    — Não me pergunte nada, comadre! Apenas, por nossa amizade e pelo amor de Deus, fique com as crianças. Preciso ter uma conversa com o senhor Ferreira das Mercês.

    Gilda, ao ouvi-la chamar o esposo de “senhor Ferreira das Mercês”, concluiu que a situação descambara para um litígio sério. Recolheu os meninos, sob a justificativa de que aquela seria noite de pipoca com guaraná.

    — Vamos, Telzinho e Belinha, o milho já está na panela na minha cozinha. Podem me ajudar?

    As crianças desembestaram felizes, sem dar por nada.

    Seis da noite, em ponto, o portão da casa se abriu. Mal pôs o pé na sala, Ferreirinha recebeu o primeiro agravo:

    — Quem é tão irresponsável como você, senhor Ferreira das Mercês, nem deveria se benzer na hora do Ângelus. Deus odeia os maus pagadores…

    Ferreirinha tentou um contra-ataque:

    — Minha princesa, o amor de Deus é maior do que…

    — Não meta Deus na sua falta de vergonha! Você, como provedor do lar, tem se revelado um fracassado. Um fracassado!

    Aquela palavra, fracassado, repetida e assacada com a potência de uma maldição, levou Ferreira a baixar a cabeça, murchar os olhos e puxar os beiços.

    — Sua pindaíba, seu Ferreira das Mercês, acabou com tudo. Inclusive com o meu amor, sabia?

    Ferreirinha, que já se sentia golpeado, dobrou os joelhos, como se recebesse a cutilada mortal.

    Quis argumentar, nada lhe assomou aos lábios miúdos. Nem o choro o socorreu.

    — Nossos filhos fora da escola?!… Não saí da casa dos meus pais para me entregar a uma vida de sem-vergonhice, senhor Ferreira! Logo, nada nos resta…

    Ferreira ainda manteve o ânimo e proferiu algumas palavras. As primeiras, inaudíveis. As últimas soaram vívidas:

    — … faltou tudo a ti, senhora Dômenica Melgaço, menos amor. Adeus. Diga aos meninos que o pai deles morreu.

    E saiu, sem nada levar. O gato Felizardo ainda ronronou-lhe aos pés, última esmola de carinho daquela casa.

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    — Comadre Gildinha, eu sei que ele não vai me perdoar!

    Domênica, com as mãos trêmulas e os olhos marcados pela saudade, a conversar com sua amiga Gildinha.

    Lá fora, as estrelas a luzirem num céu de dezembro. Em todas as casas de Licânia, a espera das crianças pelo Papai Noel.

    *Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
    clauderarcanjo@gmail.com