Sobre

A CARIDADE DE GERVÁSIA

A noite o acolheu numa frieza incomum. Ferreirinha andava, sem rumo, os olhos baixos e a cabeça em tumulto.

“… Não saí da casa dos meus pais para me entregar a uma vida de sem-vergonhice, senhor Ferreira! Logo, nada nos resta…” A voz da esposa Domênica a segui-lo, desde que fora expulso do seu lar.

“… faltou tudo a ti, senhora Domênica Melgaço, menos amor. Adeus. Diga aos meninos que o pai deles morreu.”

Parou numa praça deserta. E entregou-se a um choro convulso, sentado num banco frio.

— Senhor?! Aceita nossa ajuda?

Ao levantar a face, a visão ainda turva, percebeu que uma senhora dirigia-se a ele, ofertando-lhe um lanche.

— Somos da Irmandade de São Francisco de Assis.

Envergonhado, enxugou as lágrimas e quis se explicar, mas não teve êxito. A dor apertava-lhe o peito, o abandono fizera-o um desgraçado, e o soluço voltou ainda mais sofrido.

— Senhora, eu…

Ela se sentou ao seu lado, o lanche no colo e os olhos postos à distância.

Não se sabe nem quando nem por que, ela resolveu segurar sua mão e permanecer ali, em silêncio.

Aquele gesto de caridade trouxe uma candura a Ferreirinha. Em seguida, soltou a voz, fazendo-a confidente de sua terrível crise matrimonial.

O relógio da Matriz de Sant’Anna badalou meia-noite.

— Venha. Há um quarto vago no quintal de casa. O senhor não pode ficar vagando pela cidade. Amanhã, Deus é grande, Ele irá serenar sua dor e guiá-lo.

Gervásia tomou Ferreira pela mão, e conduziu-o à sua residência. Pelos postigos das casas da Praça da Matriz, olhos curiosos a tudo acompanhavam.

&&&

— Dona Maria Djanira, muito caridosa, presenteou-me hoje com um bolo de banana. Está delicioso! Mas, antes, deixe eu esquentar uma sopa…

— Não precisa, Dona Gervásia! Eu…

— Precisa sim, senhor Ferreira! Estamos necessitando de algo quentinho no estômago, a noite vai fria. E isso não é trabalho, sabia? Pois sempre deixo um pouco de sopa no fogão, para me servir quando do retorno após minhas ações de socorrer na rua aos mais necessitados. Dorme-se melhor pondo um caldinho na barriga; isso eu aprendi com o meu finado Crescêncio. Que Deus o tenha na Sua infinita misericórdia!

Um silêncio se interpôs entre eles.

Ao colocar os pratos na mesa, Gervásia reparou que Ferreirinha voltara a ter os olhos úmidos.

— Entregue tudo a Deus. Ele põe e dispõe, nada acontece sobre a Terra sem o Seu consentimento.

Serviram-se. Ferreirinha mal levava a sopa aos lábios, como se a garganta não deixasse nada entrar, embargada pela agonia.

Lá fora o pio da coruja na torre da Matriz.

— Alguns dizem que a coruja é bicho agourento, seu Ferreira. Não acredito, não. Prefiro crer que o seu pio é prenúncio de boa coisa — comentou Gervásia, a conter uma nesga de riso nos lábios carnudos.

Reparando que ele não se serviria mais, pois apenas deixava a colher passear no prato, Gervásia partiu um bom pedaço do bolo de banana e o serviu. Desta vez, na boca.

— Se não come bem, homem de Deus, a doença vai lhe fazer companhia.

— Dona Gervásia, é muito abuso da minha parte e…

— Abuso, seu Ferreira, é você cair doente logo sob os meus cuidados! — interrompeu-o, servindo-lhe outra garfada.

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— Vejamos aqui no guarda-roupa, eram as coisas do meu marido, se algum pijama dele lhe serve. Não é bom dormir de calça e camisa.

Gervásia orientava-o num tom angelical, mas sem lhe dar espaço para ponderações. O pobre Ferreira, imerso na pindaíba, era facilmente conduzido.

Levou-o para o quarto dos fundos, não sem antes providenciar um jogo de lençóis limpos e toalhas. Quando percebeu que estava tudo arrumado, Gervásia ainda recomendou:

— Calma, descanse agora. Não se resolve nada assim de um dia para o outro.

— Nem sei como lhe ser grato, Dona…

— Estamos aqui a serviço um do outro, como filhos e filhas de Deus. E, uma última coisa, Seu Ferreira: reze. Peça à Senhora Sant’Anna que abençoe o seu destino. E se precisar de algo, a porta da cozinha fica só encostada. A empregada chega bem cedo, meu despertador é o cheirinho do café coado. Boa noite!

— Boa noite, senhora Gervásia. Que Cristo Jesus a recompense. — Ferreira conteve, a custo, o choro.

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Mal Ferreirinha se deitou, mergulhou num sono inquieto.

Num pesadelo, o grito da esposa Domênica: “Quem é tão irresponsável como você, senhor Ferreira das Mercês, nem deveria se benzer…”

Aos prantos, sentou-se na cama e o espectro de Domênica a toldar-lhe o juízo. Desesperado, abriu a porta do quartinho; a lua no alto, chorosa, presságio de um bom inverno. “Quem é tão irresponsável como você, senhor Ferreira…”

Sem se dar conta, Ferreirinha entrou de casa adentro e foi parar nos aposentos de Dona Gervásia. Ela o esperava.

Num jeito cândido, Gervásia alisou-lhe os cabelos e, por caridade, dormiu com ele àquela noite.

“Deus há de me ajudar. Olhai os lírios do campo…”, relembrou Ferreira.

E o céu de Licânia se cobriu de estrelas. Era primeiro de janeiro.

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

Escrito por Clauder Arcanjo

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