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O SILÊNCIO DE DOMÊNICA MELGAÇO

Domênica saiu cedo, antes alimentou as crianças e aguou o pequeno jardim. A noite lhe fora longa, em claro com os resmungos e as tosses dos filhos. Quando cuidava das plantas, o pensamento correu solto, levando-a para lembranças distantes. Ao fim, Domênica acabou rememorando o tempo de casada. “Uma flor para outra!”, as palavras de Ferreirinha a assanhar sua tristeza.

Domênica Melgaço ganhou o Mercado. Por entre as lojas e o burburinho de Licânia, ela se esqueceria de tudo e estamparia um pouco de riso na face merencória.

Na bodega do Bastião, comprou fubá, café e açúcar. Não sem regatear um preço melhor.

— Senhor Bastião! O meu bolso não é tão forte!

— Sempre prezei minha clientela, senhora Domênica. E nunca explorei a senhora, nem agora nem quando a senhora vivia com… — Bastião calou-se, baixou a cabeça, a fingir conferir os trocados na gaveta ensebada do balcão.

Domênica silenciou e seguiu.

Antes da esquina, ela entrou na farmácia do Galvino, conferindo a receita.

— Bom dia, Domênica — saudou-a o boticário.

— Bom dia, seu Galvino. Me veja este remédio — solicitou Domênica, entregando-lhe a prescrição médica com a letra esgarranchada do Dr. José Arcanjo.

— Broncodilatador, pelo jeito a sua garotinha voltou com as crises de asma — comentou Galvino.

— Sim. E eu achava que ela havia se livrado dessa maldita! E, o que é pior, o menino vem apresentando os mesmos sintomas alérgicos. O doutor falou que poderia ser apenas um quadro psicossomático — emendou Domênica.

— É possível, a mente comanda tudo, e os filhos sempre sentem muito se o pai os deixa… — Galvino cortou a fala, dirigiu-se à parte interna, incomodado com o próprio comentário.

Domênica silenciou, pagou a conta e seguiu.

Aquela manhã mostrava-se imersa num calor forte, como se um sol para cada um. Abriu a sombrinha e rumou na direção do açougue do Gregório. Antes, Domênica conferiu o que lhe sobrara na bolsa, decidindo, devido aos parcos cobres, cortar a carne da semana, levando tão só frango e ovos.

— Bom dia, senhora Domênica! — bradou o velho magarefe.

— Bom dia, seu Gregório.

— Hoje temos carne de gado de primeira, sem falar que abati também um porquinho daqueles — anunciou Gregório, enquanto amolava as facas uma na outra.

— Desta vez, vou querer um frango e uma dúzia de ovos caipiras — anunciou Domênica Melgaço, constrangida com a contenção do pedido.

— Se seu Ferreirinha visse a chã de dentro que tenho aqui, ele… — Gregório entalou-se, tomou um trago da pinga que guardava na parte inferior da bancada e, rubro, depositou na bolsa de compras de Domênica o frango e os doze ovos.

— Quanto foi tudo, seu Gregório?

— Não se incomode, deixo registrado no caderno. A senhora acerta depois — comunicou o velho Gregório, como a se penitenciar pela indelicadeza de há pouco.

Domênica silenciou, ajustou a sombrinha e voltou para o seu lar.

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No caminho, uma melancolia lhe invadira ainda mais seu pensar; Domênica Melgaço julgara que ganhar as ruas, flanar pelo Mercado Público e fazer suas compras poderia lhe devolver o sorriso. Ao contrário, tudo lhe trouxera mais nostalgia.

Mal ela abriu a porta da frente, chamou pelas crianças:

— Filhos? Mãezinha chegou.

Silêncio. Pouco depois, ouviu uma voz masculina, em tom baixo, no quarto das crianças.

— Filhos.

Enquanto chamava, ela dirigia-se para o quarto. Ao abrir a porta, deu pela janela aberta, com os dois filhos fingindo dormir.

Domênica correu em direção à janela; antes de fechá-la, passou a vista pelo terreno dos fundos, a galharia a se mover. Apesar de nenhuma brisa.

Sentou-se na cama da pequena, ajeitou-lhe o lençol sobre o corpo miúdo e percebeu que a febre cedera.

— Estou melhor agora, mãezinha.

— E eu também — completou o garoto.

Domênica silenciou. “… faltou tudo a ti, senhora Domênica Melgaço, menos amor. Adeus. Diga aos meninos que o pai deles morreu”, a lembrança do esposo, como um aperto no coração.

Licânia, ensolarada, sob um céu sem nuvens e de um azul limpo. Era fevereiro, em pleno e silente verão.

Escrito por Clauder Arcanjo

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