Por Ana Cadengue
Uma garrafa de vidro, líquido inflamável e um pedaço de pano qualquer. O fogo resultante dos coquetéis molotov espalhados nos últimos dias pelo Rio Grande do Norte deixou mais que cinzas, medo e prejuízos materiais.
A onda de ataques supostamente determinada por uma facção criminosa ou até uma aliança de facções rivais fechou comércios, escolas, universidades e postos de saúde. Paralisou o serviço de transporte público e coleta de lixo nas principais cidades do estado e atrapalhou a vida de toda uma população.
A violência, que foi durante dias destaque nos principais veículos de comunicação do país, afastou turistas e visitantes e aproximou a oposição que afinou o discurso contra a governadora Fátima Bezerra.
Se no amor e na guerra vale tudo, como costumam dizer, na política não é diferente, nem nas relações de poder, como bem demonstraram os criminosos potiguares que resolveram se unir momentaneamente para tocar o terror. Há pelo menos dez anos, dois desses grupos, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Sindicato do Crime, promovem um conflito bélico e mortífero pelo controle de territórios e de atividades criminosas.
Segundo a imprensa, os crimes teriam sido motivados pelas más condições dos presídios no Estado. Em vistoria a cinco prisões do Estado no final do ano passado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação, entre outras violações.
“No Rio Grande do Norte, o sistema prisional funciona a partir da prática sistemática de torturas físicas e psicológicas”, afirma Bárbara Coloniese, perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) à reportagem do G1RN. “Trata-se de uma engrenagem de falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação”.
Para a antropóloga Juliana Melo, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em entrevista ao G1RN, situação encontrada pelo MNPCT não é inédita. Acompanhando grupos de familiares de presos durante anos desde o massacre de Alcaçuz, em 2017, Juliana conta que “eles relatavam torturas dos mais variados tipos, como beber água sanitária, choque elétrico, ficar horas em posição de procedimento, ser obrigado a andar nu. Sem falar na humilhação dos familiares na hora de fazer a visita. Isso gera muita revolta no sistema e acaba transbordando para a rua, como estamos vendo agora, provocando uma espiral de violência”.
De acordo com o “Salve” emitido pelos bandidos, os ataques seriam uma forma deles reivindicarem melhorias no sistema carcerário. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (Sesed) nega que essa seja a motivação e diz que os ataques são uma retaliação a ações policiais de combate ao tráfico e ao crime organizado.
Em entrevista coletiva durante os conflitos, a governadora Fátima Bezerra afirmou que as denúncias serão apuradas “por meio de uma investigação profunda” e que “nosso governo jamais compactuará com nenhuma medida de arbítrio”.
Sem condições de combater um numeroso nem tão incrível e nem tão brancaleônico exército de criminosos, o Governo do Estado pediu e recebeu a ajuda do Governo Federal, que enviou centenas de integrantes da Força Nacional e contou com a ajuda dos vizinhos estados da Paraíba e do Ceará, além do auxílio do Pará, com policiais, equipamentos e aeronaves.
O Governo Federal ainda se comprometeu a liberar 100 milhões de reais para a área de segurança, a repor os ônibus escolares destruídos e a liberar itens apreendidos pela Receita Federal que possam atenuar o prejuízo de municípios e civis.
A governadora Fátima também instalou um Gabinete de Crise, reunindo representantes dos Poderes e criou o Comitê Estadual de Monitoramento, Acompanhamento e Apoio às Vítimas de Violência no Rio Grande do Norte, integrado por representantes de sete pastas do Governo do Estado, inclusive o Gabinete Civil e mais a participação da Federação dos Municípios do RN (Femurn), para identificar e elaborar diagnóstico acerca dos prejuízos causados pelos ataques criminosos.
Pesquisa divulgada pela FIERN aponta que as indústrias do Rio Grande do Norte chegaram a perder 40% de faturamento durante os dias mais críticos dos ataques, entre 14 e 24 de março.
Enquanto o governo tenta garantir a segurança e tranquilidade da população, alguns – de olho nas próximas eleições – tentam auferir ganhos políticos. Tem até quem defenda a imediata interdição militar no estado. Deuzulivre!
BOX 1 – APLICAÇÃO DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS
A governadora Fátima Bezerra apresentou, no último dia 27, o plano de aplicação dos 100 milhões de reais repassados extraordinariamente pelo Governo Federal para a segurança pública potiguar. Desse total, R$ 75 milhões serão executados pelo Governo do Estado e o restante pelo Ministério da Justiça, através de doação de veículos para o RN e do custeio de despesas da Força Nacional.
Do montante que caberá à execução pelo RN, R$ 49 milhões serão aplicados pela segurança pública e R$ 26 milhões pelo sistema prisional estadual, com melhoria da infraestrutura e ampliação de vagas.
O plano de aplicação imediata do repasse extraordinário prevê R$ 30 milhões para investimentos na segurança pública com a compra de veículos, aquisição de coletes balísticos e equipamentos de tecnologia da informação. E R$ 19 milhões para custeio da segurança (locação de viaturas, atualização do controlador central do Ciosp e seguro da Aeronave, o Potiguar 02).
Além dos R$ 49 milhões, também serão investidos R$ 19,3 milhões dos recursos que já estavam alocados para a segurança na modalidade fundo a fundo, antes dos atos criminosos. Com esse dinheiro, serão adquiridos 46 caminhonetes e quatro SUVs para o policiamento ostensivo (PM) e 02 caminhões ABT para o Corpo de Bombeiros Militar.
BOX 2 – COQUETEL MOLOTOV – Criada nos Anos 1930 na Europa e usada desde então em protesto violentos e guerrilhas urbanas por todo o mundo, a bomba caseira foi batizada como “Coquetel Molotov” pelos finlandeses. O nome deriva do diplomata soviético Vyacheslav Mikhailovich Molotov, que declarou durante a Guerra de Inverno, em 1939, que os soviéticos não estavam bombardeando cidades finlandesas, mas sim jogando alimentos. As bombas russas então foram apelidadas de “cestos de pães de Molotov” e as bombas improvisadas usadas pelos finlandeses de coquetéis Molotov.