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Mundos

Por Natália Chagas

Emília ajeita sua toga diante do espelho, olha em sua retina, revê sua trajetória, respira e se encoraja. Em seu primeiro dia como juíza, apesar de vasta experiência desde a formatura da faculdade de direito, aquele era um momento ícone. A pequena saleta que lhe concederam parecia imensa. Ainda há insegurança, o que torna tudo aterrorizador. Nada será como antes.

Passos leves vão tirando borboletas do estômago e a paixão de seu julgamento. Frieza é o tom do momento. Seu nome é anunciado com toda pompa e formalidade. Seu pensamento se desvirtua, e ela pensa no pai, que poderia ter ouvido aquele chamado e se orgulhado da filha se não tivesse ocupado com o marginal do filho dele. Frieza, imparcialidade, nada pode tirar o foco daquele momento.

Sentou-se em sua cadeira, iniciou os trâmites e chamou o primeiro caso.

Recebeu a papelada, enquanto anunciavam processo, número, autor do delito e pedido de Habeas Corpus. Antônio Nogueira dos Santos. Ainda verificava os padrões processuais ao se deparar com a foto do acusado. Foi tomada por um susto e um frio na espinha quando percebeu a semelhança com Mosquito. Rapidamente, olhou para o banco dos réus e, debaixo de um rosto cansado com rugas de desgaste de uma vida inteira entorpecente, uma magreza frágil e olhos pálidos estava a mesma figura de seu passado.

Emília retornou 20 anos atrás, no dia de seu aniversário, quando seu irmão chegou em casa com um novo amigo. Apresentou a todos. Emília se encontrava na cozinha finalizando alguns últimos detalhes para sua festa perfeita quando a mãe, ainda viva, entrou reclamando:

– Seu irmão trouxe mais um dos amiguinhos dele. Daqui a pouco, entra em mais uma encrenca. Queria saber, meu Deus, quando o Senhor irá me tirar dessa vida de decepções e tristezas.

Emília tentava acalmá-la:

– Não fique assim. Quem sabe esse não é diferente? Vamos aguardar…

A mãe limpou os olhos, assoou o nariz e foram para a sala. Giovane, irmão de Emília, chegou sorrindo, apresentou o Mosquito, que trabalhava com ele na mecânica. Fim de festa e os três foram para o quintal fumar um beque. Giovane, sempre falante, adorava contar das esquisitices da irmã quando pequena. Emília se sentia desconfortável, mas deixava passar pois acreditava que aquela era a maneira de ele demonstrar carinho, relembrando o passado juntos. Mosquito sentiu o desconforto naquela mulher que mais olhava o chão que qualquer outra coisa, e tentou mudar a conversa. Puxou assunto com Emília sobre o cotidiano e planos futuros. Emília lhe contou que estava se formando em direito, o que o impressionou bastante. Emília puxou um trago, se engasgou e uma pequena brasa caiu queimando-lhe o queixo. Giovane riu exageradamente e soltou:

– Está vendo? É disso que eu falo, Emilinha, sempre tem algo de esquisito para acontecer… desastrada que só ela. – as gargalhadas.

Dessa vez, ela não se aguentou, deixou uma lágrima correr pelo rosto, pediu licença e foi para seu quarto. Sentada na cadeira da penteadeira, ouviu alguém bater na porta olhou e viu Mosquito parado, pedindo para entrar.

– Vim saber se você está bem.

– Está tudo bem. Eu já me acostumei. De vez em quando é que fico triste. Mas já passa.

– Não devia ficar triste nunca. É tão bonita.

Ela sorriu e sentiu a carícia no rosto.

Os dias iam passando e trazendo Mosquito cada vez mais próximo de Emília. Com o tempo, Giovane não era necessário para marcarem o cinema ou o chopp. E durante todo o mês de março, eles ficaram juntos. Emília se sentia acolhida pelo rapaz que a fazia rir e a tirava da solidão. Ela se sentia querida e desejada a seu lado. Não queria estar em nenhum outro lugar.

No mês seguinte, Emília viajou para São Paulo para participar de um congresso da faculdade. Chegando no domingo, foi direto para a feira onde todos se reuniam em meio a barraquinhas e foodtruck de comidas e bebidas. De longe viu Mosquito abraçado com Helena, amiga de escola de Giovane. Virou-se triste e deu de cara com o irmão.

– Viu, maninha? Te digo que esse mundo não é pra ti. Fique no seu mundo dos livros e intelectuais. Não se meta no meu mundo.

Emília saiu de lá humilhada, e não falou mais com o irmão. Enquanto a mãe estava viva, mantinha relacionamento silencioso dentro da casa. Mas assim que arrumou um emprego, saiu da casa dos pais e não precisou mais olhar para trás.

Sempre tinha notícias do irmão, pois colegas faziam a defesa dele em tribunais, principalmente por tráfico e roubo. Sabia que o pai ficava acompanhando Giovane nesses processos, então ela evitava chegar perto.

Naquele momento, olhando no olho de Mosquito, não podia ver aquele passado. Via o cidadão Antônio Nogueira dos Santos. Delito: posse de maconha. Defesa: para consumo. A promotoria pede manutenção em cárcere por motivo de possível fuga.

Emília respira fundo e dispara:

– Percebe-se uma constância na ficha do réu em manter essa postura ao longo dos anos mesmo com a justiça insistindo em lhe demonstrar que o crime não compensa. O mundo não parece ser o mesmo para nós que é para o senhor Antônio, já que ele prefere ser mantido à margem. Portanto, após tantas tentativas educacionais do sistema, vou lhe dar mais esse ensinamento, senhor Antônio, fique no seu mundo e não se meta no mundo dos cidadãos de bem que zelam pela Pátria, Deus e família. Mantenha o réu em cárcere privado.

Ainda Sou Uma Menina

CONSCIÊNCIA PESADA