Últimas histórias

  • CULPA | Capítulo VIII

    Acordei com um aroma de jasmim a invadir o ambiente. Mal o dia raiara, encontrei-a frente ao pequeno espelho, aspergia água-de-colônia no pescoço e nos braços roliços.

    Quando deu pela minha presença, fingiu-se de ocupada com os afazeres domésticos.

    — Vou preparar um café para nós dois.

    Tomado pela beleza que flagrara, eu me pus de pé e fui ao seu encontro.

    — Creuza, você sabia que…

    A proximidade com ela calou a minha voz. Nem me lembrava há quanto tempo estivera assim tão perto de uma dama.

    Sua timidez a mexer comigo, tornando-a ainda mais encantadora. O perfume do jasmim a me levar para longe, como se ele me deixasse ser conduzido por Creuza. Haveria um mundo diferente? O meu destino poderia ser refeito?

    De repente ela me indagou:

    — O senhor… está melhor? Precisa de…

    Peguei nas suas mãos e fiquei silente a olhar para os seus dedos, pensando longe. Como se a querer me transportar para uma terra distante, recomeçar, refazer tudo outra vez. Isso poderia acontecer? O mundo e os Céus permitiriam?

    — Preciso de… nada não, Creuza. Sua presença me basta.

    Creuza ficou ainda mais constrangida: tirou suas mãos das minhas, dando-me as costas. Notei que os seus ombros tremiam. Teria sido deselegante com ela?

    — Creuza, me desculpe, não tenho direito. Eu sou um bronco. Não serei digno de…

    Creuza se voltou na minha direção. Uma lágrima pendurada naquele rosto tão delicado, a expressar algo que eu não sabia traduzir. Ela passou a palma das mãos pelo vestido de chita, como se não soubesse o que fazer com elas; e, desajeitada, rumou em direção ao fogão.

    Mexeu nas panelas com uma falta de habilidade incomum. Ao preparar a massa para a tapioca, mais derramou no chão do que na frigideira. Quando uma colher caiu, fui ajudá-la. Nossas mãos se reencontraram, os olhares se cruzaram e, quando mais nos aproximamos, os lábios se fundiram; num beijo quente e caloroso.

    — Creuza! Creuza!…

    Alguém bateu lá fora.

    — Creuza?! Vou entrando.

    — Dona Das Dores — disse-me, sem largar as minhas mãos.

    — Pensava sentir um cheirinho de café coado e o que encontro é um odor de jasmim?! — disse Das Dores, reparando nas nossas mãos dadas.

    — E esse de queimado? Meu Deus do céu! A massa da tapioca! — Creuza atrapalhou-se com a ação a ser tomada. Afastei-a e tirei a frigideira da trempe.

    Um silêncio se intrometeu entre nós. O tremor das mãos nos denunciava, sem mencionar o rubor da face de Creuza. Fomos salvos daquele mal-estar por Dona Das Dores:

    — Pelo jeito, se eu não preparar esse café da manhã, os dois ficarão de jejum.

    Descartou a massa queimada, providenciou uma nova, umedecendo-a com leite de coco. Botou o bule com água para ferver e, em instantes, o casebre cheirava a café novo com tapioca.

    — Sirvam-se à vontade. Vou em casa e volto mais tarde.

    Olhamo-nos, mas a nossa fome era outra. Demo-nos novamente as mãos, enquanto eu ficava a matutar. Minha vida poderia ser refeita? O destino permitiria?

    Lá fora uma brisa varria as folhas do terreiro, trazendo um aviso de chuva. Percebi que Creuza se aproximara mais com o seu perfume de jasmim, colocando a sua cabeça sobre o meu ombro.

    — Não sabia que o senhor também gostava… de mim.

    Quis lhe dizer algo; não pude. Certas coisas não cabem nas palavras.

  • Culpa – Capítulo VII

    — “O homem que matou pai e filho”. Venham todos conhecer a história que abalou uma pequena cidade do sertão.

    Aquele anúncio me despertou do sono leve em que me via mergulhado, pondo-me em alerta.

    A voz de Creuza na entrada da casa.

    — Meu senhor, quero um.

    — Aqui está, senhora. Versos de um cantador para revelar as coisas do demo nesta terra tão manchada de sangue. Que Nosso Senhor a proteja.

    Calcei as alpercatas e apurei os ouvidos. Percebi que o cordelista se afastara, a anunciar já distante:

    — “O homem que matou pai e filho”. Venham todos conhecer a história que abalou uma pequena cidade…

    Quando me levantei, a indagação:

    — Para onde o senhor pensa que vai?

    Creuza com o cordel na mão, o olhar sereno em minha direção.

    — Ainda está sob meus cuidados. Deite-se, vou pegar uma caneca de café para você. Acabei de coar, está fresquinho!

    Antes de sair, ela deixou o cordel em cima do tamborete que havia junto à rede. A capa avermelhada, a xilogravura com um assassino a cutilar com uma peixeira um homem e, noutro canto, um jovem. Dois quadros.

    A vista embaçada, como se os crimes, de volta à mente, embaralhassem meu juízo.

    Com a mão trêmula, peguei o cordel. Como sou de poucas letras, li devagar o título e o autor do relato: “O homem que matou pai e filho”, do poeta Lourival de Licânia. Ao abri-lo, a primeira estrofe:

    O duplo crime ocorreu

    Numa manhã de domingo…

    — Não sabia que o senhor também gostava dessas histórias? É uma diversão nessas terras, e um modo de se saber das desgraças, e raras vezes das alegrias, que correm por este mundo de meu Deus — disse-me Creuza, enquanto se sentava no tamborete, entregando-me o café.

    O tremor das mãos me denunciava, mas Creuza julgava que aquilo se devia ainda ao meu estado de saúde.

    — Tome um cafezinho, é sempre bom. Se o senhor quiser, enquanto descansa, eu posso ler para você. Mas somente se me prometer que vai se comportar e ficar quietinho aí.

    Baixei o rosto, os músculos da face a denunciarem o meu aperreio. Tomei o café, trêmulo. Creuza, zelosa, a me consolar:

    — Não tenha pressa. Vai passar. Tenhamos fé em Deus. É grande a Sua misericórdia.

    Ela ajeitou a barra da saia, pigarreou, como a limpar a garganta, e começou:

    — “O homem que matou pai e filho”, do poeta Lourival de Licânia.

    E, em tom cantante, principiou:

    O duplo crime ocorreu

    Numa manhã de domingo…

    Um pânico invadiu as minhas carnes, os olhos a assistirem a toda aquela desventura em que me envolvera. E… gritei:

    — Minhas desgraças… Senhor…

    — Chegue aqui, dona Das Dores. Depressa, me ajude!  

    Fui contido pelos braços de Creuza.

    Tencionei fugir, não pude.

    &&&

    — Mal iniciei a leitura, e ele passou mal, dona Das Dores.

    Creuza a enxugar a minha testa, enquanto rezava uma ave-maria por entre seus lábios carnudos.

    A velha Das Dores ao seu lado:

    — Deixemos ele descansar, filha. O coitado parece que carrega uma cruz pesada. Venha, vamos conversar um pouco lá fora.

    Um sono entrecortado, um aperreio só, o espírito em agonia.

    Levantei-me, calcei as alpercatas e, antes que saísse pela janela, a fugir de tudo, a voz de Creuza me chegou:

    — Eu quero cuidar dele, dona Das Dores.

    — Minha querida, você está se apegando a ele! Cuidado para não se machucar.

    — Não me importo.

    &&&

    O duplo crime ocorreu

    Numa manhã de domingo…

    “Devia ter vindo para junto deles, no reino dos mortos. Mas intercederam por ele, sem merecer…”

    Creuza a me guiar: “Confie em mim, coloque seu braço sobre o meu ombro e vamos sair… São José, valei-nos!, São Francisco de Assis, guarde a gente!, Santa Ana, minha madrinha…”

    &&&

    Uma oração à luz da lua.

    — Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós! — era a velha Das Dores.

    Quando ouvi a resposta de Creuza — “que recorremos a vós…” —, uma alegria ganhou o meu corpo.

    Voltei para dentro de casa, tirei as alpercatas, pendurei a camisa e a peixeira no canto. Deitei-me, fingindo dormir.

    Em seguida Creuza entrou e se sentou junto à rede:

    — Nada de mal vai lhe acontecer, esteja certo — confidenciou-me.

    Enquanto cobria-me com um lençol cheirando a flores do campo, declarou:

    — Durma. Estarei sempre aqui.

    Cantigas de roda adormeceram-me.

  • Culpa | Capítulo VI

    — Ai!

    — Não se mexa. Vou chamar a enfermeira.

    “Enfermeira?! Onde estou?”

    Tentei me erguer, mas o corpo não me atendia. Mergulhado numa espécie de leseira e dor. Como se as forças me faltassem.

    Pouco depois um homem surgiu junto de mim. Reparou nos aparelhos ligados ao meu corpo e, com um tom de voz baixo, ordenou:

    — Precisamos mantê-lo dormindo. A cirurgia foi longa, e o quadro inspira cuidados.

    “Cirurgia? Cuidados?!…”

    Ao tentar falar, a língua ganhou volume na minha boca, um bolo a não pronunciar uma palavra sequer.

    Senti uma mão junto à minha, e aquilo me consolou. Sem querer, mergulhei (ou seria mergulharam-me?) num sono profundo.

    &&&

    Não sei quanto tempo depois, despertei. Ao abrir os olhos, uma pergunta escapou da minha boca:

    — Creuza?

    — Estou aqui.

    — Mas… e aquele… homem? Ele lhe fez… algum mal? — interroguei-a, aflito.

    Ela se aproximou do leito, os olhos marejados, e me tranquilizou:

    — Não. Ele não me fez mal algum.

    — Mas…

    — Graças ao senhor. Não sei como teve forças para lutar. Estava fraco, no entanto você se agarrou com ele como um…

    Não teve forças para continuar, Creuza caiu num choro, embaralhando-se com as palavras. Depois, segurou mais forte a minha mão direita e continuou:

    — E agora se encontra nesse estado. Tudo culpa minha. Culpa minha.

    Apertei-lhe ainda mais a sua mão, olhei em seus olhos, e ela entendeu o meu recado.

    — O delegado anda à procura dele. Depois de lhe ferir, ele correu mata adentro, no rumo do Mucuripe — declarou.

    Ao ouvir aquela palavra, “delegado”, quis me levantar, ela me conteve:

    — Aonde o senhor pensa que vai? Estou aqui para cuidar de você. A enfermeira me confidenciou que foi um milagre você ter escapado dessa. Foram duas facadas fundas, o médico teve que costurá-lo por dentro e por fora. Me peguei com Santa Luzia e Maria Santíssima, pedi às duas que me dessem a graça da sua vida. Você que salvou a minha.

    — Eu… culpa… preciso… sair…

    Caí num desmaio, enquanto, como se bem longe, ouvia uma voz desesperada:

    “Desmaiou… enfermeira… acuda!”

    &&&

    As alpercatas, limpas, embaixo do leito. Um quarto grande, de paredes brancas, um soro na minha veia, gotejando. Num cabide metálico, a minha camisa pendurada, com as marcas da briga.

    Consegui sentar-me, apesar da cabeça pesada, ainda bambo.

    Numa poltrona, no canto, Creuza a dormir, tranquila. A lembrança da sua declaração: “Tudo culpa minha. Culpa minha.”

    Aquilo me pesava, eu que há tempo carrego tão cruel sentimento.

    Consegui me levantar, precisava fugir dali. Tirei o soro, calcei os chinelos e, lentamente, caminhei. Ao chegar à porta, o pedido de Creuza:

    — Me deixe cuidar de você. Sei que seu passado lhe pesa, pesa muito. Pude entender grande parte da sua dor ouvindo todo o seu desespero quando você falava, inconsciente, entre a vida e a morte, aqui no leito do hospital.

    — Não seja louca, Creuza, minha vida é uma desgraça, um inferno…

    Ela não me deixou continuar. Pôs os seus olhos claros nos meus, levando o dedo indicador da mão direita aos meus lábios, a me pedir, cativante, silêncio.

    Obedeci, e a seguir caí em seus braços.

    — Eu vou estar sempre ao seu lado.

  • CONFIDÊNCIAS A FERREIRA

    Por Clauder Arcanjo

    Agora habita o meu olhar 

    noturno este vazio estranho, 

    esta memória de chuva 

    que descolore o pôr do sol, 

    que emudece as palavras 

    e silencia o chocalho das horas. 

    Noturnos, os poetas se emudecem no silêncio das madrugadas, a fim de encontrarem a raiz poética, (re)encarnada na cumeeira do vazio. 

    Enquanto a cidade dorme, a poesia se apresenta, antes do nascer do sol, como oferenda legítima e mundana do (des)colorido atormentado da vida. 

    Pois não sou este espírito a esmo 

    Que me busca entre sombras e abalos 

    Na infinita procura de si mesmo. 

    &&&

    Os passos 

    no corredor, 

    a luz acesa. 

    O perfume 

    da inocência 

    brincando 

    entre as mãos 

    pervertidas 

    do vento. 

    — Poeta Marcos Ferreira, há sempre em nós uma confissão tardia! — Assombra-se Carlos Meireles, entre palavras de pecado e farta remissão. 

    Eu olho para a parede alta e nua à nossa frente. Um fero obstáculo a nos usurpar da liberdade de flertar com a arquitetura das nuvens, de antever o bulício dadivoso dos arrebóis. 

    Apenas o céu 

    emoldurado 

    na janela, 

    a tia nas orações 

    — tateando 

    o paraíso 

    nas contas 

    encardidas 

    do rosário. 

    &&&

    Perdi meu romantismo. Não sou mais 

    O amante, o cavalheiro, o menestrel 

    — O ingênuo cantador de madrigais. 

    O que se perde, Poeta, mais se nos (re)define. Defino-me mais pelo que abandonei, desrespeitoso com meus despojos, do que pelo que levo na algibeira das minhas certezas vãs. 

    Hoje, neste ranzinza habitáculo em que meu corpo habita, quero recobrar os meus românticos perdidos, mas o mundo, cruel engenho, já cuidou dos seus funerais. 

    A poesia só me encontra quando me perco, pecador por palavras, nos seus cruentos madrigais. 

    Estremeço à tua passagem 

    e meu olhar de chumbo 

    se afunda na ilusão movediça 

    do teu colo de aromas. 

    A tarde boceja envolta 

    num pijama de arrebol 

    e as últimas cardigueiras 

    desaparecem na linha 

    ensanguentada do horizonte. 

    &&&

    Ontem voltei à rua dos 

    meus tempos de criança… 

    O fantasma do amor imberbe 

    atravessou-me num abraço diáfano. 

    Sobre a laje negra do asfalto 

    brincava o doido esqueleto 

    do meu cavalinho de pau. 

    A infância usurpa o nosso presente. De quando em vez, joga seus espectros em nossa frente. E, cabisbaixos e saudosos do ontem, caqueticamente, nos tornamos fantasmas do nosso passado. 

    Hoje, Poeta, esperarei a assombração do eu-menino com a roupa de homem, em frente à porta da frente. Se ele passar por mim e entrar… Bendito seja eu, Ferreira! 

    &&&

    Acho que a velha casa 

    dos meus sonhos mirins 

    ameaçou um sorriso de janelas. 

    Ainda hoje sonho com a velha casa de Licânia. Entre os meus, colhido pelos tipos da rua, recebi as minhas lições de maior valia. Na nossa rua, não havia pobres nem ricos, existiam amigos e amigas. Gente boa, gente crédula, gente simples. 

    Cresci e me formei. E o mundo, Poeta, depois de Licânia, só me deseducou; e, hoje, não sonho mais com o sorriso do nosso janelão da frente. Lições de menos-valia. 

    — E quando retornarás a Licânia?, você me indaga. 

    E Licânia algum dia saiu de mim?! Se tu te referes a este meu esqueleto, ele será plantado na terra que me viu chorar, e muito sorrir no peito. 

    Mesmo que a luz 

    de nossas almas 

    se apague e o tempo 

    nos arraste para 

    o mundo das sombras 

    e da saudade, 

    haverá sempre esta 

    candeia de esperança 

    ardendo na solidão 

    lacrimosa do meu peito. 

    &&&

    Ontem concebi 

    um poema 

    bastardo. 

    Cumpre-me agora 

    escrevê-lo, 

    pois larguei-o 

    entre as águas 

    do banho 

    e ele se afogou 

    na garganta 

    escura do ralo 

    Há versos concebidos na antevéspera do escarro; outros, na comunhão de um afago; alguns, não raros, no lusco-fusco da esperança. São raros os que resistem ao tempo, juiz cruel de muito enfado. 

    Não adianta te cercares das lições comezinhas dos vates de outrora, nem das homilias poéticas dos modernosos de agora, pois o poema, aprendiz de poeta, só se entrega (e se revela) a quem nunca o espera, e dele se torna um fiel escravo. 

    Um sopro de angústia vai movendo 

    as dobradiças do silêncio. 

    As teias do tempo se espalharam 

    por todos os cômodos e móveis. 

    Sequer o velho relógio de pêndulo 

    reagiu à minha súbita presença. 

    Vê, em frente ao teu espelho, o sopro lívido da tua última quimera se esvair por entre as nesgas do silêncio, e se acomodar nas engrenagens das horas extremas. 

    O mais é tudo sombra e frialdade. 

    &&&

    É tarde… Um galo canta no vizinho. 

    Então ele retorna e continua 

    Os versos que deixou pelo caminho. 

    Levanta, Marcos, os raros leitores de poesia aguardam o recital do teu soneto esquecido na última tarde. O primeiro quarteto, em alexandrinos perfeitos, ultrajava a dor que te tornara forte; o segundo, rimado e bem urdido, decantava a flor que tu havias tido; o primeiro terceto, arejado e reverente, tecia a família que, de ti, se orgulhava. Já a última estrofe, Poeta, toma cuidado!, pois daqui antevejo o traquinas Chico de Neco Carteiro a tentar escandir-lhe os versos, com sua voz rascante de augusta e rutilante matraca. 

    É de lábios 

    e línguas 

    este anseio 

    que deriva 

    da curva 

    do teu medo 

    e se gruda 

    nos fios 

    do silêncio. 

    Na curva do arremedo, os poetastros cevaram os espectros dos seus pretensos poemas. De paletó e gravata, cercados de muitos festejos, eles se esqueceram de convidar a musa humilde. 

    Acharam, por certo, que, para eles, não havia segredo. Cumularam-se de saberes, outorgaram-se detentores de uma fama de araque… e se defrontaram, fatal desencanto, com o “poema” oco, perdido na tepidez funérea do vazio. 

    Abracei-a com força, mas não creio 

    Ter podido prendê-la muito assim… 

    Ela foi e eu fiquei ali no meio 

    Do silêncio noturno do jardim. 

    No silêncio da noite, sem a algaravia dos falsos arpejos, aprendi que a graça da poesia só nos alumbrará se riscada em laivos transparentes, pendidos, com a força solfejante da cola de uma mísera rima, sob a platitude lírica do abismo. 

    Não te maldigas pela sorte escassa 

    Nem pela vida muita vez tão dura… 

    Aqui no mundo nada sai de graça, 

    Ainda mais quando se tem ternura. 

    Quando a última ternura me caiu no colo opresso, nem percebi quando se deu tão sublime esmola, obrou-se o milagre de me ver em festa, quando todos lá fora se consumiam em desenganos. 

    E, se ao fim e ao cabo, tu, ternura, me tornares imprestável para a lida cotidiana, só me restará a lira… e a sina malsinada de me fazer poeta. 

    Hoje amanheceu bonito 

    Como fosse primavera… 

    Sem metáforas de sombra, 

    Nem pedaços de quimera. 

    &&&

    Declaro, para todos 

    os fins que se fizerem 

    necessários, que não possuo 

    bem algum neste mundo 

    em que os homens 

    declaram a guerra 

    e sonegam a paz 

    E tu, Marcos Ferreira, cuida de assinar o teu último armistício poético; eu, por aqui, rabiscarei o testamento do meu degredo. 

    Entre os fulgores da morte, as sonegações da paz, nós, tortos poetinhas, finalizaremos o nosso espólio, declarando fé no amanhã, apesar do risco de sermos fuzilados por isso. 

    No coração da noite segue uma tristeza 

    Com passos muito lentos e desmotivados 

    Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro A hora azul do silêncio, de Marcos Ferreira. — 2ª edição — Mossoró: Editora Verboletras, 2016. 

    *Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras. 

  • Confidências a Kolody

    Pesada, a angústia escorre na ampulheta… 

    Das minhas mãos plenas de angústia, Helena, brota um veio de areia na ampulheta malquista. Enquanto exaure as horas dos meus dias, conta, com os frutos finos do barro, o fim pesado que me anuncia. 

    Melhor não olhar para essas mãos. Aliás, melhor seria, Kolody, arremessá-las para longe do relógio do meu rosto. E, a partir do brilho de tal revolta, apenas reparar no singelo presente arfante. Sublime enigma que consagra a sua volúpia final entregando-se tão só ao sonho mais errante. 

    Contínua, 

    Enervante, 

    Avassaladora angústia 

    Dos que desejariam suster a derrocada 

    E nada podem fazer… 

    E nada podem fazer. 

    &&&

    Tu, Senhor, que repartes os destinos: 

    Por que me deste o árido quinhão 

    De sonho, de tristeza e solidão? 

    — Poetisa de raiz ucraniana, regaste, com os teus versos de jasmim, muitos áridos jardins! — Proseiam os meus dois companheiros, Carlos Meireles e Acácio, de modo uníssono. 

    Com pouco os dois se calam, a fim de ouvirem a voz epifânica de Kolody, límpida e pura como a chuva de um domingo abençoado: 

    No limiar de mundos ignorados,

    Onde aportaram suas naves quietas, 

    Relembro a alma sonora dos poetas, 

    A alma sensível dos predestinados. 

    &&&

    Quero ser o cristalino fio d’água 

    Que canta e murmura na mata silenciosa. 

    Toda grande poesia brota de um veio cristalino, fonte de versos puros e preciosos, a dessedentar os homens com o cálice do vinho-poema-vida. Ao cantarmos (e decantarmos) tais versos, o mundo se nos revela, misteriosamente, em sua plenitude; a dor pode até se aguçar, mas é uma dor que pune, ao tempo em que nos extasia. 

    A poesia é o reverso do parto para uma nova concepção. 

    Atrás de mim, vozeia e tumultua, 

    Anseia e chora, e ri, arqueja e estua 

    A imensa multidão dos ancestrais, 

    Que me bate e rebate, inexorável, 

    Como o oceano em ressaca açoita o cais. 

    &&&

    Pelos penhascos das horas, 

    A vida se precipita. 

    Não repareis nos ponteiros dos relógios que vos cercam, ó filhas de Cristo! Eles estão mancomunados com a litania das horas, arautos do precipício. Adoram serem observados e, quanto mais o são, mais eles se apressam em desfilarem, apressados, no jardim de tulipas negras, aziago marcador do tempo. 

    E, quando procuramos por nós, as cãs já assumiram a cabeça, e a vida, coitadinha e efêmera, do penhasco alto nas águas tumultuosas se precipitou. 

    Não repareis nos ponteiros dos relógios que vos cercam, ó filhos de Cristo! 

    Que aluvião de banalidade 

    Arrastam essas águas tumultuosas 

    Em sua trajetória efêmera! 

    &&&

    É meio-dia em minha vida. 

    Um mensageiro inesperado 

    Vem prevenir que apresse a lida, 

    Como se fosse anoitecer. 

    O meio-dia é a parte mais perigosa do dia. A manhã mal se foi, a tarde ainda não se inicia, e nós, ocupantes deste meeiro, não nos prevenimos para o avanço da lida. 

    — E alguém se previne da vida em Licânia? 

    Não, Kolody, minha gente sempre acredita no milagre da noite. Noite que, para os licanienses, cuida de nos perdoar as faltas, de nos redimir dos pecados, bem como de recobrir-nos com o manto de ressurrectas forças. 

    Só se morre em Licânia, quando se perde a fé no vento miraculoso da noite, e a terra se lav(r)a de seca. 

    Vento da noite, ainda é cedo! 

    … e nem lavrei a terra agreste. 

    &&&

    Semente oculta na polpa do fruto. 

    A morte habita o âmago da vida. 

    Haveremos de flagrar, na pálida semente, a esperança do pomo dadivoso da fruta, e de poupar do fruto o patrimônio da telúrica semente. 

    Semente oculta na polpa do fruto. 

    A vida brota do âmago da morte, 

    Imperecível. 

    O fruto nos encanta e contenta, no entanto somente a semente nos eterniza. Com a sua morte, eis o milagre: frutifica-se, em vera eucaristia, para uma nova vida: pão de Deus. 

    A morte espreita, em silêncio 

    O vivo jogo dos homens 

    No tabuleiro do tempo. 

    &&&

    Como o menino 

    dentro da noite, 

    longa e deserta, 

    canta e assovia 

    para iludir 

    os seus fantasmas, 

    sigo cantando 

    por um caminho 

    mal-assombrado 

    pelos meus sonhos. 

    Canta, Kolody, como um fanal neste mar de desventuras, dadivoso farol neste pasto de seres-morrentes. Precisamos das cantigas de Helena, só assim resistiremos (e venceremos) tantos cavalos virulentos, fantasmas de outras Troias. 

    Cheiro de selva, 

    gosto de sangue 

    nas mãos feridas 

    pela beleza. 

    Os poetas caminham por entre a selva de tanto silêncio, a ouvirem o pranto-soluço dos esquecidos. Por entre os lamentos, com o sangue dos inocentes no bico da pena, de mãos feridas em solidariedade às dores alheias, eles (re)inventam o perfume da beleza, como bálsamo para as feridas do mundo. Rogando a Deus que, dali em diante, o milagre habite-nos em formas de gestos-rosas, a reflorarem nas nossas mãos de vidro. 

    Mas na leveza 

    da obra esculpida, 

    laivos de sonho, 

    seiva de vida. 

    A leveza é condição de força para surpreendermos o mal que nos espreita no caminho à frente. Nossas flechas levarão a seiva do sonho, colhida no centro da obra esculpida; e o sonho só nos achegará se tivermos passos e versos leves. Levíssimos, como um bom sono, laivos dos justos. 

    Quem chorava em meu sonho? 

    Eu ia, deslembrada, 

    pelos caminhos sem nexo 

    no escuro sono, 

    quando alguém soluçou. 

    Foi o suficiente, bastante um soluço para que haja existência. Basta um suspiro para que se instale o amor. Basta um grito malposto para que se instale a dor. A aflição do esquecimento, do abandono, do desamor. 

    E, se ao final, tudo lhe faltar: soluce, suspire, grite… mas não desista do rego da flor. 

    Quem soluçava em meu sonho, 

    tão perto que me acordou? 

    &&&

    Debruço-me à beira de mim 

    e sinto a vertigem do inviolável, 

    guardando o espelho profundo 

    que dorme no fundo. 

    E tu, Helena Kolody, te debruçaste sobre os versos, à beira de ti e de mim. Então, a vertigem do inolvidável se projetou sobre o espelho da tua e das nossas almas. Lá, a vigiar o tempo, Narciso dormia o seu sono mais profundo. 

    Não sou a imagem no espelho 

    Ao fim, Kolody, bem sei, haveremos todos de acordar e seremos felizes, e saudáveis de novo. Um pouco mais diferentes: levaremos rosas nos lábios finos e abraçaremos com cheiro de alfazema e utopia. 

    Cada momento acrescenta 

    e subtrai o existente. 

    Obs.: os trechos em itálico foram extraídos do livro Viagem no espelho, de Helena Kolody. — 3ª edição — Curitiba: Editora da UFPR, 1997. 
    *Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

  • Culpa – Capítulo V

    — Mamãe?!… Mamãe?!

    — Fique calmo.

    Aquela voz macia me tirou de um estado de torpor, me arrancando de um sonho estranho. Via a presença de minha mãe, mas era como ela se afastasse de mim, quanto mais eu gritava por sua presença.

    — Procure manter a calma, você passou por um grande susto. Tudo vai ficar bem.

    Ao abrir os olhos, a presença daquela jovem junto a mim me espantou. Eu, assustado, quis erguer o meu corpo da rede.

    Ela, com sua presença marcante, levou a mão direita sobre o meu peito, a me exigir que não me levantasse.

    Ao perceber que eu estava mais sereno, saiu em direção ao fogão a lenha no fundo do casebre. De lá voltou com uma caneca de ágata e me serviu uma espécie de mingau. De início, quis rejeitar, mas ela foi me servindo, enquanto me contava sua história de vida.

    — Não se ache nem pior nem melhor do que ninguém, meu senhor. Aqui nestas terras já tem acontecido muita desgraça, a luta é grande, a seca de vez em quando vem roubar as nossas forças. Muitos desistem daqui, debandam para outros mundos; alguns retornam até piores. O filho mais velho do seu Bartolomeu, morador de um pedaço de chão aqui perto, foi tentar a vida pelas bandas da selva, e voltou meio abilolado pelo que sofreu por lá. Eu preferi ficar. Não nego que muitos dos meus familiares resolveram tentar a sorte em outros rincões. Meu sogro… e depois meu esposo… — Calou-se, os olhos perdidos, a mão com a colher suspensa entre a caneca e a minha boca.

    Respeitei aquele momento, silenciando e baixando o rosto em direção ao chão batido.

    — E eu aqui trazendo minhas desgraças para junto do senhor…

    — Não se preocupe. Dizem que é bom falar do que nos aperreia o juízo — disse-lhe.

    Enxugou os olhos na manga do vestido de chita e terminou de me servir.

    Quando se retirou para lavar a caneca, ouvi a voz de uma mulher na entrada:

    — Creuza?

    — Sim. Pode entrar.

    A velha senhora foi logo perguntando sobre o meu estado:

    — Como ele passou a noite?

    — Dormiu assim… inquieto. Falando muito no meio do sono cortado, umas coisas estranhas de quem anda muito aperreado, a alma metida em agonia — respondeu Creuza, era este então o nome dela, àquela senhora que chegara.

    Levantei-me, calcei as alpercatas que estavam embaixo da rede e vesti a minha camisa surrada. Pendurada numa forquilha, a minha faca. Antes de colocá-la no cós da calça, a pergunta de Creuza:

    — O senhor pensa que vai para onde?

    Uma tontura me invadiu a cabeça e o mundo começou a rodar diante dos meus olhos. Fui colhido pelos braços de Creuza:

    — Venha se deitar, homem de Deus! Lembre-se de que você está sob os meus cuidados. Recebi esta missão do meu compadre.

    Tentei reunir forças para me manter de pé, porém nada me acudiu e eu… desmaiei.

    O desespero de Creuza:

    — Chegue aqui, dona Das Dores. Me ajude a colocar ele na rede.

    &&&

    “Devia ter vindo para junto deles, no reino dos mortos. Mas intercederam por ele, sem merecer…”

    O mesmo pesadelo de antes, só que agora a presença de Creuza a me levar para fora daquele inferno. “Confie em mim, coloque seu braço sobre o meu ombro e vamos sair daqui… Seja forte.”

    Uma luz distante. Caminhava com dificuldade, Creuza a me sustentar. De vez em quando, ela clamava pelos santos: “São José, valei-nos!, São Francisco de Assis, guarde a gente!, Santa Ana, minha madrinha…”

    &&&

    Na saída, os olhos incomodados pela luz forte.

    — Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós! — era a velha senhora, dona Das Dores, ao meu lado. O terço de grandes contas por entre os dedos enrugados.

    Ao correr os olhos em volta, ela logo me acudiu:

    — Creuza volta logo. Ela foi pedir ajuda ao Jacinto, filho do Felisberto. Ele é uma espécie de doutor nessas lonjuras tão esquecidas por Deus e pelos homens.

    Quando Creuza chegou acompanhada pelo Jacinto, senti uma alegria por vê-la.

    Creuza foi logo explicando ao “doutor” tudo que acontecera comigo.

    Jacinto me analisou o pescoço. Mexeu com a minha cabeça para um lado e para o outro, correu a mão pela minha nuca, como se contando as vértebras. No final, pegou no meu pulso, a verificar a pulsação; e, sem alarde, informou a Creuza:

    — Não há muito por que se preocupar. Agora é dar tempo para curar essas marcas, e rezar para que Deus lhe dê novamente a paz de espírito. Quem ficará cuidando dele? É sempre bom vigiar de perto, quem tentou uma vez pode…

    — Eu cuidarei, seu Jacinto. Não deixarei que nada de mal aconteça a ele, fique certo — disse-lhe Creuza, enquanto me sentia contente pelo anúncio dos cuidados daquela minha protetora.

    Colocou-me para dormir. À noitinha, cantigas de roda saíram dos seus lábios, enquanto uma serenidade invadia o meu corpo.

    — Creuza, você vai estar sempre aqui?

    Ela deitou-se, não sem antes me pedir:

    — Durma. Estarei sempre aqui.

    E eu adormeci tranquilo, como há dias não acontecia.

    Sonhei com os olhos claros de Creuza, um olhar protetor num rosto de uma beleza cativante.

  • Culpa | Capítulo IV

    — O Inferno não me quis! — eu esbravejava, enquanto tentavam me conter.

    O pescoço dolorido, a cabeça perdida num tumulto de lembranças, a língua grossa, os olhos num espanto só.

    — Aquiete-se, homem de Deus. Tenha calma! — pedia-me uma velha senhora ao meu lado. Com ela, o terço de grandes contas pendurado no pescoço engelhado, as mãos enrugadas sobre o meu peito inquieto.

    Quando fiz menção de me levantar, ouvi a ordem de Lourenço de Maria:

    — Você não vai a canto nenhum! Ora, ora! Escapou por pouco da morte. Se eu não tivesse voltado para apanhar a chibanca, você agora estaria pendur…

    Calou-se, como se com vergonha de falar da morte naquele lugar em que ela estivera tão perto de mim.

    — Humm… — grunhi, fechando os olhos. Não saberia dizer se envergonhado de não ter conseguido o desfecho pretendido, ou se sem argumento diante daquele que, pelo visto, eu tanto decepcionara.

    — Deus é grande e enorme a Sua misericórdia. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Amém! — pronunciou a senhora.

    Serviu-me água num copo de ágata; aquilo me desceu em engulhos. Tossi forte, engasgado.

    — Calma, meu filho! Repouse, re-pou-se… A voz mansa, o tom carinhoso e suave, e os olhos me pesaram.

    Caí num sonho estranho. Entrava num espaço apertado e dava de frente com os dois homens que eu carregava como pecado de morte: pai e filho. O primeiro me sorriu com os dentes escuros e grandes, a boca ensanguentada, os olhos crispados em mim. O filho, ao lado do pai, quase na sombra paterna, a esperar o momento certo de me atacar. De repente alguém anunciou: “Matou pai e filho!”. E outro a responder: “Devia ter vindo para junto deles, no reino dos mortos. Mas intercederam por ele, sem merecer…”

    &&&

    — … intercederam por ele, sem merecer… sem merecer! — gritei.

    A noite chegava, trazendo com ela uma quietude que me incomodava. Antes que eu tentasse me pôr de pé, não sabia quanto tempo estivera deitado, uma voz de mulher ao canto:

    — Você dormiu um bom tempo, senhor. Apesar de agitado.

    Na leve escuridão, consegui divisar um rosto feminino sob a luz de uma lamparina sobre o fogão a lenha.

    Levantou-se e retornou com uma tigela de sopa quente.

    — Sente-se — ordenou-me. — Precisa se alimentar — emendou.

    Serviu-me o ensopado em colheradas espaçadas, numa paciência que me tornava sem jeito de desobedecê-la.

    Ao final ela me ofertou um copo d’água; e, de leve, tocou-me na altura do queixo.

    — Essas marcas logo sumirão.

    Ao se aproximar, divisei seus olhos claros, sua face de uma beleza diferente, mistura de raças daquele sertão.

    — Quem é você? — perguntei.

    Ela, de início, sorriu-me; e, a seguir, respondeu-me, num tom de faceirice e troça:

    — Sua protetora. Pelo menos nesta noite.

    Antes que conseguisse indagar-lhe algo mais, ela continuou:

    — E exijo que não converse mais nada, nem sonhe nenhuma besteira, por hoje. Preciso descansar um pouco também.

    Com receio de ficar sozinho, interroguei-lhe:

    — A senhora vai dormir aqui?!

    — Senhora?! Nem sou assim tão velha!

    Ela sacudiu a rede armada ao meu lado, deitou-se e, antes de meter-se por debaixo do lençol, advertiu-me:

    — Durma.

    &&&

    Caí num sono profundo. Sonhei, mas sem me ver em pesadelo. Aquela bela senhorita ao meu lado fazia-me deixar um espaço escuro e apertado, mantendo-me à distância dos dois homens que me cercavam. Sempre a me defender:

    — Deixem ele. Não queiram fazer da vida deste homem um inferno aqui na Terra.

    &&&

    Madrugada alta, notei aquela mão fina sobre a minha testa. Era ela a se certificar de que eu dormia sem febre?

    Tudo me trouxe uma paz que há tempo não sentia. Lembrei-me dos meus anos de menino, sob os cuidados de minha mãe.

    *Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de LicâniaMulheres Fantásticas, entre outros.

    clauderarcanjo@gmail.com

  • Culpa – Capítulo III

    O vento na mata e o cheiro de café coado me despertaram. Corri os olhos e, de início, me assustei. “Onde estou?… Não será risco… ficar aqui?…”

    Nesse instante um jovem entrou naquela espécie de dormitório e me saudou:

    — Como está, seu Batista?

    Quis me levantar, mas ele me passou uma caneca, dizendo-me:

    — Café. Continue descansando, é preciso. Vou sair para capinar o meu roçado, é logo aqui perto. Voltarei antes do meio-dia para almoçarmos. Já deixei tudo pronto nas panelas de barro sobre o fogão a lenha. Se sentir fome, pode se servir, não precisa me esperar.

    Pôs-me aquele olhar de bondade. Sentei-me e engoli o café com sofreguidão, apesar de quente.

    — Aceita um pedaço de cuscuz?

    Sem esperar por minha resposta, saiu e retornou com um prato de ágata contendo um pedaço da iguaria de milho.

    Deixou o prato ao meu lado, no chão junto à esteira em que eu dormira. Dando-me as costas, foi em direção ao canto do aposento de taipa, pegou o bisaco, a enxada, o chapéu de palha e ganhou a mata.

    &&&

    Fiquei sozinho. Os pensamentos em revoada, numa mistura de lembrança do vivido e de fantasmas em alvoroço dentro da minha cabeça, ainda zonza com o que me acontecera.

    Depois de devorar o cuscuz com o café preto, levantei-me e andei por dentro do casebre. Simples, porém com tudo no seu lugar; via-se que o morador — lembrei-me do nome dele: Lourenço de Maria — era zeloso com suas coisas: o pote com um pano a envolver a rodilha, as panelas de ágata areadas, o fogão organizado com a boia já pronta em duas panelas de barro, o chão de terra varrido, as telhas vãs bem alinhadas… E uma rede enrolada, dependurada numa corda, e esta presa a um caibro mais grosso no fundo do recinto.

    “Eu não presto. Não sirvo mais para nada, sou um condenado…”

    Minha mente num rodopio só, a cabeça toldada pela lembrança da fuga, o desespero dentro de mim, cobrando-me pelas faltas, pelos meus crimes.

    — Deus, me leve logo! — gritei.

    &&&

    Caí num choro convulso e, de repente, ajoelhado no chão, observei a corda que segurava a rede daquele bom moço.

    “Que o meu corpo sirva de festa para os urubus… Eu… um desgraçado. Não presto…”

    Desarmei a rede, retirei a corda e saí para o alpendre. Logo à frente, uma oiticica frondosa. Amarrei a corda num galho, testei meu nó de forca e cuidei de buscar um tamborete.

    Quando coloquei a laçada no pescoço, ajustando-a bem, subi no tamborete e…

    “Pai e filho, meu Deus!”

    No momento as minhas oiças viram-se invadidas por um padre-nosso desengonçado — nunca fora homem de reza —, decidi empurrar o tamborete com os pés. O laço apertou forte a minha garganta. “Não, não! Não tive culpa. Não tive…”

    O bulício do passaredo invadiu os ares; e eu, a estrebuchar pendurado na oiticica, encomendei a minha alma ao Diabo.

  • Culpa — Capítulo II

    “Não, não… não tive culpa. Não tive…”

    — Calma, meu senhor. Tenha calma. Algum problema?

    Despertei e, ao abrir os olhos, o corpo em febre, percebi a presença de um jovem junto a mim.

    — Eu… não… — a voz me faltava, a cabeça a girar, sem forças.

    — Você está ferido! — constatou.

    — Sede. Estou com… sede. Água, por favor — pedi-lhe.

    Ele, de pronto, me atendeu. Bebi a goles grandes na quartinha, engasgando-me.

    — Devagar. Sem pressa, seu… Seu nome? — indagou-me.

    Não emiti resposta, apenas diminuí a voracidade com que me dessedentava e observei a sua fisionomia. Quase da idade daquele que ficara morto na areia; motivo da minha fuga, do meu desespero.

    — Eu me chamo Lourenço. Lourenço de Maria. Muito prazer — falou, a me demonstrar confiança.

    Fechei os olhos, um zumbido na mente e um peso na consciência a me remeterem ao pesadelo do qual fugira. “Ninguém para levar esse condenado, tirá-lo daqui!”

    — Senhor?

    — Meu nome é Batista. Batista de Assunção.

    — Prazer em conhecer, seu Batista — disse-me, apertando a minha mão direita, numa espécie de saudação costumeira.

    Fiquei com a mão grossa presa entre os dedos finos daquele rapaz, tomado de surpresa com o seu ato, com a sua educação. Inventara aquele nome, confesso que mais preocupado em preservá-lo do meu drama, evitando ligá-lo de alguma maneira à minha tragédia. “Pai e filho, meu Deus!”

    As vozes a me inquietarem, a remoerem a minha paciência — “Vá, deixe de coisa! Não quero briga!” —; a lembrança a espicaçar dentro dos meus miolos.

    — Vamos para minha casa, senhor Batista. Moro aqui bem perto. Lá cuidarei desses ferimentos. É coisa superficial, mas não se deve deixar isso piorar. Prevenir é melhor do que remediar, sempre me ensinou meu saudoso avô — disse-me, tentando me levantar do chão em que me encontrava.

    — Não. Não tive… culpa… Pai e filho… meu Deus!

    Nada falou, apenas ofertou-me o ombro amigo e, com jeito, foi me conduzindo. Encontrávamo-nos à beira do rio; não sabia identificar o lugar exato, pois não me lembrava do quão distante chegara naquela carreira desabalada.

    — Meu filho, eu não presto. Deixe-me aqui. Que Deus me leve logo, e meu corpo sirva de festa para os urubus… Eu… eu não presto.

    — Calma, meu senhor. Não se deve pronunciar más palavras. Deus é grande, e maior ainda a Sua misericórdia — devolveu-me.

    Sem me alimentar bem há dias, as pernas me faltavam. Quando atingimos o alto da ribanceira, divisei uma casinha de palha, tão parecida com a minha. Aquilo me encheu os olhos de lágrimas e…

    — Estamos chegando, seu Batista. Um pouquinho mais. Força, força nas pernas! — estimulava-me.

    Deitou-me numa manta sobre um trançado de palha, disposta no canto do casebre. Em seguida, cobriu-me com um lençol, a declarar-me:

    — Fique aqui e descanse. Vou preparar um caldo de peixe para melhorar seu ânimo.

    Lá fora, o passaredo a encher os ares com um trinado doce e festivo.

    Quis me levantar, mas não pude. A cabeça zonza; fraco, entreguei-me e mergulhei num sono profundo. “Não tive… culpa, Lourenço… Pai e filho… meu Deus!”

    clauderarcanjo@gmail.com

  • Culpa – Capítulo I

    “Preciso parar. Já estou bem longe.”

    Mas a cabeça não sossega, a me pedir que ande. A mente a me ordenar: “Vai, se afasta mais!”

    Lavei as mãos várias vezes, o cheiro do sangue não saiu. Esfreguei-as com água e areia, nada.

    “Nem lembro quantos dias se passaram”. Caminhando no sentido de enfiar léguas entre mim e o infortúnio.

    &&&

    Eu disse a ele: “Vá-se embora, meu filho! Chega de sangue!”

    Mesmo assim ele veio na minha direção, com os olhos vidrados, sinal de que bebera. “Deixe-me em paz! Já carrego uma cruz! Não quero outra, não!”

    Puxou a peixeira. O sol do meio-dia brilhava na lâmina. Ele a me ameaçar: “Canalha! Criminoso! Vim aqui vingar o meu pai!”

    “Vá-se embora, rapaz! Basta de sangue! A justiça me julgou, fui absolvido: legítima defesa. Carrego, desde então, essa cruz.”

    “Vou vingar o meu pai!”

    De repente, correu para cima de mim, jogou o golpe. Senti quando a lâmina raspou no meu braço. Sangue e dor. Dei-lhe um empurrão, tangendo-o para longe. “Vá, deixe de coisa! Não quero briga!”

    Ele não se aquietava, os olhos irados, vermelhos. Percebi que preparava novo ataque; com força, no rumo do meu peito. Evitei-o, mas senti outro corte. Desta vez, na perna esquerda. De raspão.

    Dei-lhe um tapa e um outro empurrão. Agora com mais potência, tomado pelo ímpeto do sangue a correr pela coxa e o braço feridos.

    Olhei ao redor, ninguém. “Ninguém para levar esse condenado, tirá-lo daqui!”

    “Tá vendo seu sangue! Naquela tarde foi o sangue dele. Hoje será o seu!” Aos gritos, como se contente.

    Aprumou-se na areia quente e retornou. O brilho da peixeira ao sol, a enfiada forte. Puxei a minha faca da cintura, e aguardei-o.

    &&&

    Seus olhos se turvaram. Ele levou a mão ao local do golpe, e cambaleou.

    Caiu na areia, a se espernear, o sangue jorrando, a manchar a roupa e o areal de vermelho vivo.

    Tentou se levantar, outra queda. “Você me acertou, seu desgraçado!”

    Então corri, corri no rumo das nascentes. Sabia que por ali a mata era mais fechada.

    &&&

    Estou cansado, a mente me atiça: “Vai, não para! Não para!”

    Na copa das árvores, o festejo dos pássaros; nos ouvidos, a voz do rapaz: “Você me acertou, seu desgraçado!”

    “Pai e filho, meu Deus!” A culpa a zoar nas minhas oiças, tal qual abelhas.

    Bato nas orelhas, a tentar me livrar daquele inferno, daquela culpa. “Pai e filho, meu Deus!”

    clauderarcanjo@gmail.com