— Comadre Gildinha, eu sei que ele não vai me perdoar!
Domênica, com as mãos trêmulas e os olhos marcados pela saudade, a conversar com sua amiga Gildinha.
— Amiga, o golpe foi forte, mas a situação não era das melhores. Eu bem sei…
— O problema é que, apesar de tudo, ele sempre foi um romântico. E era o que me mantinha ligado a ele, superando todos os dissabores, atravessando as crises.
Nessa hora Domênica não se conteve, as lágrimas tornaram-se testemunhas do seu testemunho.
— Calma, calma. Não se resolve um drama com outro, você sempre me ensinou. Lembra-se da minha crise com o Juvenal? A sua atitude foi decisiva, e não rompemos com a nossa relação.
— Sei, lembro…
Domênica conteve o choro, enxugou a face inchada, marcas das noites em claro, e ajeitou o vestido de listinhas, como se Ferreira fosse chegar. Era a hora do Ângelus, ele costumeiramente voltava naquele horário, coçava o rosto com a barba hirsuta por fazer, o gesto do pelo-sinal de forma descrente, e solfejava uma ave-maria. Entrava no banheiro; em seguida, cheirando a sabonete, chamava-a de “princesa” num tom manhoso; enquanto a esposa lhe exigia os cobres: do mercadinho, do débito com a padaria, e do botijão do gás… Enfim, a vida com o mínimo de dignidade. No entanto, ele afastava todas aquelas cobranças da sua boca, beijando-a e cobrindo-a de afagos. “Minha Dodó, o céu se enche de estrelas para celebrar o nosso amor. Deixemos as coisas menores de lado. Deus há de nos ajudar. Olhai os lírios do campo…” E a abraçava, com a sofreguidão de um banido, com a fúria e pressa ardentes de um condenado.
Não foram poucas as noites nas quais Domênica mergulhara as dívidas nas lavas do vulcão do amor de Ferreirinha, esquecendo-se de tudo e festejando nova noite de paixão.
Pela manhã, o cesto sem pães e a geladeira sem o leite das crianças traziam a raiva de Domênica de volta, porém Ferreirinha saía cedo. “Quem madruga, minha filha, Deus ajuda!”
No final da tarde a cena se repetia, com as discussões a estourarem no centro da sala. Ferreirinha, pai zeloso, dava um jeito de levar as crianças para a vizinha, e deixá-las sob a tutela da boa Gildinha, comadre e amiga leal.
Contudo, quando o padre Armênio entrou certa tarde, o relógio a marcar quinze horas, e pediu licença para sentar, Domênica julgara que os céus os abandonaram. O vigário não aceitou o café ralo, indo direto ao assunto que o trouxera ali:
— Há oito meses que o senhor Ferreira não honra com as mensalidades escolares dos filhos. A paróquia é pobre e não suporta mais, mantemos o colégio com muita dificuldade; aprovei uma bolsa de cinquenta por cento, coisa que só concedemos aos mais necessitados. Mesmo assim… nem um centavo foi pago pelo seu esposo. É tripudiar da nossa boa vontade! Vim até aqui com a missão de pedir a vocês que resolvam tal situação, ou não me restará outra saída senão…
Padre Armênio suspendeu a ameaça, apontando-lhe o nariz adunco. Aquela pausa cortou as carnes dela mais do que a pior das admoestações.
O pároco saiu sem lhe dar a bênção, e Domênica ficou com a mão estendida, como se numa posição de pedinte.
Com pouco sua cabeça entrou num rebuliço infernal. As crianças fora da escola, as cobranças sobre o criado-mudo, a geladeira sem nada, os filhos a rabiscarem as cartas endereçadas ao Papai Noel… Tudo foi se misturando e azedando o juízo de Domênica.
Em torno das cinco da tarde, Domênica foi à calçada, chamou pela comadre Gilda e lhe pediu que levasse Telzinho e Belinha. Os olhos rubros e a voz embargada deram a pista de que algo de muito mau a afligia.
— Não me pergunte nada, comadre! Apenas, por nossa amizade e pelo amor de Deus, fique com as crianças. Preciso ter uma conversa com o senhor Ferreira das Mercês.
Gilda, ao ouvi-la chamar o esposo de “senhor Ferreira das Mercês”, concluiu que a situação descambara para um litígio sério. Recolheu os meninos, sob a justificativa de que aquela seria noite de pipoca com guaraná.
— Vamos, Telzinho e Belinha, o milho já está na panela na minha cozinha. Podem me ajudar?
As crianças desembestaram felizes, sem dar por nada.
Seis da noite, em ponto, o portão da casa se abriu. Mal pôs o pé na sala, Ferreirinha recebeu o primeiro agravo:
— Quem é tão irresponsável como você, senhor Ferreira das Mercês, nem deveria se benzer na hora do Ângelus. Deus odeia os maus pagadores…
Ferreirinha tentou um contra-ataque:
— Minha princesa, o amor de Deus é maior do que…
— Não meta Deus na sua falta de vergonha! Você, como provedor do lar, tem se revelado um fracassado. Um fracassado!
Aquela palavra, fracassado, repetida e assacada com a potência de uma maldição, levou Ferreira a baixar a cabeça, murchar os olhos e puxar os beiços.
— Sua pindaíba, seu Ferreira das Mercês, acabou com tudo. Inclusive com o meu amor, sabia?
Ferreirinha, que já se sentia golpeado, dobrou os joelhos, como se recebesse a cutilada mortal.
Quis argumentar, nada lhe assomou aos lábios miúdos. Nem o choro o socorreu.
— Nossos filhos fora da escola?!… Não saí da casa dos meus pais para me entregar a uma vida de sem-vergonhice, senhor Ferreira! Logo, nada nos resta…
Ferreira ainda manteve o ânimo e proferiu algumas palavras. As primeiras, inaudíveis. As últimas soaram vívidas:
— … faltou tudo a ti, senhora Dômenica Melgaço, menos amor. Adeus. Diga aos meninos que o pai deles morreu.
E saiu, sem nada levar. O gato Felizardo ainda ronronou-lhe aos pés, última esmola de carinho daquela casa.
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— Comadre Gildinha, eu sei que ele não vai me perdoar!
Domênica, com as mãos trêmulas e os olhos marcados pela saudade, a conversar com sua amiga Gildinha.
Lá fora, as estrelas a luzirem num céu de dezembro. Em todas as casas de Licânia, a espera das crianças pelo Papai Noel.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
clauderarcanjo@gmail.com
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