Sobre

CONSCIÊNCIA PESADA

Por Marcos Ferreira

Foi uma única cutilada seguida de um movimento vertical. Não bastou enfiar a lâmina no estômago do homem até o cabo. Não. Ele queria mais sofrimento, crueldade. Então, sem contrair um músculo do rosto, subiu a faca do pé da barriga até próximo do esterno, de maneira que as vísceras da vítima caíram aos seus pés. O sujeito tombou de olhos arregalados, apertando inutilmente os intestinos com as duas mãos.

Aquele era o segundo jardineiro que Elviro Martins atraíra para trabalhar em seu vasto pomar e assassinara friamente. O indivíduo anterior teve a cabeça decepada com um golpe de machado enquanto se encontrava de costas, acocorado, escavando a terra para plantar umas mudas de begônia. Os cadáveres foram enterrados nos fundos da propriedade acompanhados das armas dos crimes. A terra era úmida e fofa, e sobre esta ele espalhava no dia seguinte sementes de amendoeira. Em ambos os homicídios os empregados foram abatidos próximo ao final da tarde, cerca de meia hora antes de irem embora. De início, para escapar de qualquer surpresa à luz do dia, ocultava os corpos debaixo da folhagem e esperava a noite avançar para abrir as covas, algo entre as dez e onze da noite.

Junto com os jardineiros, o homicida também enterrava a roupa que estivesse trajando, geralmente uma bermuda e uma camiseta surradas. Nu por completo, antes tomava um banho rápido na área de lazer da residência, onde havia uma ducha. Ali, calçando sandálias de borracha, o assassino pegava uma toalha que previamente deixava à sua espera e entrava em casa para enfim usar o chuveiro da suíte. Nos dois ensejos, como uma espécie de tara mórbida, utilizou-se da espuma do sabonete e se masturbou.

No silêncio daquela propriedade, já de roupas limpas e casuais, postava-se num recanto da ampla sala, pegava o seu antigo rosário (presente da falecida senhora Anastácia, avó materna) e se punha a rezar diante do oratório. Ficava longos minutos entregue a orações em honra de Nossa Senhora, proferindo ave-marias e padre-nossos.

— Perdoe-me, Senhor! Pois eu caí em tentação.

Com quarenta e quatro anos de idade, medindo cerca de um metro e setenta, pele e olhos claros e pesando menos de oitenta quilos, o religioso sanguinário costumava ter longos pesadelos com as pessoas que extinguia. Despertava suado a horas mortas, chorando convulsivamente e fazendo o cruz-credo. Entre lágrimas, trêmulo, rezava de modo honesto e contrito, pedindo ao Altíssimo que aliviasse aquele seu padecimento.

No domingo seguinte, porém, vestia-se a caráter e ia celebrar a missa das seis horas. Durante a pregação, por via de regra, criticava a falta de amor ao próximo e qualquer tipo de violência, em particular a doméstica. Ao fim arrematava:

— Vão todos em paz, meus queridos irmãos!

Após um ano suicidou-se por enforcamento.

A polícia passou a investigar o caso, varreram a propriedade do sacerdote, e cães farejadores encontraram as ossadas de mais três pessoas. Ao todo, portanto, padre Elviro Martins dera cabo de cinco trabalhadores. O peso em sua consciência, contudo, impediu que ele fizesse outras vítimas. Que Deus o condene ou absolva.

Escrito por Marcos Ferreira

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