“Tranque a porta! Jogue a chave fora.” Imagino que vocês já ouviram alguém falar isso. Foi mais ou menos assim, há quase um ano, que nos recolhemos. “Fique em casa! Fique em casa”, diziam.
— Que medo, meu Deus! Um período em que pensávamos que estaríamos mortos só em colocar os pés fora do batente da porta. Operação de guerra ir ao supermercado, máscaras, álcool, limpeza de sacolas no retorno, cuidado com os pés “sujos da rua”, tensão…
— Passe álcool 70% nas mãos… — era o que eu ouvia sempre. Foram dias, semanas, meses…
Na madrugada podíamos ouvir a vizinha da nossa direita orando baixinho, com cantigas religiosas. Pedindo ao Santo Expedito agilidade na vacina.
— Alexandra, deixei a panela no fogo. Você gosta de caranguejo? — ouvi várias vezes isso do vizinho da esquerda.
— Não sei dizer. Mas, posso experimentar outra vez — respondeu a jovem, que eu não consegui avaliar a idade só de ouvi-la. Já sabia que era visita nova. O galanteador sempre oferece caranguejo. E eu querendo saber o significado disso.
— Deus meu! Mais uma noite de insônia.
Antenor, que mora no início da rua, todos os dias, exatamente às 18 horas, sai à calçada só de cuecas, com os olhos sempre esbugalhados, e aos berros:
— Que seja hoje ou amanhã, não descansarei enquanto não for para o Mundo. Não podemos ficar nesta prisão. E não venham querer que eu me compadeça de 200 mil mortes. Essa informação não cola, é fake news. Se todos fossem como eu, teriam pego no postinho o kit-corona, com Azitromicina e Ivermectina.
Antenor bate nos peitos com os punhos cerrados, acerta o tórax tão forte que chega a tossir a cada soco. Pobre-diabo, foi contaminado pela burrice.
A vizinhança grita, assovia e faz algazarra.
— Vem pra dentro, homem. Ou quer que eu vá lhe buscar na porrada? —grita sua mulher, enraivecida pela vergonha.
Deusdedite, que mora em uma casa na frente da minha, só bebe. E entra pela madrugada em lives que só Deus sabe dos expectadores.
Uma, duas, três da manhã. Depois de um litro. Não sei. Ele se teletransporta, foge desse refúgio, desse martírio, via internet.
— Quem vai saber se amanhã estaremos todos aqui — e bem — para fazer o que der na telha? — ouvi certa feita dele esse discurso.
Surpresa mesmo é a Bia, a linda vem se comportando melhor que os marmanjos por essas bandas. Ela até abandonou seus clientes chiques, que a buscavam em seus carrões importados na porta de casa. Impossível esquecer que vez ou outra ela não conseguia sequer entrar em casa, pois adormecia no jardim depois de noitadas regadas a Ciroc.
Nem vou comentar sobre o que me aconteceu neste período de quarentena e o que enfrentei, das noites maldormidas e dos litros que sequei, assim como aconteceu com Deusdedite. Levo comigo só duas certezas nesta vida de pandemia: estamos escapando do vírus, e de tédio não morreremos.
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