— “O homem que matou pai e filho”. Venham todos conhecer a história que abalou uma pequena cidade do sertão.
Aquele anúncio me despertou do sono leve em que me via mergulhado, pondo-me em alerta.
A voz de Creuza na entrada da casa.
— Meu senhor, quero um.
— Aqui está, senhora. Versos de um cantador para revelar as coisas do demo nesta terra tão manchada de sangue. Que Nosso Senhor a proteja.
Calcei as alpercatas e apurei os ouvidos. Percebi que o cordelista se afastara, a anunciar já distante:
— “O homem que matou pai e filho”. Venham todos conhecer a história que abalou uma pequena cidade…
Quando me levantei, a indagação:
— Para onde o senhor pensa que vai?
Creuza com o cordel na mão, o olhar sereno em minha direção.
— Ainda está sob meus cuidados. Deite-se, vou pegar uma caneca de café para você. Acabei de coar, está fresquinho!
Antes de sair, ela deixou o cordel em cima do tamborete que havia junto à rede. A capa avermelhada, a xilogravura com um assassino a cutilar com uma peixeira um homem e, noutro canto, um jovem. Dois quadros.
A vista embaçada, como se os crimes, de volta à mente, embaralhassem meu juízo.
Com a mão trêmula, peguei o cordel. Como sou de poucas letras, li devagar o título e o autor do relato: “O homem que matou pai e filho”, do poeta Lourival de Licânia. Ao abri-lo, a primeira estrofe:
O duplo crime ocorreu
Numa manhã de domingo…
— Não sabia que o senhor também gostava dessas histórias? É uma diversão nessas terras, e um modo de se saber das desgraças, e raras vezes das alegrias, que correm por este mundo de meu Deus — disse-me Creuza, enquanto se sentava no tamborete, entregando-me o café.
O tremor das mãos me denunciava, mas Creuza julgava que aquilo se devia ainda ao meu estado de saúde.
— Tome um cafezinho, é sempre bom. Se o senhor quiser, enquanto descansa, eu posso ler para você. Mas somente se me prometer que vai se comportar e ficar quietinho aí.
Baixei o rosto, os músculos da face a denunciarem o meu aperreio. Tomei o café, trêmulo. Creuza, zelosa, a me consolar:
— Não tenha pressa. Vai passar. Tenhamos fé em Deus. É grande a Sua misericórdia.
Ela ajeitou a barra da saia, pigarreou, como a limpar a garganta, e começou:
— “O homem que matou pai e filho”, do poeta Lourival de Licânia.
E, em tom cantante, principiou:
O duplo crime ocorreu
Numa manhã de domingo…
Um pânico invadiu as minhas carnes, os olhos a assistirem a toda aquela desventura em que me envolvera. E… gritei:
— Minhas desgraças… Senhor…
— Chegue aqui, dona Das Dores. Depressa, me ajude!
Fui contido pelos braços de Creuza.
Tencionei fugir, não pude.
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— Mal iniciei a leitura, e ele passou mal, dona Das Dores.
Creuza a enxugar a minha testa, enquanto rezava uma ave-maria por entre seus lábios carnudos.
A velha Das Dores ao seu lado:
— Deixemos ele descansar, filha. O coitado parece que carrega uma cruz pesada. Venha, vamos conversar um pouco lá fora.
Um sono entrecortado, um aperreio só, o espírito em agonia.
Levantei-me, calcei as alpercatas e, antes que saísse pela janela, a fugir de tudo, a voz de Creuza me chegou:
— Eu quero cuidar dele, dona Das Dores.
— Minha querida, você está se apegando a ele! Cuidado para não se machucar.
— Não me importo.
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O duplo crime ocorreu
Numa manhã de domingo…
“Devia ter vindo para junto deles, no reino dos mortos. Mas intercederam por ele, sem merecer…”
Creuza a me guiar: “Confie em mim, coloque seu braço sobre o meu ombro e vamos sair… São José, valei-nos!, São Francisco de Assis, guarde a gente!, Santa Ana, minha madrinha…”
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Uma oração à luz da lua.
— Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós! — era a velha Das Dores.
Quando ouvi a resposta de Creuza — “que recorremos a vós…” —, uma alegria ganhou o meu corpo.
Voltei para dentro de casa, tirei as alpercatas, pendurei a camisa e a peixeira no canto. Deitei-me, fingindo dormir.
Em seguida Creuza entrou e se sentou junto à rede:
— Nada de mal vai lhe acontecer, esteja certo — confidenciou-me.
Enquanto cobria-me com um lençol cheirando a flores do campo, declarou:
— Durma. Estarei sempre aqui.
Cantigas de roda adormeceram-me.